Fios do Tempo. Outros mundos sempre existentes – por Fábio Costa

Ontem, dia 29 de julho, tivemos o quarto encontro do Ciclo de Humanidades 2021, “Outros mundos sempre existiram: confluências afro-indígenas”, com a presença de Daiara Tukano, Givânia Maria e Fábio Costa. Na saída deste belo encontro, publicamos no Fios do Tempo o texto de Fábio Costa, que reflete sobre como as filosofias africanas, entendidas como comunidades de práticas compartilhadas, nos permitem pensar e experimentar outros mundos já, e sempre, existentes.

Desejo uma excelente leitura!

A. M.
Fios do Tempo, 30 de julho de 2021



Outros mundos sempre existentes

Gostaria que olhassem para o que faço ao proferir essa breve exposição. Em primeiro lugar, faço um agradecimento a duas instituições, em boa medida irmanadas: à Maison de France e ao Instituto Goethe. Sem ambas, não cogito como eu conseguiria discutir sobre mundos. Não tendo recursos financeiros, delas muito me vali durante a juventude, graças ao empréstimo de mídias e livros. Ambas foram para mim muito acolhedoras, até mesmo para, entre leituras, encostar a cabeça na mesa e dormir um pouco. São lugares de segurança e de reconforto, para o corpo todo. Por vezes, indo à Maison estudar, eu me deparava com um lançamento de livro ou algum evento do gênero. Após palestras interessantes, havia algum aperitivo. Um bom coração deve ser tão grande quanto a nossa barriga. E creio que sempre perfaça uma memória feliz o ato de recordar aqueles que nos deram de comer, em diferentes sentidos. Por isso também agradeço ao Monsieur Donger, antigo diretor geral da Aliança Francesa, que, por uma bolsa, permitiu que ali eu estudasse.

Meus agradecimentos provam que um outro mundo, formas outras de comunidade, já existem. Fui solicitado a falar sobre filosofias africanas enquanto outros mundos já existentes: eu preferira chamar de outras formas de comunidade ou de vida. A história das discussões sobre se devemos falar no plural ou no singular tanto da filosofia quanto de África já é tema bastante vasto. Não se trata simplesmente de uma questão de afirmação ou determinação de identidade. Trata-se de uma questão sobre cronótopo, sobre a determinação dos lugares e formas de viver em comum, incrustrados em lidas com a temporalidade. Ponhamos aqui alguns problemas para que abram o nosso apetite.

A filosofia africana deveria ser determinada a partir de elementos de uma etno-filosofia, aqui compreendida como concepções nativas, ou o solo das concepções do povo deve ser ultrapassado em nome das técnicas de análise conceitual engendradas pela forma institucional moderna de produzir filosofia? Por um lado, a etno-filosofia de um Placide Tempels (1906-1977) e de um Léopold Sédar Senghor (1906-2001) congelam e universalizam concepções locais como se fossem princípios válidos entre diversas etnias de um continente. Por outro lado, como aponta Segun Gbadegesin, as concepções populares revelam uma cartografia conceitual de práticas que indicam a forma de vida de um povo. Contudo, não haveria o risco de um mascaramento dos conflitos concretos impostos pela colonização ao revitalizar essas concepções nativas, tal como se fossem instrumentos refratários ao processo de modernização? Esse problema é apontado por Kwasi Wiredu, o qual recomenda que a filosofia africana se aproprie dos instrumentos ditos ocidentais de análise, tal como aqueles gerados pela filosofia analítica.

Todavia essa aquisição dos instrumentos ocidentais poderia ser assumida, por um lado, como aquiescência não somente aos parâmetros epistemológicos do colonizador, mas também a assunção de sua forma destrutiva de modernidade, como salienta Mudimbe. Por outro lado, como descreve Jean-Godefroy Bidima, o próprio aparato crítico voltado contra o colonizador foi adquirido por intelectuais africanos em suas incursões em instituições acadêmicas americanas, inglesas e francesas.

Para Bidima, a possível interlocução significa um paradigma do reencontro e do atravessamento, não simples conformidade. Porque, por um lado, o problema está em como se constitui isso que chamamos de identidade. Poderia ela ser étnica, quando muitas etnias foram forjadas pelo próprio processo colonial? Se a identidade for o conjunto simbólico-mítico de uma etnia, como impedir que esses símbolos sejam usados por tiranias locais para esmagar etnias minoritárias? Não podendo ser nacionalista, então essa identidade pode ser enraizada historicamente, como em origens gloriosas no Antigo Egito. Mas esse recurso ao originário no Egito, vício repetitivo do originário próprio ao ocidente, não seria uma ficção insustentável para aquele que assumiu o aparato crítico moderno? E a instauração de um passado unívoco não é outra forma de sufocar as histórias e os conflitos locais? E essa suposta identidade unitária é capaz de dissolver a tensão entre a suposta formação de um pensamento em comum por parte das populações subsaarianas e o ideário das populações saarianas, em geral de matriz islâmica?

Certamente, Souleymane Bachir Diagne reivindicará a unidade da filosofia africana contendo o Islã, mas qual foi o preço pago, por diferentes povos, pelo monoteísmo aguerrido? E não deixemos de fora as questões de gênero, as quais podem dar maior concretude aos problemas. Aquele que se debruça sobre, por exemplo, populações que tenham matriarcado, obrigatoriamente deve se deter em questões de produção. Linhas de parentescos não são abstrações ou slogans. Linhas e configurações de parentesco estabelecem meios de subsistência: trocas de parentes são trocas entre parentes, o que significa compartilhamento de meios de existência. Assim sendo, é absolutamente impossível que temáticas mitológicas, de gênero, de modos de vida de populações nativas africanas sejam discutidas sem colocar em questão as metáforas fundamentais da modernidade ou, particularmente, da forma de produção capitalista.

São focos metafóricos nossos as seguintes ideias: há uma condição de escassez econômica originária; que a pobreza reside na impossibilidade de acúmulo; que o humano é um indivíduo absolutamente autônomo e autodeterminado; que o estado de competição pela sobrevivência é a condição humana básica; que parentesco é um laço sanguíneo. Esses elementos estruturam um cronótopo, um arranjo espaço-temporal, segundo o qual nós buscamos sempre no futuro, em algum ponto longínquo indeterminado, um outro mundo possível. E nós supostamente temos que criar meios para acelerar a vinda desse outro mundo. Nós, aqui e agora, certamente não veríamos esse tal de outro mundo, porque não sobreviveríamos ao tempo indeterminado de espera.

Essas estruturas metafórico-míticas produzem coisas, produzem esse arremedo de mundo em que nós vivemos, um mundo sem mundo, porque sempre esperando por um outro. Essas estruturas apagam a existência já vigente de outros mundos, de outras comunidades, particularmente convertendo as mesmas em fraseados vendáveis a preço muito barato. É por isso que não pude começar essa exposição fazendo referências a formas de pensamentos míticos ou sociais de populações africanas ou afro-diaspóricas: elas podem virar fraseados baratos quando você não eleva o preço a pagar por essas formas de vida. O fraseado de um mito, de um provérbio, de uma canção, ainda que toque os sentimentos e dê o que pensar, corre o risco de manter tudo como está: mais um fraseado ou slogan ao lado, por exemplo, de uma marca de cosmético.

Essas observações servem para trazer o que tem máxima concretude e urgência, o avesso ao fraseado: a terra. Em um país de milicianos grileiros, a terra é uma concretude muito incômoda. Não há formas de vida de terreiro sem a terra, sem bicho que come planta. A necessidade da terra é evidentemente um ponto em comum entre populações indígenas, populações de terreiro e populações quilombolas. Porque a falta do lugar terra aniquila essas formas de vida. Para o caso das populações de terreiro, darei um exemplo concreto: a prática ritual do sacrifício.

Antes, porém, uma observação. Se falo aqui de sacrifício, assim faço também para indicar um problema. Nós falamos muito de “o Ocidente”. Quando falam de Ocidente, debochadamente, sempre pergunto se o império Bizantino está incluído. Porque, não tem “o Ocidente”: o que há é o cronótopo moderno do adiamento acelerador. Esse cronótopo apaga até os mundos que existiram no passado. É como se mesopotâmios, gregos, hebreus, romanos não sacrificassem; e como se o sacrifício não fosse um centro institucional de grande importância. Como se o galo prometido por Sócrates a Asclépio fosse só uma ironia; como se a absoluta recusa de Platão por tornar a terra mercadoria, no livro Leis, fosse um exotismo pretérito; como se o oráculo e o sacrifício em Roma não fossem uma instituição jurídica inscrita na terra, nos limites do território. Quando nós, a partir do cronótopo moderno, falamos “a tradição Ocidental”, então sorrimos como bobos contemplando os destroços de um navio.

Para algumas matrizes africanas, o sacrifício é um ebó, um dar de comer. O dar de comer ao Orixá é um dar de comer à terra e à comunidade. O animal sagrado e a divindade devem manifestar por atos a aquiescência ao sacrifício. Não há a mais remota semelhança com abatedouros ou corpos aparentemente brotados em gôndolas de supermercado. Em um dos destroços do Ocidente, Esopo conta que um cordeiro perseguido por um lobo se refugiou em um templo. O lobo disse que, no templo, ele seria sacrificado. Ao que o cordeiro respondeu: “Prefiro morrer no altar de um deus que na tua boca. Morrer, mas com dignidade”. Da Grécia para a África, uma variante mítica justifica o sacrifício e sua relação com a terra.

Em termos muito breves, um mito contido no Odu Osa Meji, um signo divinatório, conta que Ajalaye, epíteto da terra, Ilé, e Ajalorun, epíteto do Céu, disputavam pela posse de um rato do mato. Nada antecipem supondo que há indícios de relação com a teoria mimética da violência de René Girard: a coisa se complica. Como a terra ficou de posse do rato, o céu se afastou e parou de conceder a chuva. A população local enfrentou grave seca e foi se consultar com o adivinho a fim de verificar o que podia ser feito. Um sacrifício deveria ser realizado; caberia a alguém levá-lo ao céu. Muitos tentaram levar, ninguém conseguiu, até que o Urubu se ofereceu para a tarefa. Antes do feito, o Urubu consultou o oráculo. Ali foi advertido que a tarefa era árdua, mas que obteria bom resultado se realizasse, também ele, um sacrifício, a Exu. O urubu se recusou. Ele considerava Exu um trapaceiro, e o adivinho, um embusteiro. Colocou as oferendas na cabeça e foi cumprir sua missão, antes advertindo a quem ficava que, pelo menos, cuidassem de sua mãe, que estava muito doente. Entregues as oferendas para o Senhor dos Céus, este deu ao urubu três cabaças. Cada uma deveria ser quebrada durante sua descida, para que a chuva retornasse. Cada vez que quebrava uma cabaça, ainda mais a chuva caía. Tal tempestade forçou urubu a procurar abrigo. Ninguém quis recebê-lo em casa. Empoleirou-se em uma árvore, mas estava faminto. Pouco enxergando, viu ao longe um corpo estirado no chão: devorou-o. Terminada a chuva, urubu foi procurar a sua mãe. Descobriu que ninguém havia dela cuidado. Indagando a um passante, descobriu que aquele corpo do qual havia se alimentado era a sua mãe. Foi então que o urubu condenou os humanos a não ser capaz de viver sem comer do corpo da própria mãe: o leite materno, as dádivas do solo. E disse o urubu: aquilo que é vendido não deve ter a aparência de um presente; e um presente deve ser apreciado como uma dádiva.

Comer da terra, que é mãe, obriga recordar que a terra não pode estar quente, furiosa, seca. Por isso, no ato sacrificial, canta-se: Ogun s’oro s’oro, eje balé ka ra ro. Que pode ser traduzido como: Ogun realiza a cerimônia, o sangue que cai na terra resfria o corpo. Mas não é qualquer sangue, é o sangue vertido pela divindade. Como ato responsorial, a cantiga expressa a voz do sangue: eje sororo, Ogum mpa o (o sangue proclama que a morte é atribuída a Ogum). O ato está exculpado porque é preciso alimentar a terra, os deuses, os humanos, em um processo de troca dadivosa, não uma venda ou barganha. Em Roma, ao sacrificar para a tríade capitolina, uma divindade capital a ser reverenciada era Salus, donde a expressão Salus populi romani. Não como salvação, salvação em um outro mundo, mas sim como saúde e prosperidade aqui e agora. 

Haver um lugar, uma terra, de encontro e compartilhamento dadivoso, isso é o mundo, ou seja, algumas comunidades já existentes. Se antes colocamos tantos problemas e contradições que envolvem a filosofia africana, ela mesma oferece soluções. Ela pede que olhemos para o que estamos fazendo. É por isso que um grande arqueólogo e historiador nigeriano Akinwumi Ogundiran, no livro The Yorubas: a new history, aponta para a necessidade de refletir a África e as comunidades afrodiaspóricas a partir do conceito de comunidade de práticas, de práticas compartilhadas. Isso é tão concreto que, em determinado trecho do livro, ao analisar uma cerimônia, escreve uma cantiga: Ori l’aba bó k’á tó b’Orisa. Qualquer membro ou descendente, por exemplo, do Ile Axé opo Afonja, sabe o que é essa cantiga. O cronótopo das comunidades dependentes da terra não é como o cronótopo da modernidade, um acelerado barco fantasma de destroços.

É por isso que eu sou muito grato a quem me deu de comer, em diferentes sentidos, tal como fizeram a Maison de France, o Instituto Goethe e o meu terreiro Ile Iya Ogun opo Aira.

Fábio Costa é professor de Filosofia do Colégio Pedro II. Mestre e Doutor em Filosofia das Ciências e Teoria do Conhecimento pela UERJ.


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