As fronteiras entre arte, tecnologia e ciências são cada vez mais um espaço de entrelaçamento e experimentação. Hoje, no Fios do Tempo, publicamos um primeiro artigo sobre o tema, Self-made art, escrito pelo artista português Leonel Moura, que propõe uma arte produzida por não-humanos, nesse caso, robôs. Seguindo o princípio da estigmergia, os seus robôs artistas são capazes de gerar obras com pouca intervenção humana. Será esse o próximo passo da arte contemporânea?
Agradecemos a Leonel Moura pela generosa e pronta autorização. Em seguida publicaremos um artigo do pesquisador Charlie Snell, que traz uma rica descrição das mais recentes criações experimentais realizadas com algoritmos generativos.
Liz Ribeiro
Fios do Tempo, 18 de agosto de 2021

Self-made art
A pandemia atual mostrou como uma pequena entidade com um algoritmo simples pode gerar complexidade ao ponto de paralisar a atividade humana em todo o mundo. Completamente inofensivos, meus robôs de arte usam um mecanismo similar baseado em regras simples para produzir desenhos e pinturas. Estas máquinas podem gerar composições pictóricas complexas com pouca intervenção humana, abrindo o caminho para a arte não-humana.
1. Fazer arte é, ao mesmo tempo, expressar uma visão pessoal e estar inscrito em uma história que começou há milênios. Abordagens inovadoras da mesma ciência são essenciais na arte, mesmo que, ao contrário da ciência e de seus mecanismos de validação, a avaliação provisória seja menos objetiva. O valor da arte é determinado por uma complexa rede de interesses, desde colecionadores, curadores, museus, gostos, idiossincrasias dos artistas, entre outros. Entretanto, com o tempo, algumas propostas de arte, muitas vezes negligenciadas inicialmente, emergem como as mais representativas de um determinado instante da história. Os exemplos são abundantes quando olhamos para trás, dos quais o destino de Van Gogh é uma boa ilustração – morto na miséria e na loucura é agora um dos artistas mais apreciados de seu tempo. O futuro não será diferente.
Assim, quando me dediquei à arte décadas atrás, tinha em mente como contribuir com algo significativo e distinto de meus colegas. Não estando interessado em uma expressão emocional ou pessoal, concentrei-me nos mecanismos de criatividade e na evolução da história da arte.

Algumas mudanças extraordinárias bastante recentes redefiniram o conceito de arte. De figurativo a abstrato; de manufatura a ready-made; de objeto a processo (fig. 1). A abstração mostrou que a representação do mundo exterior, ou a representação de crenças, não era mais essencial, já que a arte podia ser uma representação de si mesma. Depois de Kandinsky, e de outros artistas abstratos, a arte tornou-se o principal assunto da arte. Marcel Duchamp acrescentou outra ruptura importante ao afirmar que o artista não precisava fazer o trabalho ele mesmo e podia simplesmente pegar um objeto já feito e “transformá-lo” em obra de arte, mudando seu contexto. Depois de Duchamp, a ideia se tornou mais importante do que a habilidade. Então, a arte conceitual favoreceu a imaterialidade, pois afirmou que a ideia e o processo eram mais importantes do que o objeto.

O processo e a arte conceitual abriram as portas para as tecnologias digitais aplicadas à arte no final do século 20. Desde os anos 60, computadores e algoritmos se tornaram novas ferramentas para a criação artística. Com a rápida evolução destas tecnologias a abordagem da ferramenta, ou seja, que as máquinas só fazem o que o operador humano quer, foi substituída pela ideia de autonomia onde a máquina é capaz de sua própria criatividade.
As ciências da complexidade mostraram que é possível simular processos emergentes imprevisíveis, baseados em regras simples e interações locais. Neste contexto, “Jogo da vida” de Conway (fig.2), que aprendi nos anos 90, foi uma verdadeira revelação. O potencial para a arte era impressionante. John Conway, recentemente falecido por Covid-19, abriu o campo dos Autômatos Celulares explorados até hoje por muitos cientistas. Em 2002, Stephen Wolfram publicou um estudo sistemático de autômatos celulares unidimensionais alegando o nascimento de um novo tipo de ciência. Mas foi somente quando conheci o Algoritmo da Formiga proposto por Marco Dorigo em sua tese em 1992 (fig. 3), que decidi aplicar esta nova ciência à arte.

O primeiro Algoritmo da Formiga foi uma simulação de otimização do caminho. Mas para mim, um artista visual, era um desenho feito por conta própria. Eu o vi como uma evolução do ready-made de Duchamp. Como é suficiente para acionar um algoritmo e a obra de arte emerge por si só.

2. Depois de várias experiências no computador, saltei para o mundo físico com a ajuda de robôs. Estas máquinas evoluem no mundo real e podem produzir obras de arte únicas. Meus primeiros robôs autônomos foram uma espécie de formigas artificiais (fig. 4), interagindo uns com os outros com base no conceito de estigmergia. Com o objetivo de gerar composições pictóricas, substituí os feromônios por cor.
A estigmergia é um conceito de auto-organização baseado na comunicação indireta. Um agente deixa uma marca que, uma vez reconhecida por outro agente, produz um comportamento particular.
Estes primeiros robôs em forma de formiga funcionaram como enxame. Cada robô consistia de três componentes: os sensores, o controlador e os atuadores. Os sensores recebiam sinais do ambiente a serem processados pelo microcontrolador a fim de comandar os atuadores.
Os sensores de cor RGB, situados sob o robô, podiam detectar toda a paleta de cores, mas, como estes robôs originais transportam apenas duas canetas, a detecção de cores foi dividida em duas faixas, ‘quente’ e ‘frio’. Os sensores de proximidade ajudaram os robôs a determinar a área do terrário e a evitar colisões. Três servomotores: dois para as rodas e um para operar as canetas gerenciavam o movimento e a pintura. O controlador era um PIC de bordo.
As regras eram simples. Se o robô detectasse branco, ele se afastaria em modo aleatório, exceto quando um gerador de números aleatórios produzisse um valor que excedesse um determinado limite e acionasse o atuador para produzir um traço. Se o robô detectasse uma cor, ele reforçaria essa cor. Logo, a partir de um fundo caótico inicial, surgiram alguns grupos de cores.
As primeiras pinturas feitas em 2004 favoreceram a formação de clusters (fig. 5), embora sua perceptibilidade dependesse da duração do desempenho[1].

3. As obras de arte geradas por este processo são, em essência, não humanas. O humano é o gatilho e uma espécie de simbionte, mas não o criador das obras. As pinturas resultam da interação entre os agentes, ou seja, os robôs, e seu ambiente, ou seja, a tela, enquanto que o algoritmo é um conjunto de regras simples do tipo “se-então”. Os dados necessários para a operação são coletados pelo próprio robô com base na observação rudimentar do sensor, como cor, tipo de cor, ou não-cor. O processo é auto-organizado e emergente com intervenção humana trivial e insignificante. Escolher uma cor ou outra, parar em um determinado momento são decisões que não afetam o essencial, ou seja, que as máquinas podem construir uma composição por conta própria.
Vale acrescentar que tais obras de arte derivam mais da criatividade natural do que da imaginação humana. A formação de clusters, por exemplo, é comum desde bactérias a galáxias e formigas, meu modelo. Embora não sejam únicos, os processos auto-organizados estão no centro da vida e da evolução.
O procedimento demonstra que o comportamento complexo pode ser alcançado com regras simples, mas funcionais. Já o papel do artista, do roboticista ou do programador de inteligência artificial, é encontrar as regras que funcionam. Tal visão introduz um novo tipo de arte em sua evolução histórica, já que o objetivo agora é criar os criadores e não diretamente a obra de arte, abrindo o campo para uma arte feita por máquinas.
4. A arte não-humana é interessante em muitos aspectos. Como dito anteriormente, para a história da arte, ela abre todo um novo campo de possibilidades. Combinada com inteligência artificial ou processos generativos, ela promete uma explosão de criatividade como nunca vimos antes. Até agora, a inovação era constrangida pela extraordinária, mas limitada, imaginação humana. Por natureza, nosso cérebro tem dificuldade em lidar com múltiplas tarefas e explorar o impensável. As máquinas não têm tais constrangimentos. Portanto, é previsível que no futuro as máquinas produzirão algo que podemos chamar de arte e que provavelmente amamos, mesmo que não o compreendamos.
A arte não humana, seja ela feita por outras formas de vida ou máquinas, também é importante como um reconhecimento da complexidade da própria vida. A civilização humana tem se movido pela exploração e desdém em relação a todas as outras espécies vivas. Ao ponto da extinção maciça que estamos testemunhando. Reconhecer que, embora dominantes, somos apenas uma solução evolutiva é fundamental para evoluir e abrir nossas mentes para a riqueza de outros potenciais.
Concluo como comecei. Um organismo pequeno, um vírus, nem mesmo realmente vivo, é capaz de transformar radicalmente nosso mundo. É terrível mas, ao mesmo tempo, fascinante e esclarecedor.
Este texto, traduzido por Liz Ribeiro, foi publicado originalmente no site do autor:
http://www.leonelmoura.com/self-made-art/
Nota
[1] É por isso que em 2006 eu criei uma série de robôs capazes de parar o processo por si mesmos. Um deles, chamado RAP do Robotic Action Painter, está exposto no Museu Americano de História Natural, em Nova York.

Leonel Moura é um artista natural de Lisboa, Portugal. Vem criando desde 2001 obras com robôs e é pioneiro no uso de inteligência artificial na arte. Além de produzir obras visuais, também escreveu livros como Robot Art (2013) e Nonhuman Art (2015) que exploram sua proposta central de uma arte baseada na criatividade das máquinas.
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