Há uma tendência global de contestar a lisura das eleições. Isso também ocorreu no Brasil, como era de se esperar. O último fato foi a ação do PL, que teve resposta imediata do ministro Alexandre de Moraes, que não apenas a rechaçou como também multou a coligação por calúnia. Como interpretar esta tendência global? E o caso brasileiro? O que fazer diante desses fatos?
Alessandra Maia nos traz sua reflexão sobre estas questões no texto de hoje no Fios do Tempo.
Desejamos, como sempre, uma excelente leitura.
A. M.
Fios do Tempo, 26 de novembro de 2022
Calúnias como manobras políticas:
a difamação das eleições no Brasil
Na última quarta-feira, dia 23 de novembro, enquanto aguardava o início do primeiro jogo da Argentina na Copa do Mundo contra a Arábia Saudita, respondi a algumas perguntas sobre política para um canal de notícias[1]. O assunto era a tendência mundial de contestar resultados eleitorais no tempo recente. Uma das questões que surgiram, foi exatamente o fato de que a tendência de contestar eleições não é restrita ao Brasil e representa um dos maiores desafios contemporâneos para a democracia.
Apesar das eleições de 2022 já terem terminado, o debate em torno do resultado já divulgado e homologado da votação ainda continua em cena. Naquele dia, a coligação Pelo Bem do Brasil, da qual faz parte o Partido Liberal (PL), legenda do presidente da República Jair Bolsonaro, foi multada em R$ 22,9 milhões por litigância de má-fé, após pedir a anulação do segundo turno, apontando suspeita sobre o bom funcionamento das urnas eletrônicas.
Antes mesmo de saber desse resultado, o episódio de mais um capítulo do movimento de contestação das eleições observado no Brasil, era ponto pacífico notar que tais manobras de contestação alimentam apoiadores do presidente a acamparem em frente a quartéis pedindo a anulação do pleito e, em alguns casos, uma intervenção federal.
O caso do Brasil não é isolado e indica uma tendência global de questionamento de processos eleitorais, antes vistos como uma das ferramentas mais importantes para democracias. Em 2020, o então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, acusou de fraude as eleições que o retiraram da Casa Branca. A retórica ganhou adesão de parte do eleitorado americano, que nas recentes eleições legislativas respondeu elegendo mais de 160 congressistas que negam ou questionam as eleições de 2020.
Essa tendência também não é restrita ao continente americano. Em Israel, em 2021, Benjamin Netanyahu acusou as eleições que elegeram a nova coalizão que iria substituí-lo no poder de serem “a maior fraude eleitoral da história da democracia”. E neste ano, na Itália, antes mesmo da votação do pleito que elegeu Giorgia Meloni primeira-ministra, acusações de que as eleições teriam sido fraudadas já circulavam nas redes sociais. Ou seja, a despeito de serem eleitos – como efetivamente o foram – políticos da extrema direita global insistem em atacar o método que os permitiu alcançar o poder, para nele se perpetuarem.
Para pensar sobre o assunto em contexto global, um primeiro ponto é considerar que a crise financeira de 2008 funcionou como estopim da tendência. O fenômeno de contestação das eleições remete à crise financeira global de 2008, que nos anos seguintes se alastrou pelo mundo, gerando crises econômicas e de trabalho[2] Isso levou a mudanças na cadeia de produção do capitalismo e a uma reacomodação que significou perdas de postos de trabalho, falências de sistemas econômicos e revisão de aposentadorias.
A atual crise de escassez de recursos observada no mundo e as mudanças climáticas também tiveram um papel nesse contexto e desencadearam uma urgência por respostas rápidas e busca por culpados. Nesse contexto, observa-se uma empreitada autoritária, em diferentes países, de figuras que usam o voto para ações que vão contra a rotina democrática. Nesse sentido, também contra as eleições ou tentando instrumentalizar as eleições para tentar se manter no poder continuamente. Isso é um sintoma grave, mas toma tal vulto e pode ser visto em tal contexto de crise porque mobiliza as emoções. As pessoas estão sem trabalho, estão em sofrimento e por isso também querem soluções rápidas.
A busca por soluções rápidas, galvanizando a insatisfação popular, é grave e já foi responsável por guerras no passado recente. Se observado o contexto da Segunda Guerra Mundial e a situação da Alemanha que antecede a guerra, carestia e perda dos postos de trabalho, militarismo, preconceito e exclusão em ambientes antes prósperos formaram o estopim e berço que elegeu Adolf Hitler. Hitler é eleito e põe em prática uma proposta extremamente autoritária, mortal, a empreitada nazista.
Se à época de Hitler, jogos olímpicos, rádio e cinema eram as principais formas da propaganda nazista, as redes sociais hoje têm poder análogo de amplificação do discurso outrora observado em tecnologias anteriores voltadas para a comunicação.
As redes sociais hoje, se entendidas como tecnologia de massa, operam de modo análogo ao que se propagava no rádio ou na televisão, quando divulgada uma determinada mensagem, ela rapidamente se amplia. As pessoas estão se habituando ao ambiente das redes. Mas é possível destacar nisso também um processo com limitações. As redes sociais já têm mecanismos de acompanhamento de conteúdos, de denúncia, então a possibilidade de aperfeiçoamento dos controles que já existem é um caminho produtivo. Investir em prestação de contas sobre conteúdos veiculados é a forma mais saudável de lidar com as calúnias e inverdades que você pode receber via rede social.
Um dos maiores desafios contemporâneos para a democracia, contudo, está na tendência de contestar eleições, o que é grave. O grande problema não é a acusação de fraude em si, mas sim a produção de calúnia. É obvio que todo e qualquer sistema político deve ter prestação de contas, deve estar aberto a ampla consulta, a amplo acompanhamento. Isso existe no Brasil. O problema da atual proposta do presidente e do PL sobre fraude nas eleições é que ela não se baseia em provas. Ela se baseia simplesmente na contestação que visa causar turbulência. E isso deveria também ser avaliado como ato de má-fé. Porque quando você acusa sem provas, na verdade você não está acusando, está produzindo uma calúnia.
Ou seja, em última análise, a retórica contra as eleições é grave porque as eleições são a forma crucial de se solucionar decisões em que existe discordância. O princípio fundamental da eleição é que você vai votar sabendo que o voto em disputa que alcance a maioria terá de ser respeitado. São as regras do jogo. Você não pode simplesmente contestar as regras do jogo se o seu voto não se concretiza, porque isso faz parte do jogo. É como se você fosse para um jogo de futebol, e quando o resultado do jogo acaba em 2 a 1, você não aceita porque resolve dizer que não quer mais aceitar gols como critério para o resultado da partida. Obviamente é algo danoso à democracia, porque o voto é uma conquista muito importante. Se pensarmos na história democrática no Brasil, o voto só foi rotinizado para toda a população a partir de 1988.
Notas
[1] https://sputniknewsbrasil.com.br/amp/20221124/acusar-eleicao-de-fraude-e-uma-tatica-politica-que-mira-o-emocional-do-eleitorado-dizem-analistas-26106230.html
[2] Sobre o assunto ver Maia & Faria. Crise e Populismo: Conceitos e implicações. D & D, n . 2 1, 2 0 2 1, pp. 24 -40. Disponível em https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/56256/56256.PDFXXvmi=

ALESSANDRA MAIA é professora de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Possui experiência em ensino e pesquisa em teoria política; sociologia política comparada no Brasil para estrangeiros, estudos da linguagem e tradução; manifestos políticos, análise e aplicação do Manifesto Database (https://manifesto-project.wzb.eu/); políticas interseccionais no Rio de Janeiro, alianças nacionais e internacionais ( saúde, gênero, racismo, violência, educação, partidos, eleições e conselhos na cidade)
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