Fios do Tempo. O que é ser traído? Criação repetitiva e estrutura ritual na peça Julius Caesar (Cia dos Atores) – por Fábio Costa

Neste belo final de tarde de domingo, o Fios do Tempo traz mais um brilhante texto do filósofo e professor Fábio Costa, baseado na peça Julius Caesar – Vidas Paralelas (Cia. dos Atores, Rio de Janeiro), inspirada em Shakespeare.

Não se tratando de uma crítica teatral, como diz logo de partida, este texto faz uma reflexão sobre o que é ser traído a partir da criação repetitiva operada pela Cia dos Atores ao narrar a tragédia de Júlio César. Com isso, ele põe uma interrogação antropológica a respeito da repetição e da estrutura ritual na história. Isso é feito recorrendo ao signo divinatório de Irosun no oráculo do jogo de búzios, que se conecta com uma reflexão sobre o destino e a finitude, o agir e a persistência, o signo e sua repetição, a certeza, a armadilha e a ilusão, o chão, o buraco e sua beira…

Desejamos, como sempre, uma excelente leitura.

A.M.
Fios do Tempo, 12 de fevereiro de 2023


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O que é ser traído?

Criação repetitiva e estrutura ritual
na peça de teatro Julius Caesar (Cia dos Atores)

O Rio de Janeiro deve se regozijar por ter em cena a peça Julius Caesar – Vidas Paralelas, adaptação da obra quase homônima de William Shakespeare, levada ao palco pela Cia dos Atores. Contudo, este texto não é uma crítica teatral. É sobre algo mais grave, o qual não cabe em gêneros. 

Em primeiro lugar, é preciso dizer que a Cia dos Atores compreendeu o elemento fundamental do texto. Assim, fizeram efetivamente teatro, talvez em um sentido tão originário que sequer suspeitem. É uma das raras vezes em que uma adaptação é criação repetitiva, ou seja, uma criação que mostra como a estrutura fundamental se repete. Nosso tempo faz profissão de fé da linearidade, da história em linha reta, na qual a repetição é impossível, ou mesmo que a exemplaridade do passado é uma impossibilidade. Nosso tempo considera a repetição um estorvo, anseia por novidades; crê no presente como pedras que soterram o passado. Esse é um dos motivos pelos quais não compreendemos fenômenos como rituais, supondo que repetições são mecânicas, desprovidas de criatividade, geleiras que sufocam o ardor da espontaneidade. Ignoram que, quanto mais espontâneos, mais se repetem, arrastados que são pelo destino. Do destino, então, nem sequer se dão conta os de hoje. O ódio à repetição e o entusiasmo místico pelo progresso infinito aniquilam a possibilidade do comum, daquilo que é “de início e na maioria das vezes”, ou aquilo que poderia se chamar de “condição de possibilidade”. 

O filósofo Odo Marquard tenta recuperar o conceito de destino, não a partir das parcas, mas pela nossa finitude: temos determinada altura, determinada estrutura física, nascemos em determinadas circunstâncias, aprendemos determinadas coisas e não outras. No mundo em que tudo é supostamente adquirível, no mundo em que tudo é supostamente possível, da redução do queixo ao aumento do pênis, o destino parece inverossímil. Por vezes, os jornais populares, daqueles que fazem o real emergir para embaralhar os slogans, contam histórias inusitadas, como a de um pai que teve três filhos. Todos foram acometidos pelo câncer. Todos os três morreram, em idades diferentes. Somente agora, o pai também descobre que o câncer lhe acomete. Terrível linha do destino, ao descobrir que, além da doença, o gene desviante que desencadeou a morte dos filhos era proveniente dele. Aqui a vida se afigura como dádiva envenenada: a vida que deu aos filhos era sentença de morte dolorosa. Se soubesse antes das doença, daria vida aos filhos? Mas, quanto a privá-los da existência, ou abdicar da realização de ser pai? Aparentemente sem grande consequências, aquilo que foi fruto do acaso poderia ser remediado tecnologicamente, não sem perigos igualmente assustadores. É por isso que Habermas, em O futuro da Natureza Humana, dedica-se a pensar na possibilidade de uma eugenia liberal: que não só se extirpe doenças, mas que haja a possibilidade dos pais, de alguma forma, programarem seus filhos geneticamente para determinados caminhos. Mãos de pianista, pernas de velocista, corpo mais “saudável” e “desejável”. Dá o pai ao filho uma dádiva que, não sendo assumida pela liberdade, acaba se convertendo em maldição: o filho se recusa a ser para o que foi feito.

Dos relatos de Plutarco e Suetônio, nós descontamos tudo aquilo que supomos como fantástico: os vaticínios, as predições, os oráculos, os sacrifícios, os sonhos, os portentos. É compreensível que, em nossos arrazoados, esses elementos sejam descontados e postos no débito da anedota, sem crédito. Isso ocorre porque pouco entendemos de vaticínios, da sua conveniência ou lida, dos seus limites, porque pouco uso temos. Natural não saber lidar com o que não lidamos; e, não lidamos porque sejam inexistentes, mas porque perdemos os usos, os costumes, a prática.

Há um signo divinatório, um Odu, que no oráculo de Ifá, assim como no oráculo do jogo de búzios, chama-se Irosun. No Brasil, ele foi apelidado como A Calma. Em certo sentido, isso significa chamá-lo pelo seu contrário. Irosun carrega a fúria súbita e avassaladora, um fogo em processo de crescimento que vai devorando a terra. Sua representação gráfica é composta por dois círculos concêntricos com um ponto preto no meio, como se fosse um poço, um buraco. Em uma piada, Ariano Suassuna dizia que: ao redor do buraco, tudo é beira. Ora, mas o que seria o buraco sem a beira, sem a massa de terra que dá destaque a um ponto único? Já vemos o indício da traição: a multidão indiscernível, a massa anônima e oculta, cerca um ponto em destaque: é por essa massa que o ponto existe, é essa massa que pode aniquilá-lo. Ainda que muitos atribuam a armadilha de caça a outro signo divinatório, o Odu Ogunda, não deixamos de esquecer que uma forma antiga de caçar grandes animais, como um elefante, era exatamente cavando um buraco e camuflando-o. Atiçado para a direção correta, a besta correria enfurecida ou desesperada e, ao meter uma pata no buraco, ou bem a quebraria, ou bem ficaria muito aturdida pelo desequilíbrio: rebaixada, era a hora de atacá-la. Nisso temos Irosun, que mata sem derramar sangue; mas que, supostamente, teria sido ele quem entregou a Ogunda a faca como instrumento para matar humanos.

Acossado, furioso ou impetuoso, Irosun, que remete ao pó vermelho Osun, expressa o rubro da raiva, os olhos envermelhados das lágrimas sofridas, o fulgor que ruboriza a face do impetuoso que trama e arquiteta, o carmim que cora o rosto envergonhado. E isso tudo se repete na vida de César. César é Irosun vivo: a estrutura da sua vida repete a estrutura do signo. 

Se não dá calma, Irosun pede calma. Porque, dentre as armadilhas, nada melhor do que aquela fornecida pela ilusão: aquilo que parece ser fundamentado, como o chão, em verdade, não passa de um buraco. Sobre isso, diz Plutarco, referindo-se ao período em que César foi considerado insignificante:

Mas depois, quando tal poder se tornou desmedido e difícil de derribar e se encaminhava diretamente para a revolução geral, compreenderam que nenhum começo de ação deve ser considerado tão pequeno, que a persistência não o leve a tomar rapidamente grandes dimensões, já que se aproveita do menosprezo para se tornar irrefreável.

Não cabe neste espaço mostrar as conexões de estrutura entre o signo de Irosun e a tragédia de Shakespeare, ainda que abundem. Morreu César ensanguentado diante da estátua de um nobre defunto, um mais velho, Pompeu. No mínimo, vinte e três punhaladas abriram buracos no corpo de César, este que, antes, havia dito ser a melhor morte aquela que chega de surpresa. Seu fulgor se alastrou sobre a terra cobrindo o solo de uma multidão de cadáveres. Era pródigo com os pobres, misto de populismo e de anseio por rebaixar os patrícios romanos. Plutarco ressalta que o seu maior erro era, simplesmente, não conseguir parar: temia viver à sombra de si mesmo, como se as conquistas pregressas fossem as inimigas das conquistas futuras.

O que mais impressiona é que tudo, absolutamente tudo, todas as posições, foram determinadas pela posição suprema do signo de César. Como se o seu gênio, sua cabeça, determinasse as demais. Brutus traiu César, como um filho trai o pai. Mas traiu César pela ilusão de representar a verdade republicana contra a escalada da tirania? Antonio realizou os funerais de César, mas Antonio não teria feito vista grossa aos conspiradores, assim pretendendo maiores poderes com a morte do amigo? Catão, a encarnação moral da República romana, ao fim cometeu suicídio antes que fosse presa do julgamento de César. Diz-se que César lamentou e se envergonhou pela morte de Catão. Após participar do assassinato de César, diz-se que Brutus, num misto de sonho e visão, deparou-se com seu próprio gênio, sua cabeça, diante do seu leito, anunciando a morte próxima. O que se cumpriu pelo suicídio. Até Cina, amigo de César, confundido pela turba com um dos conspiradores, fora trucidado.

Quanta ruína na racional produtividade, suposta sobriedade e cálculo. Calpúrnia, não afeita àquilo que os romanos tomavam como comportamento supersticioso (o que não tem uma única vírgula sequer de similaridade com o que entendemos hoje por superstição), havia sonhado com a ruína do seu marido César. Suas súplicas para que ficasse em casa foram desfeitas quando um dos conspiradores, um sóbrio epicurista, inverteu a interpretação do sonho dado por Calpúrnia. Ao fim, até mesmo alegou que não deveríamos nos fiar em tais quimeras. César realizou um sacrifício, e dele recebeu um outro vaticínio: a ave não possuía coração. Solicitou a outros sacerdotes vaticínio sobre se deveria ir ao senado: todos diziam que não deveria. Os vaticínios negativos eram todos depositados nas portas do senado. César passou por eles com ares de desprezo. 

O que a Cia dos Atores fez foi colocar em paralelo dois desdobramentos de eventos regidos pelo mesmo signo. Não era simplesmente o suposto jogo reflexivo hamletiano, tido como o primórdio da ironia romântica, em que a peça se sabe como peça e o personagem se sabe como representação. Trata-se, antes, da presentificação da mesma estrutura, de uma repetição: quanto mais repetida, mais reapresenta. Ao mesmo tempo, o signo demonstra a vida de César e as relações dentro de um grupo teatral que se empenha em encenar a obra Julius Caesar. As intrigas, as ilusões, as difamações, as suspeitas, a massa, o indivíduo que se destaca. Tudo repetido, tudo afirmando o comum. E o teatro tem nisso a oportunidade de se repetir como ritual, em que os iniciados passam pelos signos e contemplam a estrutura do mundo. 


Fábio Costa é professor de Filosofia do Colégio Pedro II. Mestre e Doutor em Filosofia das Ciências e Teoria do Conhecimento pela UERJ.

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