Fios do Tempo. Desconstrução ou devastação? – por Fábio Costa

Publicamos hoje no Fios do Tempo um artigo de Fábio Costa sobre o que é a desconstrução, entendendo-a para além das confusões, e mesmo barafundas, do senso comum acadêmico. Recuperando o sentido do termo em Heidegger, o autor mostra como a desconstrução tem um sentido antes de tudo filosófico, muito mais próximo de uma experiência radical de herdar e vivificar o passado do que das atitudes contemporâneas de devastação do passado e esvaziamento do futuro.




Desconstrução ou devastação?

Rio de Janeiro, 04 de março de 2020

Não há novidade alguma ao afirmarmos que a linguagem popular, paulatinamente, acaba por assumir termos cunhados na esfera acadêmica ou erudita. Quão problemática pode ser tal assunção, disso temos um curioso caso que ainda nos cai como uma luva. Paul Forman, historiador da física moderna, em um prestigiado artigo intitulado Cultura de Weimar, Causalidade e Teoria Quântica, fornece-nos os detalhes sobre a forma como as discussões em torno da teoria dos quanta desaguou no buliçoso contexto social de uma Weimar ainda abalada pela Primeira Guerra Mundial. Todas as elucubrações de um misticismo relés, daqueles que vendem pulseirinhas ou dietas quânticas; as ondas e marés que vendem autoajuda apregoando as panaceias do pensamento quântico; toda a barafunda de jargões que imiscuem níveis de energia quântica com graus de felicidade, tudo isso nasceu nesse período, como bem demonstra Forman, ao pesquisar as publicações acadêmicas, filosóficas, jornalísticas e, até mesmo, charges.

Tantos anos já passados e não cessam as conversões do termo quantum em abracadabra com ares de fundamentação científica. Termos ou conteúdos acadêmicos podem alcançar uma suposta bem aventurança na vida cotidiana, no mundo da vida, assim contrariando a vulgar suposição de que as escolas filosóficas e seus pensadores se afiguram como alegorias carnavalescas que cruzam a avenida da história, cada qual dando lugar ao seu sucessor: imagem de uma corrente vertiginosa de superação, ou bem de elos que entabulam solilóquios. Inegável é, no entanto, que a escola do utilitarismo, em suas mais variadas vertentes, tomou campo e conquistou mundo nas práticas e nos vocábulos da cotidianidade; e não nos deixemos enganar supondo que dizer não é fazer, porque tais termos moldam condutas: valorações por prazer e dor; acréscimo ou otimização da felicidade e bem-estar; agentes racionais; dilemas do prisioneiro; individualismo, etc. 

Dois termos popularíssimos serão o foco das nossas observações. Em primeiro lugar, porque esses termos, desventuradamente, tanto angariaram mil faces entre os populares, que pouca coisa há de tão ambígua quanto os mesmos. Em segundo lugar, porque esses termos nasceram, curiosamente, para ensinar como lidar com a dinâmica do esquecimento e obscurecimento do sentido. Em terceiro, por fim, porque o autor dos termos deixou um pano de fundo conceitual que dificulta sua cabal determinação, de maneira tal que essa flutuação explica a infausta história dessas duas expressões: Destruição e Desconstrução.

Nietzsche já havia passado com seu martelo destruidor pela história da filosofia, quando Martin Heidegger publica Ser e Tempo. Que o filósofo de Zaratustra possa ser encarado como um demolidor de conceitos, isso não implica que tenha feito um esforço metodológico por delimitar e esclarecer a função de um projeto de destruição (Destruktion) ou desconstrução (Abbau) dos conceitos fundamentais da metafísica. A tarefa é empreendida por Heidegger no sexto parágrafo da sua obra magna, já que o procedimento desconstrutivo é a chave para justificar metodologicamente por qual razão seria necessário recolocar a clássica questão sobre o Ser. Não me deterei em minuciosa exegese do parágrafo citado, mas apenas tentarei desentulhar algumas partes do campo, a fim de não ter na desconstrução a arte de fazer terra arrasada.

Metodologicamente, nada é desconstruído com a simples alegação de que os conceitos são históricos ou determinados pelos seus contextos sociais. Esse argumento, quando emitido como um espalhafatoso dó de peito, aniquila os objetivos capitais de Heidegger: 1) como a questão do Ser foi determinada, ao longo da história ocidental, pelo presente, pela presença, enquanto modo específico da temporalidade; 2) as razões pelas quais se faz necessário que o fundamento da temporalidade seja investigado a partir de uma tematização do Dasein, do ser humano; 3) por quais razões é constitutivo do Dasein a temporalidade, a qual se expressa como historicidade. Cabe ressaltar que aquilo que nomeamos como história, história universal, história das nações e dos povos, todos esses campos científicos são derivações ônticas, domínios de pesquisa que somente existem ou podem existir porque conceitos ontológicos fundamentais já de início e na maioria das vezes estão pressupostos como respondidos e, por conseguinte, sedimentados.

A tarefa da desconstrução não tem um papel simplesmente negativo, como a demonstração dos pressupostos enquanto pressupostos e explicitação dos elementos que permaneceram sem questionamento, sem justificativa ou sem fundamentação. Esse mesmo movimento revela sua positividade ao expressar a historicidade do Dasein, ou seja, que o passado não é um simples conjunto de objetos ou ocorrências ao lado do ser humano, mas sim que o passado lhe é constitutivo, pois com ele sempre temos de nos haver de algum modo, mesmo no modo de sedimentações presumidas. Ao fim e ao cabo, a desconstrução não é uma aniquilação do passado, mas a condição de possibilidade de herança radical do que foi legado, enquanto capacidade dialógica com os momentos inaugurais do pensamento.

A tarefa de questionamento radical, para alcance do cerne originário do problema do Ser, parece a um só tempo grandioso e grandiloquente, flutuando entre princípio metodológico e artifício retórico. Talvez, a melhor forma de explicitar essa ambiguidade seja através de uma expressão cunhada por Foucault na obra As palavras e as coisas: a confusão entre empírico e transcendental. Se nos voltarmos para trabalhos de Heidegger como Contribuições à Filosofia  e os famigerados Cadernos Negros, não há como negar que o procedimento metodológico de investigação acaba tomando ares práticos e políticos como tarefa de um povo por assunção de uma modo de ser mais originário; como exercício efetivo de instauração de um novo começo, capaz que recuperar as fontes primeiras de nascimento do pensamento ocidental. A analítica da historicidade acaba esbarrando no messianismo; a tarefa de resgatar o originário resvala no chauvinismo. Não servem essas observações para desqualificar o pensamento de Heidegger. Antes, servem para indicar que ele não foi capaz de dar conta do problema da temporalidade e da historicidade, porque ora flerta, ora declara bodas, ora se divorcia, em relação a uma série de problemas que perfizeram as torturas da teoria da história ao longo dos séculos XIX e XX.

Se, por um lado, não devemos ser viúvos de um passado ou modo pregresso mais originário de pôr uma questão; por outro lado, também não nos cabe a tarefa profética de vaticinar novos começos perscrutando as aberturas do horizonte. A função metodológica dos termos destruição e desconstrução parece ter se perdido, com que esquecida no vocabulário popular, como se se tratasse de fazer terra arrasada. Com o suposto desmonte das grandes narrativas, também as profecias parecem se reduzir à condição de Crátilo, pois apenas podemos apontar para o vindouro, deixando os seus conteúdos vazios. Há daqueles que, por sorte, não se renderam à paralisia e notaram os elementos inquestionados e impensados deixados por Heidegger, como é o caso do historiador e teórico da história, Reinhart Koselleck, para quem Heidegger havia apontado em Ser e Tempo possibilidades de uma antropologia transcendental capaz de esclarecer nossa condição temporal a partir de pares conceituais assimétricos fundamentais: vida e morte; amigo e inimigo; interior e exterior, etc.

Talvez os conteúdos que preencham esses novos horizontes já estejam postos no final do século XIX e ao longo do século XX.  Que o corpo, incluindo sua sensibilidade, seja modelado socialmente. Que exista uma gramática das cores, sons, cheiros e tatos. Que as ações humanas não possam ser compreendidas em termos basilares de interações entre indivíduos, mas, antes, que a relação seja fonte de individuação. Todas essas coisas têm sido batidas, pisadas e repisadas por figuras como Lévi-Strauss, Marcel Mauss, Merleau-Ponty, Bataille, Charles Taylor, etc. E nós repetimos aquilo por eles cunhado de maneira mais pobre, mais medíocre, mais ridícula, como se fosse novidadeiro. O novo começo já aconteceu, mas nós estávamos ocupados roendo ossos desconstrutivos em lugar de herdar e vivificar.

O sentido carente de determinação do conceito de desconstrução popularmente empregado, ou sua conversão em instrumental meramente performático, parece nos ter atirado no temor pela teoria, como se as pretensões de articulação teórica fossem heresias contra supostos dogmas da transitoriedade histórica e da relatividade cultural. Tudo se passa como se a busca por teorias abrangentes fosse a eterna repetição do procedimento de estabelecer um fundamento a partir de uma proposição originária, por si mesma certa e evidente, pela qual todo o mundo fosse deduzido: quadros teóricos amplos não estão fadados a ser um pastiche de Fichte, particularmente do seu projeto de uma Doutrina da Ciência.


Fábio Costa é professor de Filosofia do Colégio Pedro II. Mestre e Doutor em Filosofia das Ciências e Teoria do Conhecimento pela UERJ.


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