Fios do Tempo. O idioma da crítica de Horacio González – por Eduardo Rinesi

Em 01 de fevereiro, fizemos uma live no Ateliê de Humanidades em homenagem ao sociólogo argentino Horacio González, com presença de Eduardo Rinesi, Gabriel Cohn e André Magnelli. A conversa foi feita em torno da publicação de “O idioma da crítica”, de Horacio González, livro do mês de janeiro da Biblioteca Básica Latino-Americana (BBLA) (acesse: https://www.bbla.com.br/).

Como uma forma de gerar conhecimento, debates e leituras da BBLA, estaremos realizando em 2022 publicações, conversas, resenhas, análises e lives dos livros publicados pela Biblioteca. Hoje começamos essas atividades no Fios do Tempo publicando o estudo preliminar de Eduardo Rinesi, que integrou o volume O idioma da crítica. Nos próximos dias, faremos também atividades em torno de outros livros da BBLA, como: “América Latina existe?”, de Darcy Ribeiro (novembro de 2021), “América Latina: um povo em marcha”, de Ángel Rama (dezembro de 2021) e “O voo do tukui”, de Ana Pizarro (fevereiro de 2022).

Desejo, como sempre, uma excelente leitura!

André Magnelli
Fios do Tempo, 14 de fevereiro de 2022



O idioma da crítica
de Horacio González

Eduardo Rinesi

1.

O nascimento da Sociologia na Argentina é quase contemporâneo ao início de sua jornada na França e na Alemanha. Ela é filha do mesmo tipo de transformação social, demográfica e urbana. Se lá, na velha Europa, a sociologia foi uma consequência dos impactos na organização da vida coletiva vindos do desenvolvimento da atividade econômica sob o signo do capitalismo industrial e de sua conhecida cadeia de danos, aqui, na Argentina, ela respondeu ao impacto da chegada de fortes contingentes migratórios expulsos pelo mesmo desenvolvimento. Em nosso país, os setores dominantes tinham acabado de terminar a tarefa de “conquistar” as vastas extensões interiores sobre as quais iriam construir o futuro da Argentina como um poder exportador de carne e grãos. Desde os anos das primeiras gerações literárias nacionais, havia sido organizada, ainda, uma reflexão política e social sobre as condições necessárias para a gestação desse futuro, o que foi feito em torno da dicotomia sarmientina entre civilização e barbárie.[1] Toda essa comoção da vida do cidade-porto obrigou a se colocar o conhecido tópico da multidão no centro das preocupações da teoria e também da política. Ao mesmo tempo, impôs-se a questão sobre os modos pelos quais o governo do Estado poderia contribuir para fazer dessa multidão um povo. Com essas preocupações, e ao longo de sete décadas, desenvolve-se na Argentina uma sociologia cuja forte entonação positivista não a deixa menos interessante, e em que brilham especialmente os nomes de José María Ramos Mejía, Ernesto Quesada e José Ingenieros.

O esgotamento dessa primeira experiência de sociologia no país é contemporâneo ao assentamento e à integração dos filhos daquelas massas de imigrantes na vida social e política da nação. Eles haviam abalado bastante as bases do velho liberalismo político argentino do século XIX, e, uma geração depois, já passaram a constituir a base social de uma sociedade bem diferente. Ela tinha conhecido a experiên­cia política democrática do yrigoyenismo[2], ocorrida entre 1916 e o golpe militar de 1930; desde então, ela avançava combinando o autoritarismo político – que se adequava aos projetos da oligarquia dominante – e uma moderada modernização industrial através do modelo de substituição de importações. Nesses anos, e na ausência de uma sociologia com a força dos anos prévios, as grandes reflexões sobre essas mudanças ocorreram mais exatamente na área do ensaio social crítico, que foi implantado em uma área que talvez possamos chamar de “liberal”, onde se destacava o nome maior de Ezequiel Martínez Estrada, e também em outra área que corresponde ao que se chama de “nacionalista”, em que se destacavam os escritos (afluentes da metafísica de Macedonio Fernández e não tão longe dos tons dos jovens Borges) de Raúl Scalabrini Ortiz. Vale a pena notar aqui esses nomes, que a futura sociologia acadêmica argentina cometeria o enorme erro de desprezar, mas nos quais podem ser encontradas reflexões sutis, formuladas de outra forma, em grande estilo, sobre a vida social, política e espiritual do país, tendo seu capital formado nos anos anteriores à nova comoção que seria representada pela irrupção do peronismo. Quando isso ocorreu, Scalabrini, que havia escrito El hombre que está solo y espera [O homem que está só e espera] em 1934, poderia supor, em uma bela crônica do dia de 17 de outubro de 1945, que era justamente isso que aqueles membros da lonely crowd da “década infame” estavam esperando, enquanto Martínez Estrada expressou sua indignação em algumas “catilinárias”, que intitulou, com escândalo sugestivo, ¿Qué es esto? {O que é isto?].

Mas não foi outra, na realidade, a pergunta que, de uma forma ou de outra, começava naquela época a formular e a se formular, tratando de entender aquele novo fenômeno da vida social e política argentina. Naqueles anos, a sociologia buscava, pela segunda vez após a experiência positivista da virada do século, encontrar seu lugar entre os discursos universitários que lutavam para dar conta da realidade social do país. E, sobretudo, não foi outra a pergunta que começou naquela época a formular e se formular aquele que viria a se tornar o maior expoente da experiência dessa sociologia de modernização e desenvolvimento, que encontraria no fenômeno do peronismo o enigma principal para tentar decifrar, tipificar e pensar. O que é isto? A pergunta, na verdade, foi feita mil vezes pelo italiano Gino Germani, que havia chegado a Buenos Aires, fugindo do fascismo, em 1934, tendo se juntado à Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires e ao seu muito novo Instituto de Sociologia. Ele havia estudado com muita seriedade a estrutura social do país que o havia recebido, tentando nomear a experiência que, desde meados da década de 40, abalou a vida pública argentina. No extraordinário livro Populismo Progressivo, de 2018, o pesquisador italiano Pasquale Serra estuda a preocupação de Germani com esse problema, que em um sentido importante é o grande problema de sua vida e de sua obra, revelando os deslocamentos que levaram o autor de Política y sociedad en una época de transición a pensar no peronismo, sucessivamente, como um fenômeno fascista determinado pelo caráter totalitário da ideologia com que operava a integração das massas na vida moderna; como uma experiência autoritária semelhante àquelas conhecidas em muitos processos de modernização social de outros lugares; e como um fenômeno “nacional-popular”, tal como aqueles que haviam interessado Antonio Gramsci, em seu país natal, de quem o próprio pensamento não estaria tão longe quanto uma leitura mais convencional de ambos poderia fazer pensar.

Mas se a importância dos livros de Germani é muito grande, não é menor o forte espírito modernizador com que seu autor promoveu, na antiga Faculdade de Filosofia e Letras da UBA, a criação da carreira de Sociologia, que dá à disciplina um novo lugar na vida universitária nacional em torno dessa agenda de problemas que acabamos de apontar relacionados à modernização e ao desenvolvimento, tendo uma espécie de olhar crítico sobre o populismo em geral, e sobre o peronismo em particular, como sendo desvios inconvenientes desses impulsos. Esse tipo de olhar crítico foi o que dominou uma área da discussão que incluía as diferentes versões do marxismo em que boa parte da primeira ninhada de discípulos de Germani militava – um sinal dos tempos e da organização das discussões em todo o mundo. Outros não. Outros, sensíveis às particularidades da história nacional, relutantes em aceitar que os vários relevos dessa história tinham que ser achatados em nome de leis cujo caráter universal começaram a contestar, sendo bons leitores dos avisos metodológicos que haviam aprendido nos livros do altamente valorizado Charles Wright Mills, estando atentos às novidades políticas e conceituais dos movimentos de libertação nacional em todo o Terceiro Mundo e às obras dos mais renovadores dos cânones estabelecidos, como as de Frantz Fanon ou – mais próximo – de Darcy Ribeiro, preferiam articular uma orientação geral “de esquerda” de seus compromissos públicos com uma preocupação não menos zelosa com as questões nacional e latino-americana. No final dos anos 1960, era conhecida a distinção entre as cátedras ocupadas pelos recém-formados, ainda muito jovens, que tinham estudado alguns anos antes com Germani. Tinham aquelas que eram chamadas de “marxistas”, que gozavam de forte credibilidade e prestígio acadêmico, e as que optaram por se chamar “nacionais”, em contraponto insolente com aquelas.

Entre os grandes expoentes destas últimas, menciono aqui apenas três. Em primeiro lugar, Alcira Argumedo, protagonista fundamental dessa experiência, cujo espírito permaneceu singularmente fiel pelo resto de sua vida, ao longo da qual desenvolveu um pensamento que, inspirando-se nas leituras daqueles anos, pensou nos problemas da dominação cultural dos poderes do Ocidente sobre suas antigas colônias e na necessidade de perseverar no que chamou de “matriz de pensamento” latino-americana a fim de ter condições para enfrentá-la. Em segundo lugar, Roberto Carri, que escreveu em 1967 Sindicatos y poder en la Argentina, com uma visão muito diferente daquela que dominava a sociologia acadêmica sobre o mundo do trabalho e sua organização; em 1968, escreveu Isidro Velázquez, que, inspirado em Fanon, Marcuse e nas versões mais úteis das teorias da dependência, busca traçar os contornos de um sistema de subordinação econômica de um país – e sobretudo de suas áreas mais miseráveis – a partir da história de um trabalhador rural infeliz perseguido pela polícia e amado pelo povo, o que fez dele uma espécie de personagem do grande Eric Hobsbawm (com o qual, por certo, o jovem Carri não se privou de polemizar); e, em 1973, Poder imperialista y liberación nacional, com um claro tom militante e revolucionário. Em terceiro lugar, Horacio González, que nas décadas seguintes tornaria todas essas questões o tema da maior obra do pensamento social e político argentino do último meio século.

2.

Não só, como dissemos, o pensamento de Germani não estava tão longe do de Gramsci, como também a leitura do trabalho deste último começa a se generalizar na Argentina nos mesmos anos em que Germani encontra, na categoria do “nacional-popular”, ou às vezes na de “populismo”, uma chave para compreender o fenômeno do peronismo de modo menos preconceituoso do que aquele que havia caracterizado suas primeiras abordagens do problema. Essa ampliação da leitura de Gramsci deve-se à iniciativa do grupo político e intelectual que editou a revista Pasado y presente, na qual se destacou a figura de José Aricó, que não deixava de reconhecer a influência da forma como, nas décadas anteriores,  o intelectual comunista Héctor P. Agosti havia promovido o encontro com o trabalho do pensador italiano, pois estava preocupado com o que percebia como um divórcio, na Argentina, entre intelectuais e o povo-nação, repensava em uma chave progressista a relação entre os dois termos dessa fórmula – e entre o “povo” e a “nação” – e oferecia uma resposta tanto ao peronismo quanto ao anti-peronismo liberal e anti-popular que havia caracterizado até então as posições dominantes à esquerda partidária. A preocupação do Pasado y presente foi então (e ninguém dirá que não é uma preocupação perfeitamente gramsciana, porque estamos diante dos temas de Os intelectuais e a organização da cultura) a preocupação com a construção de uma hegemonia, que teve de ser forjada com base na adequada articulação entre os postulados da teoria marxista e a compreensão da experiência popular dentro do movimento nacional.

É nesse contexto que o primeiro dos textos de Horacio González que incluímos nesta seleção, muito mínima (mas espero que, aceitavelmente, representativa) de sua enorme obra, assume todo o seu valor. González estudou Sociologia na Faculdade de Filosofia e Letras da UBA e desenvolveu nos mesmos anos uma militância estudantil e social de esquerda, abraçando o peronismo e participando da experiência, já indicada muito rapidamente acima, das “cátedras nacionais”. Não parece irrelevante destacar isso, porque essa forma de entender a vida universitária o acompanharia ao longo das décadas, com seu espírito fortemente inovador em termos de estratégias pedagógicas. Obrigado a ditar um massivo curso de pensamento argentino, na Faculdade de Ciências Econômicas, para cerca de dez mil alunos (fazia isso dividindo o curso em três “comissões”, de mais de três mil alunos cada! E ditou as aulas, na ausência de qualquer espaço que pudesse conter tal multidão, no estacionamento da Faculdade), designou como professor adjunto um muito jovem Mauricio Kartun, que até hoje é um dos mais destacados dramaturgos argentinos, que transformou em pequenas peças teatrais os textos que González, responsável pelo curso, lhe propôs como aulas “teóricas”. Mas, acima de tudo, parece necessário ressaltar, nesta primeira apresentação do nosso autor, a importância que teve para ele a experiência da primeira das várias revistas em que, ao longo de sua vida, comprometeria seu espírito como escritor e editor: a revista Envido, que ao longo de suas dez edições, publicadas entre meados da década de 1970 e o final de 1973, era um importante veículo de ideias e discussões dentro do peronismo universitário e extrauniversitário. 

Muitos anos depois, o próprio González voltaria a essa experiência em seu prólogo à edição fac símile da revista, publicada pela Biblioteca Nacional quatro décadas depois. Ali, González reconstruiu o clima daquela publicação jovem, animado por um humanismo “em seus aspectos seculares e cristãos”, uma sociologia “decididamente terceiro-mundista”, uma terminologia “ligeiramente inspirada por Wright Mills” e uma boa pincelada da dialética de Hegel e Sartre. Tudo isso colocado a serviço de uma interpretação do peronismo que, ao mesmo tempo em que entendia que essa era a linguagem inexorável em que a experiência das lutas populares argentinas tinha que ser pensada e dita, não se resignava e buscava introduzir em relação a essa linguagem (e há aqui, desde muito cedo, o anúncio do que seria o grande tema, a grande obsessão de González ao longo de sua vida intelectual e militante) uma diferença que o melhoraria, que o faria dizer o que em sua rotina e maneira mais estabelecida era incapaz de fazer pensar. “Perón tinha sua linguagem e suas inflexões expressivas. Em algum recesso de nossa consciência intelectual jovem, foi inscrita a ansiedade absurda para tomar a linguagem desse outro e trazê-la ante uma melhor consumação filosófica. Como Perón pode falar de uma forma que a natureza de sua língua não permitia? Eis aqui um problema. Eis aqui o meu problema”. Esse, de fato, é o grande problema de toda a vida e obra de González, que desde seus primeiros escritos entendia menos o peronismo como um epifenômeno de processos econômicos e sociais que poderiam “explicá-lo” do que como resultado de uma construção política, retórica, de uma construção feita com uma “linguagem”, a do próprio líder, que, ao mesmo tempo, tinha que entender e usar para dizer o que ele mesmo não disse. Desde seus artigos de juventude na Envido, passando por sua revisão do peronismo e seu próprio peronismo nos anos da “transição para a democracia”, e ao seu formidável Perón, de 2007, González não parou de dar voltas, de mil maneiras diferentes, sobre esse problema fundamental.

Exemplificar nesse sentido é sua primeira contribuição para a revista, “Humanismo y estrategia en Juan Perón“, de 1971, que critica um olhar sobre o peronismo, que foi o da sociologia dos grandes discípulos de Germani (é clara a referência aos estudos recentemente apresentados sobre as origens do peronismo por Murmis e Portantiero), que permitia pensar nele como o “efeito” de um conjunto de transformações “estruturais” desaparecidas – começando pelo processo de industrialização por substituição de importação dos anos 1930 –, que também teriam, por força, que desaparecer. Essa era a consequência que González rejeitou dos pensamentos que, do “neo-aprismo cepalino e sociológico” à esquerda, colocaram o peronismo “na superestrutura, seja para provar sua inocência ou sua culpa, ou para apontar sua forma arrebolada e brincalhona de ser um fator de crescimento industrial” ou de controle burguês sobre a classe trabalhadora ou de realizar um processo cuja lógica, em qualquer caso, excedia. Contra essas interpretações, González devolveu o peronismo ao domínio da política e fez disso a chave para a inteligibilidade da história: “toda teoria, toda a economia, toda a ação social, não passa da continuação da política, mas por outros meios”. Primazia da política, então, e não da sociedade, que “é o descontínuo, o heterogêneo, o heterônomo”. Os homens fazem história, mas fazem isso sem entender muito bem (“com ações incompletas”, escreve González, que não parava de voltar a esse assunto nas décadas seguintes) e em condições que não escolheram. “Na sociedade, eles sempre nos dominam.” Contra essa dominação, contra os próprios pertencimentos e razões sociais que sustentam ou sobre as quais essa dominação é sustentada, a política, a estratégia, é levantada.  O estrategista, escreve González, exerce uma função de sentido.

González protesta então contra a redução “sociológica” do peronismo e do próprio Perón (contra o “Perón sociológico” que nos entregam “os professores de uma certa juventude”, dirá em um artigo importante no número 5 de Envido), como no texto com o qual começamos esta compilação, que é seu prólogo para o Príncipe Moderno e a vontade nacional-popular, de Gramsci, onde protesta contra a análoga redução sociológica (“social-democrata”, “cientificista”, “evolutiva”, “reformista”) do pensamento do preso de Turim. Os destinatários dessa crítica foram indicados alguns parágrafos atrás. González nunca deixou de tratá-los com consideração, mas nesse texto jovem deixa claro a distância que mantém com a forma como, neles, a atenção dada à explicação gramsciana de que a complexidade das sociedades modernas forçadas a deixar de lado as formas mais crédulas da questão da apreensão por agressão ao poder corria o risco de levar a um pluralismo resignado e, finalmente, complacente com as formas existentes de dominação e opressão, de hegemonia, e em um abandono da questão das condições da revolução. Contra essa possibilidade, González opta por perseverar nessa última pergunta, não fazendo da observação gramsciana da invisibilidade, no “Ocidente”, da estratégia da guerra de manobras, uma razão para deixar de lado o problema da “vontade nacional-popular, ou, o que é o mesmo, da organização política, cultural, moral e intelectual do povo”, pelo contrário, vê nela uma oportunidade de perseverar como o único quadro capaz de dar sentido às lutas contra a dominação.

3.

A ditadura instalada na Argentina em março de 1976 forçou González a seguir, alguns meses depois, o caminho do exílio. Estabeleceu-se em São Paulo, onde viveu por cerca de sete anos, onde passou a conhecer muito bem a história, a literatura, a política e a cultura do Brasil. Estudou na Universidade de São Paulo sob a orientação de Gabriel Cohn, discípulo do grande Florestan Fernandes e estudioso, entre muitas outras coisas, do ciclo de sociologia e filosofia social alemã que se dá entre Max Weber e os nomes da escola de Frankfurt. Leu muito e escreveu muito também, especialmente alguns belos livretos para a editora Brasiliense, que naqueles anos incentivava um vasto movimento de democratização da leitura, sobre os mais diversos temas: sobre o problema do subdesenvolvimento, uma questão fundamental nas discussões da sociologia latino-americana das duas décadas anteriores; sobre a questão dos intelectuais, que sempre o incomodaram; sobre a figura de Eva Perón, que lhe permitiu apresentar alguns problemas da vida política argentina ao público brasileiro; sobre Marx, cujo pensamento ofereceu, ao contrário das leituras mais convencionais, uma magnífica introdução sobre a Comuna de Paris, episódio da vida política francesa que sempre o interessou muito e em cuja interpretação ousou argumentar contra a do próprio Marx; sobre Albert Camus, cuja vida e obra ofereceu um magnífico afresco do pensamento francês e discussões francesas do século XX. Lecionou, também. Certa vez o próprio Gabriel Cohn relembrou os desafios pedagógicos aos quais, como antes e depois em Buenos Aires, ele ousou em seus cursos na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo.

De volta ao seu país, iniciou uma atividade incessante e incrível como professor, como escritor e como animador de diversas e intensas aventuras intelectuais. Retornou à sua Universidade, a de Buenos Aires, onde uma carreira de sociologia abandonada por muito tempo foi recuperada com força, em meio ao clima da “transição para a democracia”, tendo já cindida a Sociologia em relação à Faculdade de Filosofia e Letras em que nasceu, funcionando, agora, como carreira autônoma, em algumas salas de aula e escritórios emprestados no piso superior do enorme prédio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, na cidade universitária do bairro Núñez. Lecionou na Faculdade de Ciência Política da Universidade Nacional de Rosário e, mais tarde, também na Universidade de La Plata. A poucos quilômetros ao norte de Rosário, em uma pequena cidade chamada Puerto General San Martín, fazia parte de uma experiência formidável que tinha como protagonista um grupo político de forte espírito militante que havia tomado conta do governo local, após as eleições de 1983, e com o qual González colaborou editando uma bela coleção de cadernos que tinham ampla divulgação, organizando dois impressionantes congressos nacionais de Filosofia, que foram eventos ressonantes na vida cultural argentina daqueles anos. Ele escreveu inúmeros artigos em revistas de todas as cores e peles (indicamos El Porteño e Fin de Siglo apenas como duas em que teve uma participação muito frequente, mas a lista é infinita: é certo que ninguém nunca a fez e é improvável que alguém possa fazê-lo alguma vez), com uma vocação de intervenção em debates públicos que o caracterizariam ao longo de sua vida. A obra escrita que González deixou espalhada nessas incontáveis publicações argentinas nos últimos quarenta anos é impressionante.

Há, contudo, uma revista em particular em que González, naqueles anos 1980, publicou alguns de seus textos mais importantes e notáveis. Referimo-nos à revista Unidos, cujo nome foi inspirado em uma frase bem conhecida do antigo general Perón: “O ano 2000 nos encontrará unidos ou dominados”. Ele procurou ao mesmo tempo acompanhar as discussões sobre a “transição para a democracia” proposta pelo alfonsinismo, amplamente hegemônica tanto no mundo político quanto no intelectual e na universidade, a partir de uma perspectiva peronista, ou da recuperação da história, dos princípios e dos valores desse movimento em cujas fileiras González sempre militou. Ele buscou favorecer ao mesmo tempo o que naqueles anos foi chamado de “renovação” do próprio peronismo, que havia se confinado ao espaço da oposição após perder as eleições do ano 1983, não em último lugar em virtude do caráter francamente ultrapassado e conservador de seus principais líderes. A equipe editorial da revista foi encabeçada por um jovem líder da “renovação”, Carlos “Chacho” Álvarez, e integrada por vários dos protagonistas da antiga experiência do já citado Envido, do qual de alguma forma a Unidos pode ser considerada como uma espécie de continuação. Das diferentes contribuições de González naquela revista, escolhemos para esta compilação uma das primeiras, em que essa continuidade de preocupações e temas é mais evidente: “O general da consciência infeliz”, na qual González retorna à figura de Perón (que sempre o interessou, que sempre o perturbou e ao qual dedicaria anos mais tarde um de seus principais livros) para “passar limpo”, no início da nova experiência política que estava se abrindo, o estado de uma discussão que a morte do antigo líder primeiro, e a ditadura posteriormente, haviam interrompido, e que parecia necessário retomar para participar dos novos debates que viriam.

Dos vários outros artigos de González na Unidos, mencionamos apenas três, publicados entre 1986 e 1987. O primeiro, “El alfonsinismo, un bonapartismo de la ética”, constitui uma notável crítica à vocação do governo de Raúl Alfonsín para “esvaziar de significado” as experiências militantes do passado, reduzindo o tratamento da tragédia que acompanhou essas militâncias à sua dimensão quase judicial e chamando de “Ético” (“em vez de ver éticas em conflito”) o verniz com que queria cobrir uma forma suave e irrevogável de olhar para a história, o presente e o futuro, contra o qual González recuperou velhas teorias e discussões, como a que Sartre e Camus haviam protagonizado sobre a Argélia. O segundo, “Solanas y el bergantín de la modernidad” trata, por ocasião do cinema de Fernando “Pino” Solanas, sobre o problema do mito e as formas de se situar diante dele. Vive-se e pensa-se dentro dos mitos – escreve aqui González, que repetirá isso de mil maneiras diferentes ao longo de sua vida e de toda sua obra, fortemente inspirada nos pensamentos de Borges e Lévi-Strauss –, e não com a ilusão de iluminação, pela qual se crê que eles podem se assustar com um gesto irritante da mão. O terceiro, “La revolución em tinta limón”, ocupa-se do próprio peronismo como um dos grandes mitos da política argentina, analisando a forma como o delegado e interlocutor epistolar do “Condutor” nos anos de sua proscrição e seu exílio, John William Cooke, inscreveu seu próprio pensamento dentro desse mito do peronismo e de Perón. Só como uma piada, González poderia escrever uma vez que a passagem de Envido para a Unidos tinha sido o da sociologia do terceiro mundo para a ciência política da transição: esses textos que acabamos de rever revelam que havia um esforço para construir com as memórias das grandes discussões do passado as ferramentas para pensar sobre a Argentina que viria.

Parte disso encontramos também em um texto muito diferente, que incorporamos nesta seleção como testemunho de outros tipos de intervenções e preocupações de González nesses anos. Trata-se de uma conferência que mais tarde foi publicada na revista Babel, onde González colaborou com frequência (teria a seu cargo a coordenação da seção de resenhas de livros sobre a atualidade política), a respeito de uma figura fundamental da grande literatura inglesa das primeiras décadas do século XX: Thomas Edward Lawrence, cujo romance Os sete pilares da sabedoria dá a González a oportunidade de refletir sobre problemas que vêm e vão de diferentes formas ao longo de seu trabalho, como guerra, nação, identidade e destino. González compara “Os sete pilares…” com Facundo de Sarmiento, o grande livro sobre o deserto escrito na Argentina no século XIX, e com Os Sertões, de Euclides da Cunha, de alguma forma sua contraparte brasileira. Mas não deixa de notar a rara circunstância em que o livro de Lawrence, que apresenta o deserto como uma resposta positiva ao mal-estar da cultura e da vida intelectual, recebeu uma recepção favorável de um grupo, o de Victoria Ocampo e a revista Sur, cujo escritor mais notório – o grande Borges – poderia ser sensível a esse tratamento paradoxal do problema, do qual sua própria literatura dá, por sinal, repetido testemunho, mas cujas posições políticas tinham sido caracterizadas em geral por uma franca adesão a teses muito mais simples e brutais sobre o assunto. De certa forma, o texto de González continua velhas discussões sobre o tipo de nação que as classes dominantes do país, com base nessas posições e teses, conseguiram construir sobre o deserto argentino.

4.

Há algum tempo, González estava novamente estabelecido na Argentina quando, a pedido do conselheiro da pós-graduação que havia realizado durante os anos de exílio, e não sem ter que superar a resistência produzida por rituais e solenidades acadêmicas, apresentou na Universidade de São Paulo a escrita com a qual adquiriria o título de doutor. Trata-se de um texto extraordinário, intitulado La ética picaresca, que revê o amplo legado da filosofia social moderna a partir da ideia, de ostensivo tom weberiano, que os sujeitos da ação nunca sabem plenamente o que fazem quando agem, nunca são os donos dos sentidos de suas intervenções no mundo. A maneira pela qual “os homens fazem história” (como Marx havia escrito, citado por González há muitos anos – já vimos – em um de seus textos juvenis em Envido) é sempre o modo de ocultação e auto-ocultação (de pretexto ou má fé), que são formas ou lógicas de ação e da própria reflexão dos atores acerca dela. González iria procurar o modelo disso no texto da tradição da literatura espanhola do século XVI, mas também na ideia hegeliana de “ironia” e em sua versão “menor” ou baixada: a noção gramsciana de “sarcasmo”, as antropologias de Marcel Mauss e de seu conhecido Lévi-Strauss e na literatura sobre o problema da honra de Joseph Conrad ou Thomas Mann. A escrita de González, repleta de preciosas observações críticas sobre os modos dominantes da prática em ciências sociais em nossas universidades, que há muito tempo esqueceram a possibilidade de tais conversas, foi publicada em 1992.

Entretanto, a carreira de sociologia da UBA tinha mudado. Mais uma vez, porque ao longo de sua história não tão extensa essa carreira funcionou em vários prédios espalhados pela cidade. Uma vez que González escreveria, em um belo texto intitulado “Saberes de pasillo” (título que mais tarde foi de um livro, compilado e prefaciado por Juan Laxagueborde, que toma, além disso, vários outros dos muitos escritos sobre a “questão universitária”), uma história da carreira de Sociologia da UBA como a história dos edifícios que a haviam recebido, depois da passagem pela Cidade Universitária, à qual já nos referimos, ele veio a acrescentar outro prédio: uma antiga maternidade mal restaurada para servir aos seus novos propósitos, onde a carreira começaria a funcionar como parte de uma nova Faculdade, chamada de “Ciências Sociais”, que também acolheu, entre outros, a disciplina da Ciência Política e as pujantes Ciências da Comunicação. Assim, a Sociologia completou o trânsito que a havia tirado de seu elo inicial no antigo tronco das humanidades em que ela havia nascido para se aproximar de seu atrasado destino como uma província orgulhosa dos limites que a distinguiam tanto da história, da filosofia e da letras, como do resto das disciplinas que compuseram, ao seu lado, o grande campo das ciências sociais modernas, de vocação empírica predominante e diminuição da vontade de contestar. A mudança do clima político geral no país e o tom que adquiriram especificamente as políticas voltadas para uma Universidade que se queria (e que se tornou) cada vez mais hierárquica, mais meritocrática, mais competitiva e mais mesquinha, acabaram configurando as características mais devastadoras de uma situação contra a qual González, na última década do século, dirigiu todos os seus esforços críticos e militantes.

Uma das áreas em que ele fez isso foi uma revista, uma nova revista na série de várias em que ele concentrou esforços ao longo de sua vida: El ojo mocho, que González editou por anos com um grupo entusiasmado de colaboradores, em cujas páginas pode ser seguido um conjunto de discussões em que González derramou, naqueles tempos difíceis da vida política, da vida intelectual e da vida universitária do país, uma parte importante parte de seu esforço e sua energia. Por um lado, a revista teve uma seção fixa de longas entrevistas com protagonistas fundamentais da vida intelectual argentina das décadas anteriores (David Viñas, León Rozitchner, Carlos Correas, Oscar Landi, Héctor Schmucler, Jorge Rulli, Nicolás Casullo, Josefina Ludmer, Emilio de Ípola, Oscar del Barco, Rodolfo Fogwill, Néstor Perlongher), que em sua própria insistência em recuperar experiências militantes, editoriais, literárias, pedagógicas e todos os tipos de experiências constituiu um protesto contra o convite para tornar todas as formas de memória no altar da frívola modernidade do mercado, do consumo e da exclusão que foi oferecida como alternativa. Por outro lado, a revista propôs uma discussão tanto com a orientação política geral do governo neoliberal de Carlos Menem quanto com o caráter cada vez mais concessionário que era fácil de notar nas forças políticas de sua modesta oposição. Ele contestou a promoção ou aceitação acrítica da reconversão meritocrática e neoliberal da própria vida universitária e perseverou em um olhar mais exigente do que o do canhão que estava sendo instalado no que poderia ser pensado sob o nome da sociologia. De fato, entre os muitos artigos que González escreveu, ao longo dos anos, em El ojo mocho, selecionamos aqui um onde ele nos convida a pensar “do outro lado”, fugindo das visões racionalistas mais convencionais, das sociologias clássicas de Weber e Durkheim.

No final da década, González publica um dos livros mais importantes de toda sua enorme obra: Restos pampeanos, subintitulado, muito sugestivamente, “Ciência, ensaio e política na cultura argentina do século XX”. Trata-se de um trabalho extraordinário, organizado em três grandes partes que remetem, sucessivamente, às expressões mais relevantes desses três universos de discursos e discussões aos quais a tríade do subtítulo alude, partindo da experiência dessa sociologia positivista da qual falamos no início deste texto até as grandes controvérsias que marcaram a experiência – ou as diferentes experiências – do que foi nomeado, nos anos 60 e 70, como “esquerda nacional”. Claro, nesta última área, teria novamente um papel fundamental, nas páginas deste novo livro de González, a obra do já citado John William Cooke, que ocuparia de novo um lugar muito importante nas reflexões que iria expor uma década depois em seu notável Perón.  Mas também as obras, ideias e discussões de outros autores (menciono apenas Juan José Hernández Arregui e Jorge Abelardo Ramos) fazem parte de uma longa controvérsia com cujas relíquias e vestígios González construiu, ao longo dos anos, seu próprio pensamento. Parte disso é, sem dúvida, o que menciona a poderosa ideia de “restos”, fundamental na forma como González pensava nas formas de construção da memória e das linhagens. A propósito, o supracitado Ramos tinha um professor, Manuel Ugarte, cuja vida política tinha seguido um itinerário interessante e antecipatório desde seu socialismo juvenil até seu peronismo de maturidade, e a quem González dedicaria muitos anos depois de um de seus últimos livros, tendo também um discípulo, Ernesto Laclau, com quem González não parava de falar e discutir, de mil maneiras diferentes, nos anos seguintes.

Esses anos subsequentes foram marcados, na Argentina, pela intensa experiência dos dias que derrubaram o governo que naquele mesmo ano 1999 havia sucedido o de Menem: o de Fernando de la Rúa, que, conservador e desajeitado, cairia dois anos depois como resultado de uma forte mobilização popular; e, depois disso, pelo surgimento de uma nova liderança e uma nova experiência governamental do peronismo, agora em uma versão que buscou coletar, além dos melhores legados (dos melhores “restos”) da própria história desse movimento, aqueles do alfonsinismo dos anos da “transição” e das novas vozes que haviam aparecido no cenário político nacional nos últimos anos da luta contra os efeitos do programa neoliberal. González seguiu com grande interesse a revolta de 2001 e acompanhou (da maneira que sempre acompanhou as coisas que lhe interessavam: criticando, discutindo, indicando problemas e desalentos) a experiência posterior do kirchnerismo, enquanto continuava a escrever e ensinar. Um dia  ele estava se encontrando com um estudante no clássico bar Britânico, a meio quarteirão de sua casa, no bairro San Telmo, de Buenos Aires, quando o antigo telefone público do estabelecimento tocou. O garçom atendeu e gritou: “Professor González: é para você. É o Presidente Kirchner.” Não foi uma piada. Tendo telefonado para a casa um tempo antes, e informado sobre onde estava o homem que ele estava procurando, o presidente havia obtido o número dos “britânicos” e agora pediu a González para passar pela casa de governo (“Estou com um orientando, presidente. Acabo aqui e vou”), onde algumas horas mais tarde seria convidado para assumir a subdireção da Biblioteca Nacional da República Argentina.  

 5.

Logo depois, o recém-nomeado diretor da Biblioteca, Elvio Vitale, foi convocado para integrar as listas do Partido no poder para as eleições dos legisladores da cidade de Buenos Aires, e deixou seu cargo nas mãos do vice-diretor. González então começou sua administração à frente daquela instituição fundamental da cultura argentina, à qual ele deu por pouco mais de uma década um dinamismo, uma vitalidade, uma energia e uma inteligência que a tornou, contra uma história que tinha feito dela um lugar senhorial e quase imponente, de conservação ou proteção com muito pouca vocação para o diálogo com todos os campos da cultura e das artes, com a vida democrática do povo e com a expansão de suas experiências de leitura, a mais poderosa instituição pública da vida cultural argentina e o espaço mais dinâmico de atividade cultural na cidade de Buenos Aires, que então começou a ser governada pela força de direita “antipolítica”, autoritária, inescrupulosa e culturalmente muito carente, que anos depois chegaria, daquela plataforma de lançamento, ao governo nacional. Nesse contexto, o auditório da Biblioteca Nacional foi um dos poucos espaços em que por muitos anos as melhores expressões da música clássica e contemporânea, as melhores conferências de intelectuais do país e do mundo inteiro, as apresentações de cada livro que apareceu no país, puderam ser ouvidas na capital argentina em uma quantidade incrível de oportunidades com a participação do próprio diretor da instituição prestando homenagem ao autor da novidade com seu comentário.

Não é só isso. Durante os anos em que esteve à frente da Biblioteca Nacional, González fez dela uma poderosa editora que publicou um número inédito de livros, desde novidades bibliográficas, que a própria Biblioteca promoveu através de chamadas e competições de todos os tipos, até textos clássicos da cultura nacional, muitos deles desaparecidos das editoras e livrarias por um longo tempo, os quais González foi encarregado de republicar, prefaciando-os ou fazendo-os prefaciar. Ele passou por obras de autores fundamentais da cultura argentina, como – para dar apenas dois exemplos – Germán Rozenmacher ou León Rozitchner –, e fez também um importante número de edições periódicas de algumas grandes revistas políticas e culturais da história do país,  em cuja vida pública tinham ocupado um lugar fundamental desde muito cedo. A propósito, este tema que acabamos de apontar é tratado em um dos livros, Historia conjetural del periodismo argentino, que González escreveu naqueles mesmos anos, em que sua intensa atividade como diretor da Biblioteca não o fez reduzir, mas reforçar, seus esforços como escritor. Entre os resultados mais marcantes deste último, devemos mencionar aqui a aparição, em 2009, de um de seus maiores livros, que já anunciamos: Perón. Reflejos de uma vida, ensaio fundamental sobre o lugar de Perón – e, se podemos dizer, do nome de Perón – na história política argentina. Já dissemos que um dos grandes problemas de toda a obra de González é o mito, e especificamente o mito do peronismo e de Perón. Também dissemos que para González não é necessário (melhor: é impossível) “sair” do mito para poder pensar. Pensar é pensar dentro do mito e pensar no mito, explorando-o e desconfortando-o de mil maneiras diferentes. Em seu Perón, González leva à sua maior expressão esta empreitada.

Nesse sentido, esse livro é complementar a outro que González escreveu nestes anos sobre o qual estamos falando agora: sua notável Historia de la Biblioteca Nacional, publicada no próprio selo editorial da Biblioteca e que deve ser entendida como parte do exercício de direcioná-lo. Porque se González não acreditava que os mitos tinham que ser removidos do passado para pensar, mas que pensar era pensar lucidamente sobre os mitos entre os quais se vivia, ele não acreditava que as instituições tinham que ser removidas para conquistar a liberdade, porque a liberdade só era possível dentro dessas instituições, desde que elas também fossem submetidas ao exercício do exame crítico. A Biblioteca Nacional Argentina é, ao mesmo tempo, um dos grandes mitos e uma das grandes instituições argentinas (do primeiro tinha sido o grande responsável o velho Borges, que tinha sido seu diretor por dezoito anos: ainda não havia chegado, mas chegaria, o livro que González lhe dedicaria), e González não conseguia pensar na tarefa de estar no comando sem torná-lo objeto de uma reflexão que a revisse em sua longa presença na vida política e cultural da nação, o que de alguma forma lhe permitiria escrever uma história do país através da história de sua Biblioteca. Essa história dá, entre muitos outros, os nomes de Mariano Moreno (que fundou a Biblioteca e escreveu sobre ela, em meio às guerras pela emancipação, uma página que González valorizou especialmente), do arquivista e bibliófilo rosista Pedro de Ángelis, do francês Paul Groussac (a quem González dedicou um breve livreto escrito em colaboração com seu amigo Patrice Vermeren), de Hugo Wast, tão louvável em seu trabalho de biblioteca quanto condenado por suas posições antidemocráticas de direita (González, que sabia da importância dos nomes, retirou Wast da designação de uma sala na Biblioteca, e substituiu-o por Ezequiel Martínez Estrada), e, claro, a do próprio autor de “A Biblioteca de Babel“. 

Precisamente no caminho de Groussac e Borges, González realizou mais uma de suas grandes realizações durante seus dez anos de direção da Biblioteca Nacional: a edição da “terceira época” da revista La Biblioteca, que já havia tido dois períodos, precisamente durante os anos desses dois endereços notórios, e que durante os de González editou uma quinzena de números notáveis, em que várias centenas de textos de alguns dos grandes escritores do país se reúnem, discutindo as obras de autores como o próprio Borges ou Ricardo Piglia, sobre a questão do arquivo, sobre crítica literária e filosofia, sobre mitos e mitologias, sobre a questão da nação e os problemas da história, da linguagem e da tecnologia, sobre o dilema da América Latina e sobre o problema fundamental da linguagem. Essa última edição, que também tem notórios ecos borgianos, foi especialmente importante para González sempre, e constituiu um problema fundamental, não apenas nas páginas dessas questões extraordinárias de La Biblioteca, mas em muitas outras iniciativas que González implantou durante sua gestão. Uma delas, particularmente notável, foi a criação e o comissionamento, na órbita da Biblioteca Nacional, do extraordinário Museu do Livro e da Língua, que, imaginado e projetado sob a forte inspiração que representava para González o modelo do Museu da Língua Portuguesa de São Paulo, Brasil, tinha sua sede física em um prédio adjacente à própria Biblioteca (em cuja posição para servir seu novo projeto González comprometeu uma equipe liderada pelo então idoso arquiteto Clorindo Testa, que havia projetado o edifício central da Biblioteca e contribuiu para essa original expansão de sua infraestrutura e suas missões), que contava, até o fim da gestão de González na Biblioteca, com a direção ativa e luminosa da socióloga e ensaísta María Pia López.

O texto que escolhemos, nesta compilação, para ilustrar as preocupações de González durante este período particularmente ativo de sua vida intelectual, pública, militante, é precisamente o de um dos muitos artigos que escreveu em todos esses anos em La Biblioteca (a coleção de todos esses artigos daria em si um volume de extraordinária importância e interesse), referindo-se, precisamente, à experiência do Museu da Língua Portuguesa de São Paulo, e retornando, de mãos dadas com essa reflexão sobre a questão da linguagem, da “língua”, como Borges havia dito, em nossos países, aos grandes problemas da cultura e da tradição brasileira – que González sempre se preocupou muito – tratando da vanguarda literária e política dos anos 1920 (uma década antes, uma edição de El Ojo Mocho havia sido intitulada com a questão “antropofágica” do célebre manifesto de Oswald de Andrade: “Tupí ou not tupí?”), bem como dos cinematográficos e musicais dos anos 1960. Se o problema da linguagem, da língua, do idioma, sempre foi um problema fundamental para González, nestes anos em que estamos falando aqui ele assumiu uma centralidade decisiva, da qual testemunham, além de várias das ações que apontamos marcando seus dez anos de direção da Biblioteca, suas participações públicas em importantes debates sobre as políticas culturais da língua e da edição e alguns dos muitos livros e escritos que, como dissemos, ele não deixou de publicar em todos esses anos, entre os quais talvez possa ser destacado aqui, além de outros que já indicamos, seu Lenguas del ultraje, uma história intelectual do Rio da Prata desde a geração de 1937 até a geração da revista Contorno; e seu estudo preliminar para os Ensaios Barrocos de José Lezama Lima, dois anos depois.

De certa forma, é também uma exploração da linguagem com que González enfrentou, naqueles anos, o novo fenômeno que o kirchnerismo representava. Que era, naturalmente, um capítulo dentro da história maior do peronismo (com cujas derivas pós-1983 González lidaria, em 2008, no El peronismo fuera de sus fuentes, publicado em uma coleção coeditada entre a Biblioteca Nacional e a Universidade Nacional de General Sarmiento), mas que também bebia de algumas de suas fontes em outras experiências, como a dos movimentos revolucionários dos anos 1970, as lutas das organizações de direitos humanos, os esforços mais recuperáveis do alfonsinismo e a organização do protesto social contra os efeitos devastadores do neoliberalismo no final do século. Quando, em resposta à primeira de uma longa série de desafios contra os donos do poder mais concentrado, o governo de Cristina Fernández de Kirchner teve que enfrentar uma rebelião quase-golpista de alguns grupos de produtores agrícolas amplamente incentivada pela mídia que então começou a ser descrita como “hegemônica”, González foi um dos intelectuais que participaram da gestação do grupo Carta Abierta, que periodicamente abalava a cena das discussões públicas com textos (“Cartas”) que estão, sem dúvida, entre as grandes peças que naqueles anos serviram para pensar sobre o que estava acontecendo. Foram anos de extraordinária atividade intelectual de González, que continuou a esbanjar seus artigos, essenciais, em jornais e revistas dos mais variados, e sistematizou boa parte de suas reflexões sobre o kirchnerismo no El kirchnerismo: una controversia cultural, de 2011. 

6.

Se a experiência do menemismo, na última década do século passado, tinha sido caracterizada muitas vezes por González como a catástrofe política e moral, foi, sem dúvida, a mistura de brutalidade, de revanchismo político e social, de violência física e simbólica e de ilegalidades de todos os tipos que caracterizaram o governo autoritário de direita liderado entre 2015 e 2019 pelo empresário Mauricio Macri. Essa experiência foi uma razão de sofrimento pessoal particular para González, sendo convertida, contudo, em um objeto de seus despertares teóricos e bíblicos mais lúcidos e penetrantes. Seus artigos em uma série de mídias gráficas e blogs com os quais ele colaborou sistematicamente durante esse tempo são peças fundamentais para o difícil exercício de compreensão da nova barbárie que tomou conta do país naquele tempo sombrio. Mas eles estão longe, ao mesmo tempo, de esgotar a quantidade e qualidade do que González escreveu naqueles anos. Em 2014, González havia se aventurado em um gênero que até então nunca tinha explorado, com seu romance Besar a la muerta, uma reflexão sutil, engenhosa e às vezes hilária sobre o peronismo, a sociologia e a teologia política do cristianismo popular na história argentina do último meio século. Um ano depois, apareceu Redacciones cautivas, um romance decididamente mais sombrio sobre as condições do exercício do jornalismo (e também da vida e morte nos campos de concentração) na Argentina durante os anos da ditadura. Em 2016, a trilogia se encerra com Tomar las armas, em que o humor mais uma vez ocupa um lugar importante, desta vez para contar as aventuras de um professor universitário recrutado para ensinar os arcanos do trabalho de Esteban Echeverría aos membros de um grupo militante empenhado em realizar uma revolução absurda.

É impossível fazer justiça neste resumo muito apertado desses três preciosos “romancinhos” (como ele os chamou) de González, que retoma neles os temas que também percorrem a vasta obra ensaística de toda a sua vida. Também vale a pena rever adequadamente o conjunto de muitas outras coisas que escreveu na época, entre as quais destaca-se talvez seu pequeno livro de 2017 sobre a vida e obra de Manuel Ugarte, o primeiro elo – já dissemos –  na história do que seria chamado de “esquerda nacional” (com o qual González nunca deixaria de falar e no qual sempre encontrou fortes razões para inspiração) na Argentina. No mesmo ano de 2017, González publicou um livro notável: Traducciones malditas, uma pesquisa ambiciosa e um extraordinário esforço de escrita sobre o problema do traduzível e do intraduzível nas maneiras pelas quais Marx, Merleau-Ponty e Foucault (embora certamente não apenas eles: o livro, surpreendente, abre cada ponto de sua trama em infinitas novas direções, com o resultado de se tornar uma revisão completa de todo o tesouro das  leituras  gonzalianas) pensaram no que ele chama de “a experiência da imagem”. No ano seguinte, em 2018, um belo livro foi publicado, Borges: los pueblos bárbaros, sobre o que González apresenta o grande escritor argentino como “alguns aspectos laterais” (que, no entanto, revisará em um punhado das composições mais famosas), escritor que é presença fundamental – já dissemos isso também – ao longo de toda a sua obra. E um ano depois, em 2019, González publica outro livro notável: La Argentina manuscrita, que, em evidente diálogo com os grandes movimentos feministas, que nesses mesmos anos haviam renovado fortemente a vida política argentina e também a agenda de nossas preocupações e leituras, revisa toda a história da literatura nacional para encontrar, a partir de sua própria origem e ao longo de uma série de reiterações do mesmo tema, sucessivas evidências da centralidade de um mito fundamental em todas as culturas: a da mulher sequestrada e violada, cativa, um mito que o livro de González nos convida a percorrer desde suas remotas fontes gregas e latinas até a literatura mais urgente e atual.

Aposentado da atividade docente regular da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires, González ministrou durante esses anos inúmeros cursos gratuitos convidados pelas mais diversas instituições, incluindo sua antiga e amada Faculdade de Filosofia e Letras da mesma Universidade.  “Onde tudo começou” – como escreveu o já citado Ernesto Laclau na dedicatória de um de seus livros. Entre 2017 e 2021, as comemorações do centenário da Revolução Russa e do sesquicentenário da Comuna de Paris inspiraram nele inúmeras leituras e vários seminários, extraordinários, sobre as obras clássicas dos grandes teóricos da esquerda revolucionária da velha Europa, de Marx e Blanqui a Lênin e Trotsky. Nos mesmos anos, escreveu e falou muito em muito mais lugares do que poderia até mesmo ser indicado aqui de passagem, passando a se mover por todos os lugares, com a chegada da pandemia e do “isolamento”, através do Zoom – que o inspirou na célebre piada do “zoom politikón” – durante o último, muito ativo, ano de sua vida. Entre as diversas coisas que escreveu, optamos por publicar neste volume sua preciosa introdução a uma compilação de textos de Florestan Fernandes editados pela já citada Universidade Nacional de General Sarmiento, o que nos deixa com novas evidências de seu bom conhecimento e seu grande interesse pelos problemas da sociologia brasileira. Mas nos pareceu que essa compilação também merecia a inclusão de pelo menos algumas das muitas intervenções orais que González esboçou nas inúmeras áreas da militância política, social e sindical em que participou nestes últimos anos de sua vida. Escolhemos um, que por muitas razões achamos formidável: o que improvisou na Feira do Livro de Buenos Aires em 2017, convidado a participar de uma mesa redonda organizada pelo sindicato dos ladrilheiros do país. González participou com assiduidade e interesse nas reuniões dos ladrilheiros, cujo trabalho e forma de organização ele tinha não apenas uma alta valorização, mas uma reflexão muito completa, cheia de interesse, como revelado no penúltimo texto desta série que estamos apresentando aqui.

Enquanto isso, a catástrofe econômica, social e de todos os tipos deixadas pela experiência do governo macrista determinou, após quatro anos de fortes retrocessos nas condições de vida das enormes maiorias argentinas, um novo triunfo do peronismo, agora em uma versão mais “moderada” do que a que representou e ainda representa o nome da ex-presidente Cristina Fernández de Kirchner. González participou com entusiasmo, como sempre, nos debates que antecederam as eleições, e seguiu com interesse e preocupação os primeiros passos do novo governo. Claro, ele teve que mudar sua agenda muito em breve, que desde o início da pandemia que assola o mundo não tinha quase nenhum outro eixo além do cuidado da população e atenção às questões de saúde, questões que também passaram a ocupar o centro de todas ou quase todas as nossas preocupações, e sobre as quais González escreveu várias notas de enorme interesse, enquanto escrevia e corrigia o que seria seu último livro: uma revisão completa dos debates do último meio século sobre a questão do humanismo, o qual González insistiu na necessidade de se recuperar como um horizonte para pensar sobre os problemas do presente. González continuaria lendo, discutindo e escrevendo até o fim. Pouco antes da sua partida, a morte de Alcira Argumedo, quem já mencionamos no início dessas linhas, inspirou-lhe um texto de despedida que não queríamos deixar de incluir nesta compilação, pois constitui, ao mesmo tempo, uma memória emocional de seu amigo, um magnífico equilíbrio da experiência de um grupo e de uma geração intelectual e militante que também foi a sua, e com a qual agora temos a tarefa, a responsabilidade, a feliz obrigação de seguir conversando através da leitura de seus textos.

Notas

[1] [N. T.] Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888), que foi, no século XIX, presidente da Argentina, jornalista e escritor, autor do clássico latino-americano Facundo o Civilización y Barbarie, em 1845.

[2] [N. T.] A expressão yrigoyenismo se refere ao período de liderança de Hipólito Yrigoyen (1852-1933), que foi presidente da Argentina por duas vezes: entre 1912 e 1920, depois entre 1928 e 1930.


Eduardo Rinesi

Ele é um filósofo, cientista político e educador argentino. Doutorado em Filosofia pela Universidade de São Paulo. Professor no Colégio Nacional de Buenos Aires e também na Universidade Nacional de Córdoba. Membro do grupo de intelectuais do Espacio Carta Abierta e do Conselho de Administração da Autoridade Federal de Serviços de Comunicação Audiovisual (AFSCA).


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A Biblioteca Básica Latino-Americana (BBLA) é uma realização da Fundação Darcy Ribeiro (Fundar), que tem a parceria do Ateliê de Humanidades juntamente com as editoras Revista de Cultura e Azougue (Brasil), Oca Editorial (Portugal, Espanha e EUA) e Tucán Ediciones (Chile e outros países da América Latina).

A proposta da coleção é realizar o mapeamento, a apresentação, a reflexão e o estímulo à criação sobre a cultura e o pensamento latino-americano, através da publicação de livros de ensaios de importantes pensadores e artistas do continente. O objetivo consiste em alcançar um público amplo, por meio de livros com conteúdo de qualidade em edições atrativas e bem-cuidadas, que terão versão em português, espanhol e inglês e publicação em diversos países.

Os primeiros volumes são: “A américa latina existe?”, de Darcy Ribeiro, “A grande marcha da América Latina”, do uruguaio Angel Rama, “O idioma da crítica”, do argentino Horácio González, “Um voo de Tukui”, da chilena Ana Pizarro, e “Améfrica Ladina”, de Lélia González.



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por Anders Noren

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