Como pensar a atual crise da verdade na democracia? Trazemos hoje duas contribuições feitas em torno da publicação de “Democracia e verdade: uma breve história“, da historiadora norte-americana Sophia Rosenfeld (Ateliê de Humanidades Editorial, 2023).
Antes de tudo, publicamos a gravação legendada e editada em português do lançamento do livro ocorrido em 02 de fevereiro. Foi uma conversa rica e agradável com Sophia Rosenfeld, uma intelectual que transborda ao mesmo tempo conhecimento e gentileza, com as participações de Lucas Faial Soneghet (UFF), Zé Szwako (IESP-UERJ), Mariana Kuhn de Oliveira (Cebrap), Matheus Guterres Brum (tradutor do livro, UFRGS), Igor Costa do Nascimento (tradutor do livro, UFRGS) e André Magnelli (editor do livro, Ateliê de Humanidades)
Além disso, publicamos no Fios do Tempo o texto “A verdade e suas consequências”, em que Sophia expõe de forma sintética suas teses sobre como pensar a atual crise da verdade na democracia e como responder a ela.
Desejo, como sempre, uma excelente leitura; e também uma ótima escuta.
A.M.
Fios do Tempo, 08 de março de 2023
Verdade e consequências:
como pensar a atual crise da verdade na democracia?
A sabedoria convencional diz que para que a democracia funcione, é essencial que nós – os cidadãos – concordemos de uma forma mínima sobre como é a realidade. Não somos todos obrigados, é claro, a pensar da mesma forma sobre grandes questões, ou acreditar nas mesmas coisas, ou manter os mesmos valores; na verdade, espera-se que não o façamos. Mas, de uma forma ou de outra, precisamos ter adquirido uma compreensão muito básica e compartilhada sobre o que causa o quê, o que é amplamente desejável, o que é perigoso, e como caracterizar o que já aconteceu.
Alguns cientistas sociais chamam isso de “conhecimento público”. Alguns, mais cinicamente, o chamam de “verdade útil” [serviceable truth] para enfatizar sua qualidade contingente, socialmente construída. De qualquer forma, essa é a base sobre a qual a política democrática – na qual nenhuma pessoa ou instituição tem autoridade exclusiva para determinar o que é o quê e todas as reivindicações são, em última análise, passíveis de revisão – deve repousar. Ela é imaginada também como um dos produtos mais exaltados do processo democrático. E, até certo ponto, esta versão peculiar e bagunçada da verdade se manteve nas democracias liberais modernas, incluindo os Estados Unidos, durante a maior parte de sua história.
Ultimamente, no entanto, até mesmo este tipo de consenso mínimo tem se mostrado fugidio. A questão não é apenas que existem profissionais da retorsão que falam sobre “fatos alternativos” ou que tenha existido um presidente dos Estados Unidos e do Brasil curvando a verdade e espalhando teorias de conspiração a cada esquina, desde os comícios em massa até os protestos no Twitter. O problema mais profundo deriva do crescente senso que todos nós temos de que, hoje, mesmo provas duras do tipo que costumavam resolver argumentos sobre questões factuais não vão persuadir as pessoas cujos compromissos políticos já as levaram à conclusão oposta. Ao contrário, os cidadãos agora pertencem a “tribos epistêmicas”: a verdade de alguém é o embuste ou a mentira de outro alguém. Basta ver como as pessoas de diferentes tendências políticas interpretam de forma diferente as evidências do aquecimento global ou as conclusões do Relatório Mueller sobre o envolvimento russo na campanha presidencial de Trump em 2016. Além disso, muitas dessas mesmas pessoas também estão agora convencidas de que as fronteiras entre verdade e inverdade são, no final das contas, tão subjetivas quanto tudo o mais. Seria tudo uma questão de percepção e de retorsão; nada é imune, e não importa realmente.
À beira do penhasco
Então, o que aconteceu? Por que se tornou tão difícil conseguir o assentimento até mesmo de reivindicações factuais básicas (além das logicamente demonstráveis, como 2 + 2 = 4)? Ou, dito de outra forma, por que nós – quer dizer, as pessoas das mais diversas convicções políticas – estão se queixando de tantas dificuldades para chegar a um sentido mais amplo do mundo além de nós mesmos e, mais ainda, a algum consenso acerca de quais são as instituições, os métodos ou as pessoas em que podemos confiar para nos deixar guiar? E por que, em última análise, tantos de nós parecem simplesmente ter desistido da possibilidade de encontrar algumas verdades em comum?
Essas são questões que parecem especialmente carregadas, precisamente devido à relação tradicionalmente estreita, conceitual e histórica, entre verdade e democracia como valores sociais. Como diz a teoria, a saúde de uma, a verdade, continua vital para a saúde da outra, a democracia. Esta é a razão pela qual muitos comentaristas se preocupam atualmente com este emparelhamento indo, de mãos dadas, rumo a um penhasco.
As explicações padrão dos comentadores das mídias se concentram no curto prazo. E o analista midiático não está errado em ver uma “disruptura” significativa na forma de desenvolvimentos recentes, particularmente na mídia, na tecnologia e no direito, vistos como culpados. Contudo, ao contrário de alguns outros comentadores, eu evito acrescentar à mistura de culpados a teoria pós-moderna que foi cultivada nas universidades americanas do final do século XX – pois é um engano no meu entender. O processo, que se deu nos Estados Unidos com o interesse do governo Reagan em desregulamentar a comunicação, começou no contexto da rádio no final dos anos 1980 e, em seguida, da TV a cabo nos anos 1990. As “notícias” se transformaram em uma mistura de entretenimento e animação partidária, muitas vezes com foco no que melhor poderia suscitar indignação ou medo. Rush Limbaugh e, logo depois, a Fox News, desempenham um papel fundamental nesta história.
E então, apenas alguns anos após o início do novo milênio, a ascensão da Internet e, especialmente, das empresas de mídia social como Facebook, YouTube e Twitter transformou ainda mais o mundo da comunicação e, consequentemente, as pretensões de verdade. Ao reduzir o custo de entrada e estender o alcance potencial de todos a proporções globais, as mídias sociais produziram muito menos a democratização de informações valiosas previstas pelos tecno-utópicos do que o seu oposto. Os guardiões [gatekeepers] tradicionais, com sua importante função de verificação, deram lugar ao indivíduo privado empoderado e muitas vezes anonimizado para a cobertura das notícias, encarregado de fazer suas próprias determinações. Mas a cacofonia resultante, aparentemente levada a novos níveis numa era de hiperabundância de informação, empurrou também todos nós simultaneamente (e paradoxalmente) para comunidades fechadas virtuais ou, na verdade, para um tribalismo online no fronte epistêmico.
O resultado? Inverdades – isto é, informações que poderiam ser descritas como não verificadas, enganosas, ou uma mentira completa – têm se espalhado com nova facilidade e abandono, e muitas vezes com efeito antidemocrático.
Uma atitude peculiar
No entanto, nesta conversa, por si só agora completamente global também, falta em grande parte uma perspectiva de longo prazo. Quero dizer, com isso, que precisamos remontar às raízes da democracia moderna nos anos 1770, 1780 e 1790, e não apenas às disrupturas que começaram nos anos 1990. Muito simplesmente, é impossível entender a crise da verdade hoje em dia sem explorar o dilema que foi essencialmente cozinhado na política democrática desde o início. Na ausência de uma única fonte de respostas autoritárias, era inevitável que batalhas prolongadas e muitas vezes ferozes irrompessem sobre o que contava como verdade e, mais ainda, sobre quem tinha que dizê-lo, e com que fundamentos.
Uma atitude peculiar em relação à verdade caracterizava a democracia a partir do momento de seu renascimento moderno. Os Estados monárquicos do Ancien Régime da Europa se orgulhavam principalmente por sua capacidade de controlar o fluxo de informações e determinar suas fontes oficiais. Em contraste, na visão dos pais fundadores dos Estados Unidos e de seus homólogos internacionais, era preciso que houvesse publicidade e colaboração entre os cidadãos para chegar a um conhecimento que reunisse um amplo consenso. A verdade útil (para usar novamente esse termo do século XXI) viria como resultado de uma deliberação pública permanentemente aberta entre diferentes tipos de pessoas com diferentes relações com o conhecimento (verdade) e com a virtude (veracidade). Alguns poucos desempenhariam papéis especiais de liderança, seja dentro ou fora do governo, graças à sua sabedoria e, mais tarde, ao treinamento (é claro que ambos implicavam geralmente também em alguma determinação relativa ao gênero, à raça e à riqueza), e o resto da população acharia útil ouvir a palavra desses “especialistas”. Mas as pessoas comuns também informariam a essas elites sobre suas próprias coisas, assumindo de forma mais acolhedora o mundo nascido primariamente da experiência de viver nele. Assim seguiria a verdade na democracia, para frente e para trás. Com apenas alguns princípios para torná-la operacional, incluindo o gosto pelo discurso simples [plain], algum grau mínimo de confiança em outros, e uma estrutura legal que combinava votos ocasionais com proteções para o discurso antes e depois, a Verdade (com T maiúsculo) acabaria prevalecendo, assim como John Milton havia imaginado muito antes do início da era da democracia moderna.Mas não foi nada disso que aconteceu. Não só esta visão do “público” sempre foi marcada na prática tanto por suas exclusões quanto por suas inclusões. Não só o “mercado de ideias” se tornou cada vez mais uma metáfora falsa, na medida em que nem os mercados nem as pessoas podem ser contadas para tender em direção ao racional ou ao verdadeiro. Da mesma forma, o ideal do processo da verdade democrática tem sido ameaçado repetidamente desde o final do século XVIII pelos esforços de alguma das legiões epistêmicas – de um lado, as que defendem a verdade dos experts e, de outro, as que advogam pelas verdades do povo – em monopolizar a verdade, ou seja, tirá-la da esfera pública em disputa e capturar o poder que adviria do fato de possuir o direito exclusivo de definir o que conta como uma verdade e o que não conta. De fato, tanto o fracasso do compromisso no caminho para o consenso quanto a ameaça de captura por uma parte da população só cresceram desde o século XX, pois a desigualdade econômica e, consequentemente, a desigualdade com base no nível educacional e em todas as outras manifestações mensuráveis de disparidade (tudo se tornando possível em parte por causa da ascensão das elites que produzem conhecimento) se expandiram sem parar. O mundo aparece extremamente diferente para as pessoas cujas vidas são vividas apenas muito raramente em comum.
Os refinamentos da falsidade
Por um lado, as elites de todos os tipos têm tentado constantemente reforçar sua própria autoridade desde que as primeiras conversas sobre a construção de repúblicas modernas ocorreram no final do século XVIII.
Este é o caso mesmo quando a democracia, e especialmente o sufrágio, se expandiu formalmente ao longo dos anos. Originalmente, James Madison e outros autores da Constituição dos EUA imaginavam que a república seria dirigida pelos mais virtuosos e mais sábios, entendidos como aqueles com uma relação especial com a verdade, bem como com a propriedade. Então, no século XIX, a gestão da verdade tornou-se cada vez mais o domínio dos “profissionais”, “especialistas” e, sobretudo, “especialistas”, todas as novas cunhagens indicando a crescente divisão do trabalho ligado à verdade como forma de conhecimento adquirido através de treinamento nos métodos, na moral e na terminologia associada às ciências, tanto naturais quanto sociais.
Essa tendência só se intensificou e globalizou no século XX. Os últimos setenta anos, em particular, foram marcados pelo poder crescente, em grande parte do mundo, dos tecnocratas, tanto dentro como fora do governo propriamente dito. Pense na União Europeia, com seus infinitos grupos de trabalho, jargão técnico (e muitas vezes ininteligível), relatórios com milhares de páginas, e o que muitos europeus consideram como sendo sua concepção insular e antidemocrática da formulação de políticas. Washington não poderia parecer tão diferente. Como os críticos gostam de salientar, o risco contínuo de deixar que “especialistas” altamente treinados monopolizem o negócio de determinar a verdade na esfera pública não é apenas o fato de que eles usarão esse conhecimento para criar políticas erradas que parecem não ter relação com a vida ou o senso do mundo real. É também que eles acabam ameaçando o próprio processo democrático, no qual a tomada de decisões populares também é considerada importante.
Mas, por outro lado, este impulso tecnocrático também raramente passou despercebido. De fato, o efeito rebote também data do final do século XVIII, quando os opositores das primeiras constituições estaduais e depois da constituição federal enfatizaram que “o povo” havia sido privado da oportunidade de colocar suas próprias percepções de senso comum sobre o mundo no centro da compreensão. Em vez disso, tinham sido enganados, como disse um anti-federalista, por “talentos maquiavélicos (…) que primam pelo engenho, artifício, sofisma e refinamentos da falsidade, que podem assumir a aparência agradável da verdade e desorientar o povo nos meandros do erro” (“Centinel” [provavelmente Samuel Bryan], em To the People of Pennsylvania, 12 de Janeiro de 1788). Este estilo “populista” de política só cresceu no século XIX também, bem ao lado da explosão da expertise. Agora parece estar tendo um momento particular de ressurgimento enraizado na ideia de que elites de todos os tipos formaram uma cabala global, desejosas de controlar tudo, a começar pelo próprio conhecimento. Líderes populistas e porta-vozes em países ao redor do mundo, incluindo os Estados Unidos, reavivaram nos últimos anos uma narrativa tradicional na qual o ponto de partida é que o povo real foi intelectualmente desapropriado, ou seja, privado de sua liderança natural enraizada em seu sentido coletivo do mundo. Mas tudo isso pode ser corrigido, de acordo com esta história, uma vez que essas pessoas reais possam substituir de novo a versão arcana e autoreferente e autointeressada que seria oferecida pela imprensa “mainstream”, pelo estabelecimento acadêmico e pelo “deep state” – em suma, os vários domínios das elites da verdade – por sua própria versão da verdade populista, enraizada na fé, no instinto e na experiência prática, para não mencionar na autenticidade.
Isso sempre foi assim?
No seu melhor, esta insistência sobre as percepções do povo comum pode ser uma correção vital para a arrogância e a dominação especializada. Mas como deve ser evidente, quando a retórica populista começa a determinar como a política é praticada, o risco não se torna novamente apenas uma má política, neste caso da variedade simplista “Eu-me-isolo-de-meus-vizinhos-construindo-um-muro-em-meu-quintal-então-a-nação-deveria-fazer-o-mesmo”. Ironicamente, surge a ameaça de que uma política igualmente antidemocrática e antipluralista prevaleça, desta vez visando indivíduos e grupos associados à expertise e à tecnocracia e empurrando suas vozes dissidentes (e muitas vezes as de seus aliados mais marginais, como os imigrantes) para fora de qualquer conversa mais ampla. Então, potencialmente, o caminho será aberto para um líder demagógico vir à tona, alguém que afirma falar por essas pessoas reais e seu senso do mundo melhor do que qualquer outra pessoa pode.
No entanto, devêssemos concluir talvez que não temos nada com o que nos preocupar, que isso tem sido sempre assim. As lutas por pretensões de verdade são simplesmente o preço que temos que pagar por viver numa democracia. Por esta forma de pensar, estamos apenas em um momento particularmente áspero. Ou talvez preferíssemos dar um adeus a tudo isso; afinal, a democracia pode às vezes parecer uma forma inteligente de fazer passar várias formas de exclusão, dominação e injustiça. A verdade poderia plausivelmente ser vista como apenas mais uma de suas mitologias perniciosas, especialmente nesta era de desigualdade arraigada. Poder-se-ia certamente argumentar que seria necessária uma verdadeira reformulação de nosso sistema econômico e financeiro antes que a verdade, mesmo em sua forma mais elementar, pudesse ter qualquer significado ou origem real e compartilhada.
No entanto, eu argumentaria a favor da importância de trabalhar para manter viva a verdade, mesmo a “verdade útil”, como um ideal, precisamente por causa de suas vantagens potenciais como ferramenta e fundamento do político. Alguns tipos de verdade – pense na verdade da física ou de outras ciências “puras” – podem ser capazes de sobreviver adequadamente sem democracia. Entretanto, os melhores aspectos da democracia liberal não podem sobreviver sem algum compromisso de encontrar qualquer forma comum de ver e falar sobre o mundo que assuma a marcação [imprimatur] da verdade, pelo menos provisoriamente.
A verdade é importante como fundação para a confiança interpessoal. Ela importa porque não podemos falar uns com os outros, muito menos conduzir um debate sério, até compartilharmos alguns princípios e fatos sobre o mundo em geral, para não mencionar um consenso sobre como gerá-los. Como, por exemplo, podemos alguma vez decidir sobre uma política de trabalho séria se não podemos concordar se a taxa de desemprego subiu ou desceu ou até mesmo sobre como descobrir quantas pessoas estão lá fora procurando trabalho? Acima de tudo, a verdade é importante – embora isso raramente seja discutido na maioria das atuais conversas sobre se estamos realmente na “pós-verdade” – como uma forma de aspiração coletiva. Por esta forma de pensar, a grande vantagem da democracia não consiste tanto nos resultados empíricos que ela produz, mas nas oportunidades – a segunda ou a terceira ou mesmo as múltiplas chances – que ela oferece aos cidadãos, que podem discordar bastante tendo a possibilidade de tentar corrigir as coisas. Somente se pudermos imaginar a possibilidade de progressos morais e epistêmicos – isto é, de progredir longe de mentiras, propagandas e retorsões em direção a uma visão mais verdadeira e consensual da realidade, por mais fugidia que seja – poderemos começar a estreitar as brechas entre a teoria democrática e o mundo em que realmente vivemos e operamos. Com efeito, isso significa que, por mais traiçoeiro que seja o terreno, não podemos desistir de tentar – dentro da estrutura do pluralismo – encontrar algumas convicções elementares sobre a natureza da realidade que podemos sustentar em comum. Nosso futuro depende da nossa capacidade de ver, assim como de viver, em um mundo compartilhado.
Este texto foi publicado originalmente na The Hedgehog Review, summer 2019.
Sua publicação em português foi sugerida pela própria autora, autorizada gentilmente pela revista.
A tradução, assim como algumas adaptações, foram feitas por André Magnelli

Sophia Rosenfeld é historiadora e professora da Universidade de Princeton, especialista em história intelectual e cultural europeia, com ênfase no Esclarecimento, na Era Transatlântica das Revoluções e no legado do século XVIII para a democracia moderna. Além de Democracia e Verdade, publicou: Common Sense: A Political History (Harvard University Press, 2011) e A Revolution in Language: The Problem of Signs in Late Eighteenth-Century France (Stanford University Press, 2001).
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