No contexto do quinto encontro do Ciclo de Humanidades “Em busca do conservadorismo perdido?”, trazemos hoje o artigo de Jean-Yves Camus, pesquisador do Observatoire des Radicalités Politiques (ORAP) da Fondation Jean Jaurès, onde é analisado como as extremas direitas europeias estão lidando com a crise do coronavírus. Ao compreender as distintas formas pelas quais as direitas radicais e as extremas direitas na Europa (francesa, alemã, húngara, inglesa, holandesa, belga etc.) interpretam e respondem à crise da pandemia, este texto nos permite comparar o contexto europeu com o que experimentamos com o governo brasileiro. Com isso, podemos ao mesmo tempo identificar como muito do que ocorre aqui espelha movimentos mais globais, e também como estamos diante de certas composições bem singularidades de “nova direita” nacional.
Juntamente com este artigo publicamos hoje a entrevista cedida a nós por Camus. Agradecemos à Fundação Jean Jaurès pela possibilidade de publicação do presente artigo e a Jean-Yves Camus pela gentil entrevista a nós cedida.
A. M.
Fios do tempo, 27 de agosto de 2020
Como as extremas direitas
lidaram com a crise do coronavírus?
Os partidos políticos de direita radical e extrema-direita na Europa compreenderam rapidamente o benefício que poderiam tirar das críticas de seus respectivos governos ao lidar com a crise sanitária. Essas críticas foram adaptadas de acordo com o número de vítimas da epidemia e as medidas de isolamento social em cada país. Para registro [até o dia 15 de maio de 2020], o número de mortes variou de mais de 30 000 (Reino Unido e Itália), depois 26.000 (Espanha e França), a números abaixo de 300 (República Tcheca, Sérvia, Finlândia, Moldávia, Grécia, Luxemburgo), e até menos de 100 nos países bálticos e em parte dos Bálcãs.
O impacto político e psicológico da doença é obviamente diferente, a depender desses números. Também difere conforme os países tenham tomado medidas drásticas de confinamento, limitando os deslocamentos individuais, ou tenham escolhido um isolamento social mais limitado às atividades coletivas (Holanda, Suécia), assim como de acordo com o momento de confinamento e seu atraso em relação à progressão da epidemia (Reino Unido). De modo geral, a comunicação dos partidos de extrema-direita ou da direita radical concentrou-se em três áreas principais: (a) o questionamento da origem animal da epidemia a partir da China, através do recurso a diversas teorias conspiratórias; (b) a crítica à globalização e à abertura de fronteiras, apresentadas como a principal causa da propagação do vírus; (c) e, dependendo do país e dos partidos, a exigência contraditória de medidas governamentais mais rigorosas para limitar a epidemia, combinada com a crítica às supostas violações que o isolamento social impõe às liberdades individuais dos cidadãos. É importante ter em mente que a resposta política dos partidos estudados nesta nota é susceptível de evoluir de acordo com o resultado do desconfinamento e de que haja ou não uma segunda onda de contaminação.
I. A origem da epidemia: as teorias alternativas
A direita radical gosta da ideia de “causas ocultas”, segundo a qual qualquer acontecimento histórico, mesmo se verificado, é de fato causado por causas misteriosas que “o poder”, especialmente a mídia e as “elites”, gostariam de esconder do povo a ação determinante, subterrânea e concertada dos lobbies que governariam o mundo.1 Ora, a pandemia de Covid-19 se presta a perguntas sobre a origem do vírus que, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), é de origem animal e está localizada na China, em Wuhan. Estão circulando teorias alternativas, notadamente nas redes sociais que desafiam as conclusões da OMS, com base em especial no argumento de que esta organização internacional estaria sob influência da China. A influência chinesa dentro da organização teria assim feito com que ela dependesse dos dados fornecidos pela China, atrasando o início das medidas internacionais contra a pandemia. Esta ideia é em si mesma aceitável e merece debate. Tem sido relatado, na forma de questionamento, por muitos meios de comunicação reconhecidos e think tanks de diferentes orientações políticas2, incluindo o movimento de identidade radical de direita.3 Este questionamento legítimo levou vários atores da direita radical a reativar o tema da luta do Ocidente contra o comunismo, encarnado não por Moscou, mas pela China. Por exemplo, Charlie Weimers, deputado europeu pelos Democratas suecos, acusou a China de usar opacidade e mentira por subestimar a escala da epidemia, atitude que, segundo ele, decorre da própria natureza do comunismo. Esta declaração parece estar de acordo com as críticas da direita conservadora americana, e do próprio Presidente Trump, em relação à China como um oponente ideológico e não apenas um rival comercial.
Outros partidos ou personalidades levantaram não apenas a responsabilidade do governo chinês por uma resposta tardia e inadequada à pandemia, mas também a ideia de que o vírus pode ter escapado acidentalmente do laboratório de virologia em Wuhan. Esta teoria, apresentada como uma probabilidade pelo Secretário de Estado americano Mike Pompeo em particular, foi propagada em meados de abril de 2020 na França pelo Professor Luc Montagnier, Prêmio Nobel de Medicina de 2008, e tem sido amplamente comentada pelos representantes eleitos da Assembleia Nacional, Julien Odoul e Gilbert Collard, bem como pelo ex-deputado europeu Jean-Yves Le Gallou, chefe da Fundação Polémia. Seus comentários não são uma aprovação, mas a expressão de uma dúvida: e se o cientista francês estivesse certo contra a “verdade oficial” declarada pela OMS e pelos governos europeus? No entanto, o partido Rassemblement national [novo nome do Front National desde 1o de junho de 2018], não seguiu totalmente os comentários do Professor Luc Montagnier, mas a deputada europeia Annika Bruna, por sua vez, solicitou a criação de uma comissão internacional de inquérito sobre as origens da epidemia, exigindo acima de tudo que a China dê a esta comissão o acesso ao seu território, privilegiando a hipótese de uma transmissão animal ligada à atividade de “mercados úmidos” e o do contato humano com animais selvagens impróprios para consumo.4
Outras teorias, desta vez escancaradamente conspiratórias, estão se difundindo, incluindo a que atribui a Bill Gates um plano secreto segundo o qual o bilionário americano gostaria de aproveitar uma vacina contra a Covid-19, resultante de pesquisas financiadas por sua fundação, para integrar um chip RFID (Radio Frequency Identification) para “rastrear” a população mundial.5 Esta ideia, que é compartilhada por conspiradores que não pertencem à extrema direita, é defendida de outra forma por Marian Kotleba, líder da extrema direita do Partido Popular “Nossa Eslováquia” (LSNS, 8% dos votos), que está convencido de que o rastreamento de pessoas que testam positivo para a Covid-19 resultará na implantação de chips sob a pele de todos os cidadãos.
II. A perspectiva de uma sociedade orwelliana: a direita radical em defesa das liberdades públicas
A sociedade orwelliana é o tipo totalitário de sociedade descrito pelo escritor britânico George Orwell em seu romance 1984, publicado em 1949. Ela se baseia, entre outras coisas, na onipresença de um Estado que monitora os cidadãos, seu comportamento e seus pensamentos, abolindo a liberdade de expressão. A crise da Covid-19 permitiu à direita radical e à extrema direita desenvolver a ideia de que as “elites” tirariam proveito da emergência sanitária para acelerar a imposição de uma forma autoritária de governo. Este autoritarismo pode se manifestar, de acordo com estes críticos, de várias maneiras. Jorge Buxadé, ex-ativista falangista e agora eleito membro europeu da Vox6, critica o governo de esquerda de Pedro Sanchez por ter retirado do controle parlamentar as medidas de confinamento que limitavam a liberdade de movimento. O Rassemblement national francês, que está preparando um “livro negro” da crise da Covid-19, protestou contra a pedagogia adotada pelo governo que, ao votar no início de maio de 2020 para prolongar o estado de emergência sanitária por dois meses, escolheu, segundo o deputado Bruno Bilde, para usar “culpa, infantilização e ameaças” contra os franceses, implicando que o Estado poderia adiar o fim do confinamento, ou mesmo abolir as saídas de férias, se os cidadãos não respeitassem suficientemente as medidas de precaução.7 Outros movimentos mais marginais e ativistas, que não precisam se preocupar com sua credibilidade para governar, têm se manifestado abertamente contra a “ditadura da saúde”, como o partido italiano neo-fascista e católico integrista Forza Nuova, chegando até mesmo, como o Presidente do Partido da França Thomas Joly a denunciarem o próprio princípio do “confinamento de tipo totalitário” que “arruína o país” e, “sob o falso pretexto da saúde pública”, permitirá ao Estado “perpetuar um grande número de medidas liberticidas”.8
De forma mais surpreendente para aqueles que desconhecem sua evolução tática, o partido nacionalista húngaro Jobbik, que agora procura derrotar Viktor Orban aliando-se, se necessário, à oposição de centro-esquerda, se manifestou através da voz do deputado Koloman Brenner para denunciar os ataques à liberdade de imprensa que o governo Fidesz (direita conservadora) justificou com a pandemia.9 A questão do pluralismo da informação também estava na agenda na França quando o governo colocou uma seção em seu site intitulada “Disinfox Coronavirus”, que se destinava a listar artigos considerados “seguros e verificados”, mas de apenas cinco meios de comunicação, nenhum dos quais de direita. Esta forma desajeitada de lutar contra fake news foi apresentada como uma instauração do Ministério da Verdade anunciado por George Orwell, por exemplo no canal de televisão nacionalista e identitário TV Libertés (presente apenas na Internet), no mensal conservador nacional L’Incorrect, no site de identidade Paris Vox e em toda a esfera da chamada “re-informação” próxima à direita nacionalista. Embora estes tenham reagido com suas próprias expressões idiomáticas, deve-se ressaltar que todos os escritórios editoriais da imprensa francesa, de todas as opiniões políticas, repudiaram fortemente a iniciativa governamental, que visava estabelecer informações oficiais, dizendo aos leitores o que eles deveriam ler e o que deveriam evitar.
III. Contra as “elites” e sua “responsabilidade”
Em praticamente todos os países, a direita radical e extrema tem atirado contra os governos em exercício, acusando-os de não estarem em condições de gerir a epidemia. O melhor exemplo desta postura política é a atitude do Marine Le Pen, segundo a qual o Presidente Macron e todo o governo praticaram a “mentira de Estado”, ou seja, como tendo dado aos franceses informações incompletas ou falsas para esconder sua incompetência no campo da saúde pública, Por exemplo, ocultando a falta de máscaras, prometendo então a chegada de testes que, até o momento, não foram distribuídos em massa e, mais seriamente, ocultando as razões que motivaram as autoridades sanitárias a recusar a distribuição maciça de tratamento com hidroxicloroquina, um medicamento anti-malária recomendado pelo Professor Didier Raoult.
Embora esta recusa seja motivada tanto pelos graves efeitos colaterais do tratamento quanto pelas críticas metodológicas feitas contra os ensaios terapêuticos conduzidos por este médico não-conformista, o deputado do Rassemblement national, Gilbert Collard, publicou no site do partido um fórum aberto questionando os supostos “interesses” conjuntos da ex-ministra da Saúde Agnès Buzyn e seu marido Yves Lévy, ex-diretor do Institut national de la santé et de la recherche médicale (Inserm), para retirar o professor Raoult10, a fim de estabelecer seu poder exclusivo sobre a comunidade de pesquisa médica. O Rassemblement National foi assim, a partir de março de 2020, o único partido político francês a recusar absolutamente qualquer política de unidade nacional diante da pandemia, não por sua oposição à política de restrições orçamentárias do governo que diminuiu a capacidade dos hospitais públicos de lidar com o influxo de pessoas doentes, mas porque o partido de Marine Le Pen, por ser um partido anti-sistema, deve, a fim de manter sua credibilidade, opor-se frontalmente a qualquer poder existente. A visão de mundo do Rassemblement National se baseia na oposição entre o povo e as elites, os “enraizados” e os “nômades”, os “patriotas” e os “globalistas”: portanto, só pode partir do preconceito de que o governo está traindo os interesses do povo ao mentir-lhes sobre a pandemia. O Presidente da República e o Ministro da Saúde explicam corretamente que estamos enfrentando uma crise sanitária sem precedentes com um vírus que os melhores cientistas do mundo ainda não conseguiram identificar. O eleitor lepenista não acredita em incertezas: para ele, o poder “sabe” ou “deve saber”. Se ele hesita em suas decisões, é porque está “escondendo” algo além de ser incompetente.
Onde a contenção foi mais rigorosa, os direitistas radicais instruíram uma acusação contra este poder considerado incompetente e mentiroso. Além do Rassemblement national na França, foram os conservadores nacionalistas espanhóis de Vox que usaram os adjetivos mais fortes contra ogoverno (“gestão criminosa”, “obscurantismo”, “perda de credibilidade”, “insulto” aos espanhóis) e ainda mais contra aGeneralidade de Catalunya liderada pelos independentistas, acusados de “sectarismo” e “ódio”. Esta virulência pode ser explicada pelas táticas do movimento, que busca ganhar votos, por enquanto, para o conservador Partido Popular, que é obrigado a mostrar mais contenção, assim como os republicanos na França contra o Rassemblement national.
A situação na Itália também levou a Liga de Matteo Salvini a lançar um duro ataque à coalizão formada por seus antigos aliados do Movimento das Cinco Estrelas (M5S) e do Partido Democrata de centro-esquerda. Tendo deixado o governo, Matteo Salvini tentou um coup d’éclat durante a noite de 29 para 30 de abril passado, ocupando o hemiciclo do Senado com uma dúzia de outros representantes eleitos para denunciar o congelamento econômico, os atrasos no pagamento da ajuda prometida, as restrições à liberdade de movimento e os poderes parlamentares limitados pelo governo Conte durante a crise sanitária. Sua eficácia política foi, entretanto, diminuída pelo fato de que a Lombardia, região que o partido lidera, do qual ela é a ponta da lança e na qual governador Attilio Fontana não teve muito sucesso, foi junto com Milão o epicentro da pandemia na Itália. Matteo Salvini também foi acusado de dupla conversa porque ele, que criticou o atual governo por ter agido sem o Parlamento, havia, em agosto de 2019, deixado a maioria pedindo aos italianos que lhe dessem “plenos poderes” em eleições parlamentares antecipadas que ele não havia obtido. Uma pesquisa realizada em 8 de maio de 2020 pela empresa Omnibus prova que enquanto o Liga permanece no topo das intenções de voto com 26,7%, ele vem diminuindo desde o início da crise de saúde, enquanto o Partido Democrata e o M5S estão ligeiramente acima (21,3% e 16,2%). A surpresa vem de outro partido de direita, o Fratelli d’Italia que, com 14,1%, mais que duplica sua pontuação (6,2%) entre as mulheres européias em 2019. Este partido conservador e soberanista, liderado por uma mulher, Giorgia Meloni, teve um discurso muito duro contra o governo Conte, mas mais construtivo e muito menos histérico do que o de Matteo Salvini. Sua ideologia é muito semelhante à dos pós-fascistas da agora extinta Aliança Nacional, com um forte componente católico que insiste nos valores familiares, levando-a aexigir, durante a epidemia, uma licença parental paga a 70% do salário e um subsídio mensal de quinhentos euros para o cuidado das crianças em casa.
Nos países escandinavos e na Holanda, diante de uma epidemia menos dramática e de um isolamento social mais flexível, os partidos populistas de direita tiveram que reagir de uma maneira diferente. Os democratas suecos, através de seu líder Jimmie Akesson, concentraram seus ataques nas insuficiências do pacote de ajuda financeira apresentado pelo governo para ajudar a economia e em particular as pequenas e médias empresas. O Fórum para a Democracia do holandês Thierry Baudet apoiou o Primeiro Ministro Mark Rutte diante dos países do sul da Europa que queriam unir a ajuda da UE aos estados membros, aos quais a Alemanha e a Holanda se opuseram, ansiosos para não dar aos eleitores a impressão de que teriam que pagar mais impostos para financiar os países, particularmente no sul da Europa, que são regularmente acusados de não controlar seus déficits públicos e de ter uma administração ineficiente.
IV. Uma causa apontada para todos os lugares: a globalização
Finalmente, de uma ponta à outra da direita radical e extrema, como no caso de muitos dirigentes populistas mais mainstream, a crise sanitária provou ser uma oportunidade para denunciar mais uma vez a União Européia (que, no entanto, deixa a competência sobre a saúde para os Estados-Membros) e, sobretudo, a globalização, com um discurso sobre a necessidade absoluta de um retorno às fronteiras: como diz Thierry Baudet, “o Estado-Nação é o futuro”.
Os partidos da direita radical, liderados pelo Rassemblement National, tinham em comum o fato de terem sido os primeiros a advertir sobre os perigos da deslocalização de indústrias que poderiam se revelar estratégicas (como a produção de máscaras e aspiradores). Eles continuaram a ver a imigração como agravando a crise sanitária, seja porque o vírus havia surgido em regiões com comércio considerável com a China (como a Lombardia) ou porque o influxo de imigrantes do Oriente Médio e da África para a Grécia aceleraria a propagação da Covid-19. A ideia geral é, antes de tudo, que a pandemia foi causada pela própria globalização, pois ela gera fluxos contínuos de imigração e viagens. Assim, a Marine Le Pen e a FPÖ austríaca foram os primeiros a solicitarem exames médicos nos aeroportos, inclusive para viajantes intra-europeus. Para estes partidos, existe uma “ideologia globalista”, compartilhada por liberais de esquerda e de direita, cujo objetivo é abolir fronteiras para que o mercado, no sentido econômico do termo, seja o maior e mais aberto possível. A globalização, argumentam algumas partes, permite que certas multinacionais obtenham lucros financeiros em tempos de crise de saúde.
O partido húngaro Mi Hazànk (“Nossa pátria”, 3,31% dos votos nas eleições europeias de 2019) escreve: “Estamos satisfeitos em ver que o governo aceitou nossa ideia de um imposto especial de solidariedade sobre multinacionais e bancos. Ao mesmo tempo, chamamos a atenção do governo para o fato de que aqueles que ganham mais dinheiro como resultado da situação epidemiológica, ou seja, as multinacionais digitais como o Facebook, bem como as empresas de telecomunicações, foram deixados de fora de sua proposta fiscal”. Continuando sobre este assunto, o partido húngaro aborda uma questão que se junta à crítica usual das direitas radicais contra uma globalização que afeta os mais pobres, os mais fracos, nas sociedades ocidentais: Mi Hazànk pede umamoratória sobre as dívidas e os despejos, enquanto em todos os lugares os idosos são descritos como vítimas duplas: da epidemia, que os atinge mais do que a outros; da falta de recursos financeiros disponíveis nos hospitais e nos atendimentos domiciliares, uma vez que as restrições orçamentárias impostas pela União Européia e pelos governos liberais comprometidos com a globalização fariam das pessoas idosas um “fardo” para a sociedade e a economia. Os espanhóis da Vox denunciaram o “gulag” dos lares de idosos, enquanto Geert Wilders do Partido da Liberdade holandês (PVV, 6,46% nas eleições legislativas de 2019), estava twittando sobre visitar os idosos em suas casas eprotestando contra o fato de que os médicos estavam perguntando aos cidadãos idosos se gostariam de ser colocados em respiração artificial em caso de infecção, como se houvesse um desejo quase eutanásico de não tratar os doentes que estavam em maior risco de morte quando contraíram o vírus.
V. A direita radical explorou mau a crise sanitária
A direita radical ou extrema parece ter falhado em desenvolver respostas coerentes à crise sanitária. A velocidade com que a pandemia se espalhou sem nenhuma conexão com os limitados fluxos migratórios observados no final de fevereiro na ilha de Lesbos, e depois em outros lugares da Grécia, invalidou totalmente a exploração da questão da imigração como um vetor de doença. A viagem à Grécia dos deputados europeus do RN Jordan Bardella e Jérôme Rivière, no início de março de 2020, teve pouquíssimo impacto. Enquanto os neonazistas gregos do Aurora Dourada e seus colegas da ELAM (Frente Popular Nacional) no Chipre puderam enviar ativistas para a fronteira greco-turca onde atacaram migrantes e tentaram se opor fisicamente à sua chegada11, eles desempenharam um papel insignificante em uma situação que foi gerenciada pelo governo conservador no poder em Atenas, sua polícia e seu exército. A ameaça da imigração como um vetor da pandemia tem sido usada principalmente como uma denúncia de um suposto desrespeito ao confinamento social em certos bairros com uma alta população imigrante, particularmente os muçulmanos. O movimento Génération identitaire, os polemistas de direita como Éric Zemmour, os sites como o muito popularwww.fdesouche.com e os representantes eleitos do Rassemblement National retransmitiram esta crítica aos que são frequentemente chamados de “os malandros” [les racailles], jovens de origem estrangeira que vivem nos subúrbios das grandes cidades, descritos como não tendo nenhuma preocupação com a saúde coletiva e o interesse geral. Os direitistas radicais pretendem mostrar que um padrão duplo se aplicaria: por um lado, a restrição das liberdades dos cidadãos e, por outro, o laxismo em relação à imigração, que continuaria de forma clandestina. Nigel Farage, fundador do UKIP, queixa-se de ter sido visitado pela polícia porque foi a Dover para filmar um relatório sobre a chegada ilegal de imigrantes. Marine Le Pen, por sua vez, optou por questionar a libertação dos prisioneiros das prisões (uma proporção significativa dos quais são de origem estrangeira) e ficou indignada com o baixo nível de mobilização diante dos atos terroristas em Romans-sur-Isère, Toulouse e Colombes, cometidos por islamistas radicais contra transeuntes e, no terceiro caso, contra policiais. No entanto, este tipo de narrativa, que também liga imigração e delinquência, surgiu muito antes da crise sanitária e permeia o discurso do partido há várias décadas.
A direita radical falha por outras razões. Em países como Hungria e Polônia, uma direita muito conservadora e nacionalista está no poder e lhe deixa muito pouco espaço. A Hungria fechou suas fronteiras muito rapidamente e a pandemia permaneceu muito limitada, como na Polônia, onde o governo, no entanto, entrou em dificuldades ao manter, contra toda cautela, a eleição presidencial de 10 de maio apenas com o voto por correspondência e depois provando ser incapaz de organizá-la. Mas Krysztof Bosak, o candidato da direita radical (coalizão Konfederacja Wolność i Niepodległość), creditado com 9% das intenções de voto na véspera das eleições, permanece para o PiS um oponente de segundo escalão. Outra dificuldade da direita radical é que os governos dos países mais afetados, Espanha e Itália, administraram bem a crise, assim como na Alemanha a chanceler Angela Merkel permitiu que seu país fosse relativamente poupado, de modo que a AfD não teve muitos argumentos e atingiu seu nível mais baixo de intenções de voto desde 201712 e está até mesmo diante do nascimento de um partido, Widerstand 2020 (“Resistência 2020”) nascido de manifestações de rua contra o confinamento, com um forte tom conspiratório (evoca a “mentira da mídia” sobre a epidemia, que vê como uma simples gripe e inclui muitos oponentes à vacinação).
Nesta fase [em 15 de maio], duas formações desta corrente parecem estar aproveitando a crise, de acordo com as pesquisas. O primeiro é o Vlaams Belang (VB) na Bélgica, que passou para o topo das intenções de voto na Flandres antes da N-VA (New Flemish Alliance, partido nacionalista flamengo) liderado pelo prefeito de Antuérpia, Bart De Wever. A partir de 2019, a VB foi creditada com 27,3% das intenções de voto em comparação com 22% para seu rival. Enquanto a N-VA está considerando condicionalmente participar mais uma vez de um governo federal belga, a VB jogou a cartada do chauvinismo linguístico contra os francófonos e da xenofobia contra a população de origem marroquina e turca. Quando a N-VA distribuiu material informativo multilíngue sobre medidas preventivas para a população de Antuérpia, ele foi imediatamente levado à tarefa por Vlaams Belang, para quem, e cito, “nosso povo deve ser protegido primeiro” e as informações devem ser fornecidas somente em holandês. A partir de 14 de março, umapesquisa colocou o equilíbrio de poder em 28% para o VB e 20% para o N-VA. Finalmente, o índice de popularidade de Marine Le Pen, em uma pesquisa realizada pela Elabe em 7 de maio, aumentou 3 pontos para 26%, enquanto a confiança nas ações do Presidente Emmanuel Macron diante da crise caiu drasticamente (34%, ou -10%) e a confiança nas ações do Primeiro Ministro Edouard Philippe também caiu para 34% (-2%).
* Artigo publicado originalmente em 15 de maio de 2020 no site da Fondation Jean Jaurès, com o título Les partis d’extrême droite européens et la crise du covid-19.
Notas
1 Ver em especial: Rudy Reichstadt e Jérôme Fourquet. “L’épidémie dans l’épidémie : thèses complotistes et Covid-19”, Fondation Jean-Jaurès, 28 mars 2020.
2 Na França, temos o Institut Montaigne, os jornais Le Figaro e Le Monde e a edição francesa do The Epoch Times, que reporta em 6 de abril de 2020 o lançamento de uma campanha intitulada “Taiwan para Todos”, inspirada na linha bem anticomunista e anti-Pequim deste jornal diário, que se diz próximo ao movimento Falun Gong e que atribui ao Partido Comunista Chinês uma ação concertada em apoio ao “terrorismo islamista”, como Yasser Arafat e a OLP, com o apoio da “extrema esquerda no Ocidente”. Ver “Como o espectro do comunismo governa o mundo”, The Epoch Times, 7 de maio de 2020.
3 Ver “L’OMS est-elle sous l’influence de la Chine ?”, Breizh-Info, 24 avril 2020.
4 Ver Annika Bruna, “Pour combattre les causes du coronavirus, exigeons une Commission d’enquête internationale indépendante sur son origine”, Rassemblement national, 6 mai 2020.
5 Ver em especial “Covid-19, vaccins et 5G : les délires complotistes de Juliette Binoche sur Instagram”, France Inter, 7 mai 2020.
6 Advogado, ele foi candidato em 1995 do movimento Falange Espanhola das JONS nas eleições na província de Tarragona, antes de se juntar em 1996 a um grupo rival, Phalange española, então o Partido Popular (direita conservadora).
7 Ver Bruno Bilde, “Culpabilisation, infantilisation, menaces : le gouvernement renvoie les Français à l’école maternelle avant la déconfiture”, Rassemblement national, 4 mai 2020.
8 Ver sua entrevista “Le confinement impose un contrôle de masse de type soviétique et ruine le pays !”, no site Riposte laïque, 28 de abril de 2020, cuja razão de ser quase-obsessiva é a denúncia não apenas do islamismo, mas do islã em todas as suas formas.
9 Ver Ariane Chemin, “Les regrets d’Agnès Buzyn : ‘On aurait dû tout arrêter, c’était une mascarade’”, Le Monde, 17 de março de 2020. Koloman Brenner é um universitário que pertence à minoria alemã na Hungria.
10 Ver Gilbert Collard, “Covid-19 et chloroquine : mais quel courroux anime le couple Buzyn-Lévy contre le Professeur Raoult ?”, Rassemblement national, 24 de março de 2020.
11 ver Patroclos, “Tales from the Coffeeshop: Coronavirus diplomacy – enough is never enough”, March 15 de 2020, disponível em: cyprus-mail.com/2020/03/15/tales-from-the-coffeeshop-coronavirus-diplomacy-enough-is-never-enough/. Ver também este artigo em grego.
12 Uma sondagem Kantar de 18 de abril de 2020 para o semanário Bild am Sonntag o coloca com 9 % das intenções de voto.

Jean-Yves Camus (nascido em 1958) é um cientista político francês, pesquisador do Observatoire des Radicalités Politiques (ORAP) da Fondation Jean Jaurès, especialista de movimentos de direita radical e extrema direita na Europa. É também pesquisador do IRIS (Institut des relations internationales et stratégiques). Autor de vários livros, dentre eles, com Avec Nicolas Lebourg: Les Droites extrêmes en Europe, Paris, Le Seuil, 2015.


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