O tempo presente: uma vocação teórica e sociológica – DOSSIÊ NORUS. A sociologia como ontologia do presente: teoria, metateoria e análise crítica

Em seu décimo quinto número, a Revista Novos Rumos Sociológicos (NORUS), do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), publica o Dossiê “A sociologia como ontologia do presente: teoria, metateoria e análise crítica”, organizado por Marcos Lacerda (pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Sociologia – UFPel e livre-pesquisador do Ateliê de Humanidades); André Magnelli (professor, pesquisador e diretor do Ateliê de Humanidades) e José Luís Garcia (professor do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa – ICS/UL).

O dossiê é composto por doze artigos, escritos por pesquisadores(as) do Brasil, EUA, Itália, Colômbia, Chile e Portugal, que refletem e apresentam análises teóricas e metateóricas sobre as transformações ocorridas nos diversos âmbitos da sociedade moderna. O dossiê apresenta uma miríade de temas centrais nas discussões sociológicas contemporâneas, tais como o desenvolvimento das tecnociências e a informatização da comunicação; o problema do Antropoceno e a interrogação sobre o humano; a crise da democracia contemporânea e o avanço dos populismos; a terceira revolução industrial e os potenciais transformadores dos bens comuns relacionais; as novas dinâmicas de colonização e a emergência de uma teoria crítica da colonialidade; o desenvolvimento das tecnologias de inteligência artificial e a renovação das problemáticas antropológicas; a configuração das classes sociais e a análise das múltiplas determinações existenciais; a construção do saber em humanidades e a reflexividade filosófico-biográfica, e assim por diante.

A edição conta também com a resenha “Por uma crítica do populismo em nome de mais (e não menos) democracia”, feita por Felipe Maia, sobre o livro “O século do populismo”, de Pierre Rosanvallon, recentemente publicado pelo Ateliê de Humanidades Editorial.

Como parte da divulgação, disponibilizamos no nosso site a apresentação do Dossiê, escrita pelos organizadores Marcos Lacerda, André Magnelli e José Luis Garcia.



O tempo presente: uma vocação teórica e sociológica

Revista Novos Rumos Sociológicos |
vol. 9 nº 15 |
Jan/Jul/2021 ISSN: 2318–1966

Nas conversas entre sociólogos, contemporâneos ou não, desta e de outras gerações, é frequente notar a recorrência do seguinte tema: a sociologia estaria passando por uma crise, sem precedentes. Por conta disso, precisaria refazer o seu percurso. No melhor dos casos, reafirmar as suas bases; no pior, colocá-las em suspenso. Tudo isso para se adaptar aos novos tempos. Nota-se isso sobretudo em teorias de tom mais normativo, muitas vezes ironicamente expresso em uma linguagem da desconstrução, bastante comum no ambiente acadêmico e cultural atual. De todo modo, tal afirmativa não se restringe necessariamente a esse tipo de teoria.

Se o tema, por vezes, vem ancorado em estratégias retóricas associadas a modas intelectuais, ou a discursos persuasivos, com seus tons paroquiais, ele também tem aparecido em estudos mais sérios, vinculados a tentativas de se construir novas sínteses para a teoria social e sociológica, admitindo alterações significativas no seu objeto de análise. Ou mesmo, associando-o às questões próprias da epistemologia das ciências humanas e das ciências sociais.

No entanto, é sempre bom ressaltar que a sensação de crise sempre esteve presente na sociologia. Não se trata de uma novidade, pelo contrário. O sociólogo atento sabe que o discurso sociológico, desde sempre, faz um esforço de explicitação da sua dificuldade em afirmar, com firmeza e contundência, a validade do seu estatuto ontológico e epistemológico. Como se se tratasse de uma ciência, um campo de conhecimento ou um conjunto de discurso impreciso, cambiante, que necessita se reafirmar permanentemente e, com isso, justificar e legitimar a sua existência, diante de outras ciências, campos de conhecimento ou conjunto de discursos.

Definitivamente, não carecemos de questões em busca de respostas. Negar os clássicos ou reafirmá-los? Aderir aos revisionismos da moda, de tons francamente normativos e, em muitos casos, pré-reflexivos, ou fazê-los passar pelo crivo da tradição bem sedimentada do saber sociológico? Admitir a perda de validade heurística do seu principal objeto, a sociedade moderna, e se reinventar conceitualmente, ou desconfiar dessa mesma perda de validade? Ou nada disso, sabendo permanecer como sempre foi, utilizando bem a sua conceituação primeva e ficando atento ao tempo presente, considerando a sociologia como um campo de conhecimento com claras, decisivas e fundamentais ambições científicas, cujo principal compromisso seria fazer uma reflexão sobre as movimentações do espírito da modernidade, tratando de problemas como os processos de racionalização da conduta social, a extensão do capitalismo como sistema econômico e forma de vida e assim por diante?

Ainda que estas questões sejam de difícil resposta, tendo em vista que, ao que parece, atravessam o próprio campo sociológico em sua gênese e se espraiam em muitos dos seus subcampos, este Dossiê tem a pretensão de tomar uma posição diante do problema. Afirmar, categórica e enfaticamente, a teoria social e sociológica, ao mesmo tempo que apostar na sua inserção decisiva para pensar o tempo presente, fazendo o que se convencionou chamar, na esteira da compreensão de trabalho crítico por Michel Foucault, de “ontologia do presente”. Neste lugar talvez se situe, de fato, as “finalidades sem fim” da sociologia.

Diferentemente do tom hegemônico, muitas vezes com feições moralizantes, francamente dogmáticas e calcadas num empirismo voluntariamente ingênuo, consideramos fundamental valorar as práticas teórica e metateórica atentas aos problemas próprios da cientificidade e da lógica conceitual, fazendo a sociologia gerar atritos com a filosofia, a epistemologia e as outras ciências, inclusive as ciências naturais. Deste modo, propomos que a sociologia se conduza, em seus esforços de análise e síntese, pela elaboração de questões do tempo presente que exigem esforços interdisciplinares, até mesmo transdisciplinares, para os quais a sociologia está vocacionada. Portanto, o(a) leitor(a) encontrará neste Dossiê uma série de problemáticas, todas elas em diálogo, que são centrais para a compreensão do que nos acontece, com todos os seus perigos e potenciais: o desenvolvimento das tecnociências e a informatização da comunicação; o problema do Antropoceno e a interrogação sobre o humano; a crise da democracia contemporânea e o avanço dos populismos; a terceira revolução industrial e os potenciais transformadores dos bens comuns relacionais; as novas dinâmicas de colonização e a emergência de uma teoria crítica da colonialidade; o desenvolvimento das tecnologias de inteligência artificial e a renovação das problemáticas antropológicas; a configuração das classes sociais e a análise das múltiplas determinações existenciais; a construção do saber em humanidades e a reflexividade filosófico-biográfica, e assim por diante.

São estes alguns dos temas tratados no presente Dossiê: “A sociologia como ontologia do presente: teoria, metateoria e análise crítica”, que conta com a presença de artigos de sociólogos e sociólogas do Brasil, EUA, Itália, Colômbia, Chile e Portugal, denotando o seu tom cosmopolita e mostrando que a sociologia está vivíssima e continua a ser um dos espaços de maior interesse para o pensamento humano e os volteios do espírito, mesmo, ou sobretudo, nos tempos extremos em que vivemos.


O primeiro texto do Dossiê é uma análise, a um só tempo crítica e luminosa, do presente, que se coloca mais na condição de uma proposta generosa de construção, ou reconstrução, do laço social e afetivo, do que propriamente na atitude de explicitação dos aspectos negativos (que, de fato, existem aos montes) das sociedades contemporâneas. O artigo “A natureza relacional do bem comum: elementos para uma lógica da partilha na Terceira Revolução Industrial”, escrito por Silvia Cataldi, Licia Paglione e Gennaro Iorio, sociólogos italianos, propõe a possibilidade de constituição, com a hegemonia das redes de comunicação e de produção informatizadas, de uma solidariedade horizontal, baseada em uma “lógica da partilha e da colaboração”. A construção dessa visada se dá através de dois conceitos chave, a teoria da dádiva e o amor-ágape, que servem, por sua vez, como mediadores centrais para a elaboração de uma nova ideia e ideal de bem comum: os bens comuns relacionais.

Ao identificar as novas relações entre produção e consumo, em que os bens relacionais passam a ser essenciais, os autores fazem um mapeamento do debate sobre a natureza desses bens. Isso é feito tendo uma consciência das complexidades e incertezas neles envolvidas, mas é ressaltado, sobretudo, o seu potencial generativo para o florescimento humano, que ocorre quando se tem a coragem de apostar na dádiva e no amor-ágape como lógicas de construção dos laços sociais. Com o objetivo de aprofundar a compreensão desta proposta, sobretudo no tocante à retomada do amor nas ciências sociais como uma forma de experiência, crítica e emancipação, sugerimos a leitura do livro Sociologia do amor (Ateliê de Humanidades Editorial, 2021, em lançamento agora em outubro), de Gennaro Iorio, que teve André Magnelli, um dos organizadores desse Dossiê, como tradutor e editor.

Após o artigo de abertura, que já nos situa para além de uma visão hipercrítica do tempo presente, segue-se uma análise do sociólogo e filósofo chileno Daniel Chernilo a respeito das questões próprias ao “Antropoceno”. Em “El ‘antropos’ del antropoceno: interrogando los presupuestos humanistas y anti-humanistas de un programa científico”, Chernilo faz uma gênese da problemática, amplamente difundida nos anos mais recentes, do Antropoceno. Em um movimento próprio de autorreflexividade crítica, o autor se distancia de uma adesão imediata à tese e apresenta uma análise dos variados sentidos do termo no seu uso como metanarrativa das sociedades contemporâneas.

Como muitos sabem, a noção de Antropoceno afirma a existência de uma mudança significativa no nível de interferência dos experimentos tecnocientíficos na biosfera, a ponto de nomear a existência de um período geológico, a “era do homem”, em que a ação humana teria se tornado a principal força motriz das mutações climáticas e terrestres. Com isso, para alguns defensores da tese associados à chamada “virada ontológica” na antropologia, como Bruno Latour, Donna Haraway e outros, o Antropoceno minaria de vez a separação ontológica moderna entre Natureza e Cultura. Mas há uma pergunta central que, por vezes, não se aborda com o devido cuidado metodológico: o que é o humano pressuposto normativamente na tese do Antropoceno? É mais propriamente aí, na necessidade de responder de forma mais precisa ao problema próprio de uma antropologia filosófica, que se situa a reflexão de Chernilo. Assim, orientado por seu projeto de uma “sociologia filosófica”, o autor nos propicia uma crítica ponderada a algumas pretensões de validade mobilizadas pela crítica antropocênica ao tempo presente.

Por sua vez, no artigo “A sociologia como ontologia do presente”, o belga, brasileiro por adoção, Frédéric Vandenberghe, defende uma mudança significativa na agenda da sociologia. Para ele, ao invés de se discutir a problemática conceitual, teórica ou metateórica deste campo de conhecimento, em um tipo de pesquisa teórica do qual o próprio autor se tornou uma das principais referências internacionais, deve-se agora conduzir a reflexão sociológica – já transmutada em uma simbiose entre ciências sociais, filosofia moral e política – para os temas da política do presente, deslocando assim a reflexão para as análises do populismo, do Antropoceno e do neoliberalismo, essa tríade algo macabra do hipercapitalismo globalizado do nosso tempo. Diga-se de passagem, o próprio autor, em parceria com o sociólogo francês Alain Caillé, publicou um livro em que estende ainda mais a sua tese e que foi traduzido para o português: “Por uma nova sociologia clássica: Re-unindo Teoria Social, Filosofia e os Studies” (Vozes, 2021).

É a isso que ele dá o nome de “segunda pós-modernidade”. Esse período social-histórico teria também o seu próprio discurso, que lhe é a um só tempo crítico e constitutivo, envolvendo a teoria social, a filosofia moral e os “estudos culturais”. Este caminho de uma sociologia do tempo presente que faça convergir as ciências sociais e a filosofia é encontrado em uma análise concreta do populismo, tal como feita pelo historiador e teórico do político Pierre Rosanvallon em O século do populismo: história, teoria, crítica (Ateliê de Humanidades Editorial, 2021), que é resenhado com brilhantismo neste dossiê por Felipe Maia no texto “Por uma crítica do populismo em nome de mais (e não menos) democracia”.

A tese da “segunda pós-modernidade” conversa inevitavelmente com o tema do quarto artigo do Dossiê, “O processo de tecnologização e mediatização da comunicação e a sua dialética negativa”, de autoria dos sociólogos portugueses José Luís Garcia e Filipa Subtil. Os autores estão interessados nas consequências sociais, políticas, econômicas, epistêmicas e ontológicas da disseminação e do espraiamento das tecnologias da informação e dos experimentos tecnocientíficos em todas as dimensões da vida humana e social, e mesmo para além dela, atuando também no âmbito da biosfera. É o que o sociólogo português Hermínio Martins chamava de “experimentum mundi”, que tem relação direta, diga-se de passagem, com os problemas do Antropoceno. Nele, os autores fazem uma gênese dos meios de comunicação e das tecnologias da informação desde as primeiras décadas do século XX, passando por muitos temas, como os da Segunda Guerra Mundial, das políticas de propaganda massiva, da relação do Estado com experimentos tecnocientíficos e do processo de intensificação do Mercado como última instância de mediação das tecnociências e assim por diante.

Este último processo é o que mais nos interessa aqui: a dimensão contemporânea do problema. Garcia e Subtil destacam alguns aspectos que definem a sociedade contemporânea radicalmente informatizada e tecnocientífica: o surgimento da internet como rede de interação síncrona planetária; o desenvolvimento do big data, da sociedade dos algoritmos e das plataformas digitais globalizadas; a aparição de novos capitais, tais como, por exemplo, o capital de visibilidade na internet; as tentativas de conceituação dessa nova fase do capitalismo (digital, cognitivo e de vigilância); e, por fim, e não menos importante: a China contemporânea, que é um exemplo de realização máxima de uma “Ditadura digital”, que engloba o totalitarismo político, a tecnociência sem limites éticos, o capitalismo neoliberal, a propaganda total e a vigilância eletrônica massiva.

Assim, existe um diálogo frutífero, porque tensionado, entre duas perspectivas a respeito da nossa época da terceira revolução industrial: enquanto o artigo de abertura do dossiê explora seus potenciais emancipatórios, o artigo de Garcia e Subtil analisa as novas formas de dominação. Trata-se, portanto, do desafio de analisar criticamente o mundo das tecnociências, em sua relação com a modernidade ocidental, e, ao mesmo tempo, de ir além desta crítica através da abertura, por dentro e por fora, de novos caminhos epistêmicos e políticos. Os próximos artigos enfrentam, cada qual a seu modo, tais desafios, todos eles entretecendo a sociologia com a filosofia.

O quinto artigo, “O dom de Heidegger: o presente da ontologia”, de Stephen Fuchs, apresenta uma crítica da modernidade técnica a partir de uma perspectiva mais clássica, aquela presente na “destruição da metafísica” de Heidegger. Argumentando de forma muito próxima ao filósofo alemão, tanto nas teses quanto no estilo, Fuchs busca aproximar a teoria social do pensamento de Heidegger, anunciando implicitamente os próximos passos do seu caminho reflexivo: a relação com os termos da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann e o diálogo da doação poético-fenomenológica de Heidegger com o paradigma maussiano do dom.

Qual seria a contribuição da crítica do esquecimento do Ser e da perda do mundo para a fundação de uma outra ontologia do presente? Poderá a poíesis heideggeriana contribuir diretamente para o pensamento social contemporâneo, sem ser apenas pelas traduções realizadas pelo debate estruturalista e pós-estruturalista francês? Independentemente disso, a proposta de Fuchs já evidencia, para o leitor atento, o quanto a filosofia heideggeriana está presente de forma difusa e obnubilada no debate contemporâneo, até mesmo em teóricos(as) sociais “não-modernos”, “póscoloniais” e “decoloniais” que pareceriam insuspeitos de flerte com qualquer germanofilia teórica.

Esta questão da pós-colonialidade e decolonialidade nos conduz de imediato ao artigo seguinte, “Teoria Crítica da Colonialidade: rumos de uma teoria crítica plural, descolonizada, cosmopolita e fronteiriça”, de Paulo Henrique Martins. Neste artigo, que pode ser lido como uma síntese conclusiva de seu livro Teoria Crítica da Colonialidade (Ateliê de Humanidades, 2019), Martins analisa o recente florescimento de teorias críticas tanto no Sul quanto no Norte-Global, propondo um esforço cooperativo de síntese teórica que supere o caráter ideológico e colonizador de uma modernidade, a princípio, centrada na Europa, sem cair nas facilidades de um suposto nativismo teórico descolonizador. O autor constata um deslocamento da teoria crítica decorrente de uma pluralização dos centros intelectuais de produção teórica, que embaralha a clássica distinção centro e periferia em uma nova geopolítica do conhecimento, composta por uma pluralidade de contextos de colonialidade e anticolonialidade. Neste sentido, Martins propõe um esforço teórico que é avesso às culturas do cancelamento e do esquecimento, tanto daqueles feitos em nome de universais ocidentais, quanto também daqueles presentes em críticas que reproduzem uma lógica identitária que julgam combater.

Desvencilhando-se da fixação da crítica da colonialidade em um desconstrucionismo histórico, linguístico e literário (que é um instrumento útil quando bem usado, mas mortífero quando mal manejado), Martins sai do centramento discursivo para dirigir a atenção para uma análise realista das formas de colonialidade do tempo presente, como o capitalismo neoliberal, a colonização informática-digital, os populismos de extrema-direita e o ressentimento como forma de despolitização. Diante deste cenário, ele aponta para uma Teoria Crítica da Colonialidade que seja plural, cosmopolita, hermenêutica e fronteiriça, voltada para a reconstrução cognitiva, moral, afetiva e política do imaginário humano em um diálogo entre teorias e saberes ancestrais, clássicos e modernos, tanto do sul quanto do norte.

O que Paulo Henrique Martins propõe teoricamente desdobra-se filosófica e poeticamente no artigo seguinte, “Sociología y parresía: una teoría como nacida de una pesadilla de spinoza”, do sociólogo, filósofo, poeta e escritor colombiano Gabriel Restrepo, que é um dos maiores pensadores universais do nosso continente. O texto faz uma engenhosa aproximação entre a sociologia, as ciências sociais, as artes, as letras e, por fim, as ciências da saúde. E sugere uma sociologia possível para o nosso tempo como mediação entre a racionalidade e o afeto; a teoria e as formas de subjetivação; os jogos entre a conceituação e a escrita de si; a constituição de um limiar entre a palavra e o sentido; a impossibilidade de figuração do irrepresentável e a representação sistemática; no limite, a vigília e o domínio do onírico. A arte tem aqui um papel vital, a poesia, a música, a literatura, o teatro. Há, diríamos, uma “trágica lucidez” no texto do nosso bardo sociólogo, cuja forma estilística, o tipo de escrita é, em si, um chamamento, tem algo de poético e profético, exibe aquela dimensão tão rara entre nossos pares de ser, a um só tempo, ação e revelação, iluminismo e luminosidade, e se imiscuir nas tramas da verdade como apreensão do real e imersão afetiva no si-mesmo.

E o faz, passeando com naturalidade e frescor por filósofos como Nietzsche, Foucault, Lévinas e o próprio Espinosa; poetas como Rilke, de quem apresenta um dos seus maiores poemas: Elegia de Duíno; na psicanálise de Freud e Lacan, por onde vai criando emaranhados com poetas e filósofos do romantismo alemão, como no caso de Novalis, figuras centrais do modernismo e da arte de vanguarda como Mallarmé e James Joyce, a sociologia de Parsons, Weber, Dahrendorf, Habermas, Bauman e tantos mais, tudo isso trespassado pelo seu texto-ensaio, artigo-diário, análise-biografia, em que se misturam memória pessoal, reflexão teórica, conceituação e história da América Latina, da Colômbia, dos sentidos da modernidade e, claro está, do lugar da sociologia, ou de uma sociologia do tempo presente, nisso tudo.

Seguem-se, então, artigos com temáticas mais variadas – sempre rentes ao presente –, que englobam a teoria social e os impasses do dualismo; um esforço de constituição para uma antropologia da Inteligência Artificial; um bom contraponto entre as teses de Pierre Lévy e Paul Virilio; a atualidade da categoria das classes sociais para pensar as sociedades contemporâneas; e a apresentação de algumas reflexões fortemente vinculadas às teses do “atorrede” e de “epistemologias alternativas”. Vejamos brevemente cada um deles.

O oitavo texto, “A superação de dualismos ontológicos da teoria social em Elias e Archer”, Rodrigo Mota trata de um tema comum à teoria sociológica das últimas décadas: a tensão entre agência e estrutura, que se desdobra, claro, em outros dualismos, como os apresentados no artigo. Tendo como base a sociologia da figuração de Elias e a proposta ousada de Archer, o texto já o admite em sua introdução tratar não de uma negação dos dualismos, pura e simplesmente, por serem “reais” ou “fictícios”, e assim aderir às teses da sociologia relacional mais contemporânea, mas ao contrário levá-los em consideração na sua dimensão mais propriamente processual, do que substancial. Temos aqui uma análise fina que se vincula aos problemas da teoria sociológica mais propriamente.

O artigo seguinte, “Perspectivas da internet: um ensaio comparativo entre Pierre Lévy e Paul Virilio”, faz um contraponto bastante sugestivo entre as abordagens de Pierre Lévy e Paul Virilio a respeito das tecnologias da informação, com especial atenção para a internet e suas consequências em todas as dimensões da vida humana e social. Escrito por Eduardo Guedes, que prima pela clareza, distinção e sistematicidade, o texto vai perfilando tema a tema, conceito a conceito, começando por Lévy, reconhecidamente um entusiasta das novas tecnologias – ou não tão novas assim; passando por Virilio, que apresenta um conjunto de críticas e poderia ser até mesmo pensado como um exemplo de análise desencantada do fenômeno; e chegando, por fim, ao contraponto das teses dos autores, com suas possíveis convergências e divergências.

A ele se segue um dos textos mais instigantes deste Dossiê: “Do neuromorfismo à percepção cultural: uma teoria cultural da máquina”, do antropólogo Rafael Damasceno, que nos apresenta uma tese muito original sobre a possibilidade de uso do estruturalismo de Lévi-Strauss e, mesmo, da linguística estrutural de Saussure para se pensar alguns dos impasses e aporias da Inteligência Artificial. O desenvolvimento da análise é muito perspicaz, como poderá ver o leitor ou leitora do texto. Cabe a nós explicitar alguns dos aspectos mais importantes e que logo saltam aos olhos: a) A apresentação arrojada de uma antropologia das inteligências artificiais, atenta à sua gênese, nos experimentos e conceituações das primeiras décadas do século XX, em especial com nomes como Shannon e Turing, e que segue com muita desenvoltura até os tempos atuais; b) e a distinção significativa entre a primeira cibernética e o estruturalismo de Lévi-Strauss, apresentada de um modo bastante inventivo.

Não podendo nos estender mais, devido ao caráter de apresentação deste nosso texto, vale destacar este pequeno parágrafo que sintetiza bem os propósitos do autor, que pode ser pensado como a forma de inserção da sua reflexão em um debate mais amplo que tem dividido o tema das tecnociências em geral, não só da inteligência artificial, entre os que são favoráveis ao avanço, a despeito dos riscos e consequências reais em todas as dimensões, e aos que exercem um criticismo por vezes muito pessimista: “Trata-se menos do desejo (tecnofóbico ou tecnofílico) de saber se as máquinas estão pensando ou podem pensar como humanos, e mais de investigar as ideias que nos fazem pensar que elas podem fazer isso. Em última instância é possível ainda indagar, ao contrário, se o problema não seria o dos humanos estarem pensando como máquinas.”

O próximo artigo, “Classes individualidade e dominação nas sociedades contemporâneas”, se concentra na problemática das classes sociais, como forma de pensar o contemporâneo, as sociedades contemporâneas. O texto de Thiago Panica, escrito num estilo aos moldes de Bourdieu, procura repensar o lugar das classes sociais para a análise do capitalismo tardio sem fazê-lo subsumir em categorias como as de raça, gênero ou etnia, tão ao gosto de certa teoria sociológica mais próxima do relativismo pós-moderno e dos chamados “estudos culturais”, mas também sem desconsiderar o caráter de multideterminação das desigualdades. Seria a categoria de classe social ainda capaz de sintetizar essa mesma multiplicidade? Ainda que não o seja, podemos nos dar ao luxo de colocá-la em suspenso, como se fosse uma categoria vinculada ao contexto histórico e político, para alguns já “ultrapassado”, aquele associado às sociedades modernas industriais?

Por fim, o texto “O debate ontológico-político nas ciências sociais – esforços teóricos em torno das diferenças (entre mundos)” de Carolina Faraoni Bertanha, Sofia Santos Scartezini e Wanderson Barbosa dos Santos, traz uma abordagem muito comum nos estudos contemporâneos, diríamos até hegemônicos em alguns segmentos do campo sociológico: aquele que pressupõe “novas epistemologias”, “viradas ontológicas”, e procura explicitar dimensões sociais e “políticas” na estruturação dos campos científicos, muito pautado por teses como as do “ator-rede” de Bruno Latour, um dos intelectuais mais referenciados para se pensar o tempo presente, em suma, para se fazer uma ontologia do presente.




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por Anders Noren

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