Trazemos hoje no Fios do Tempo uma resenha do livro O chão da mente: A pergunta pela ficção, de Luiz Costa Lima (EdUNESP, 2021), escrita por Júlia de Mello (PPGLit-UFSCar). Em sua reflexão, Júlia de Mello não apenas apresenta com brilho as teses e questões centrais de Chão da mente, que é a primeira obra em que Costa Lima sistematiza sua teoria da ficção, como também o situa com conhecimento de causa no conjunto do pensamento do autor. Deste modo, ao tratar dos problemas da mímesis, do controle do imaginário e do discurso ficcional, somos conduzidos pela autora por uma erudita e agradável viagem que perpassa e entrecruza a filosofia, a psicanálise, a crítica literária e a teoria social.
Com esta resenha, abrimos uma reflexão sobre O chão da mente, que terá lançamento pelo Ateliê de Humanidades, em parceria com a EdUNESP, no próximo dia 16 de setembro (19h) no canal do Ateliê no Youtube, com a presença de Luiz Costa Lima, Flora Sussekind, Aline Magalhães Pinto e André Magnelli, tendo mediação de Lindoberg Campos.
Desejamos, como sempre, uma excelente leitura!
A. M.
Fios do Tempo, 27 de agosto de 2021

Entre o mapa e o território:
como se constitui o ficcional?
Júlia de Mello
Para Dau Bastos e Thiago Castañon
Resenha de :
O chão da mente – a pergunta pela ficção, de Luiz Costa Lima
Po(i)eticamente Luiz Costa Lima tem como dado biográfico1 a origem de suas indagações literárias. Filosoficamente, em sentido amplo, as respostas começam a ser sistematizadas na década de 1960, com a publicação de Por que literatura. Contudo, sua proposta teórica tem como espécie de virada a publicação de Mímesis e modernidade, em 1980, quando começa a dar corpo àquilo que chama de sua obsessão, seu work in progress: a reconsideração da mímesis. Desde então, são quarenta anos de reflexão profunda sobre o fenômeno mimético-representacional, que acabou se desdobrando no que chamou de Controle do Imaginário ao revelar o veto ao ficcional.
De uma perspectiva englobante, sempre houve uma grande teoria da ficcionalidade entremeada nessas discussões. O controle incide sobre a mímesis, legitimando o que é de bom-tom, por semelhança com o pensamento representante das classes hegemônicas, ser evocado na representação artística. A diferença não é bem-vinda uma vez que, tendo a sociedade, ora pelo argumento moral, ora religioso, ora racional e cientificista, um apego à verdade ordenadora do vivido, aquilo que se contrapõe à sua verdade, imposta pelas classes de poder, não deve ser representado ou consumido e é tido por falso. Daí a negatividade que constantemente incide sobre o termo “ficção”, com carga semântica de mentira, daquilo que se distancia e desestabiliza a verdade a que se apega para viver mais confortavelmente.
Da perspectiva de Costa Lima, ficcionalizar, nessa tradição ocidental de pensamento, estaria no hemisfério do dissenso, do que desestabiliza e desloca por não se assemelhar com a verdade ordenadora do real imperante em determinado tempo e espaço. Mas reconsiderar a mímesis implica repensar essa noção de ficção, retirando-lhe a carga de inverdade sem, entretanto, atribuir-lhe veracidade controladora da arte.
“A ficção é o que não cabe na verdade. A ficção não é gerida pela ideia de verdade, sem que, por isso, ela, a ficção, se confunda com o falso”, afirma Costa Lima, durante a live de lançamento de seu trigésimo livro: O chão da mente – a pergunta pelo ficcional (2021, Editora Unesp, 308 páginas). “Entre a verdade e o falso, está a ficção”. Eis o que faltava à epistemologia costalimiana: a sistematização de sua teoria da ficção.
Predizer as paragens
O prefácio do livro, “A síntese de um périplo”, é, ao contrário, um périplo sintético, definição que não tem, de forma alguma, conotação negativa ou de minorização. Porque assim o é, um périplo sintético, é pontual e preciso no modo de apresentar a questão que dá azo ou que é base para discutir o ficcional.
O livro de que tratamos aqui centraliza a questão do sujeito na reflexão sobre o ficcional. Nos termos do autor, “a introdução do paradigma subjetivo na teoria ocidental do conhecimento provocará ou a manutenção do interdito romântico ou a retomada incessante de sua acepção clássica” (p. 15-6). Em outras palavras, a introdução de tal paradigma ou se afasta da mímesis, rejeitando-a a partir do argumento da consciência do eu, ou a corrompe como imitatio, concentrando-se na semelhança, de maneira geral, com o objeto ou modelo que a precede. Em ambos os casos, tem-se por resultado o ostracismo da mímesis.
Se o princípio gerador da ficção é a mímesis (p. 18), e tendo o autor já delineado a descorrupção da mímesis em obras precedentes (sobretudo na tetralogia da mímesis), agora o movimento se dá em direção a descorromper e liberar a ficção do veto que sobre ela recaiu, ao se impedir pensar sobre ela. Isso se dá a partir da compreensão de que paira sobre o Ocidente uma tradição racional, substancialista, apegada a explicações conceituais e causais que estabilizam o viver. Sendo o sujeito a parcela fundamental na esfera do vivido, por ele passa o que constitui o mundo, ao mesmo tempo que ele é perpassado por seus discursos. De Aristóteles a Kant, esse sujeito, imerso na tradição mencionada, só se relaciona com o mundo pensando-se e pensando na essência racionalmente alcançável das coisas a partir do enfoque na semelhança constitutiva do fenômeno representacional, reduzindo-o à imitatio. O ponto alto dessa trajetória se dá na culminância do autocentramento do sujeito solar. No entanto, esse excurso histórico, porque limitador da mímesis, é um interdito à ficção. Para que esta possa ser evidenciada, impõe-se começar pelo questionamento dessa tradição centrada na ideia de substância. Nos termos do autor:
A imitatio encontrava respaldo na essência porque esta supunha que, contra a acidentalidade do particular, cada coisa encontra maneira de ser humanamente compreendida, em decorrência da imutabilidade em que está contida. Falar, por conseguinte, equivale a remeter o campo da arte à armação de modelo e imitação, a que o mímema estaria subordinado. Por isso não parece estranho que, ao largo da travessia em que nos encontramos, tenhamos chegado ao ponto de contrariar a absolutidade da essência
(p. 19).
Questionar a tendência à representação por semelhança, i.e., a imitatio, é, portanto, colocar em xeque o esquema essencialista e a suficiência da consciência do eu como controlador/ordenador do mundo por sua capacidade racional, conceitual.
É na década de 19702 que tanto o esquema essencialista de origem clássica quanto a suficiência romântica da consciência do eu são colocados sob suspeita: “a década de 1970 passou a ver com desconfiança tanto a prática essencializante quanto a romântica” (p. 21). A caracterização da ideia de ficção só poderia ser pensada a partir de tal questionamento porque é quando se começa a consolidar, pelo acúmulo das proposições desde Kant, outra noção de sujeito que, em suas fraturas, cria se acrescendo ao que representa, sem se relacionar com o mundo apenas por semelhança, mas também por diferença. Daí a reconsideração da mímesis por Costa Lima.
Em suma, a partir do período destacado é possível refazer a história da mímesis e perceber que a dicotomia sujeito-objeto, sendo aquele complementar deste (e vice-versa), controlou a compreensão do fenômeno representacional por meio de sua redução a uma referência externa ou interna, ambas priorizando a semelhança. Quando há uma revisão dessa relação, a constatação da subjetividade fraturada faz perceber que, por causa dela, a relação de complementaridade entre sujeito e objeto era falaciosa, portanto sempre teria havido diferença, além de semelhança, na constituição da mímesis. Entendendo-se a diferença, libera-se o ficcional.
A tradição da semelhança favoreceu o entendimento do mímema como conceito e “a mímesis era tida por um fenômeno passível de ser conceituado. À medida, ao contrário, que aprofundamos como resultado da tensão entre semelhança e diferença, enfatiza-se a insuficiência de qualquer conceituação” (p. 23-4). Costa Lima chama a atenção para o fato de que isso não somente altera o modo de se pensar a literatura, mas também transforma toda uma Teoria do Conhecimento ocidental. No que concerne à ficção, o ressalte da diferença que impossibilita conceituações dota o ficcional de uma tensão avessa a estabilizações (p. 28).
A aversão a estabilizações se dá em oposição à necessidade humana de determinar sentidos e significações unitárias e universais: “o sentido não é da ordem do em-si, mas decorre do que se põe diante do agente humano e precisa assumir para ele uma razão de ser; do contrário, seríamos seres que vagam em um universo cheio de coisas vagas” (p. 33). No entanto, a produção de sentido é um ato discursivamente coletivo e responde a interesses dominantes em uma sociedade de uma determinada época, despindo-se do aspecto de verdade absoluta advindo daquela tradição. Essa consciência, reitera-se, favorece o surgimento da ideia de ficção, conforme Costa Lima afirmou no evento de lançamento de O chão da mente.
Além de um improviso jazzístico, como disse Ana Lúcia de Oliveira, por ocasião do mesmo evento, sobre o método de Costa Lima, o que ele faz é também uma progressão metonímica. Isso porque, sob a dinâmica da “mescla de recapitulação e observações ainda inéditas” (p. 19) ou, ainda, ao entremear o retrospecto do que desenvolve desde 1980 com reflexões ainda inéditas (p. 11), i.e., ao retomar seus escritos e aprofundá-los, recobra o jogo entre semelhança (assemelhar-se ao que já escreveu) e diferença (avançar de forma ideativa-criativa, apresentando dissonâncias, contrastes e transformações em sua própria teoria) próprio da mímesis, impulso do ficcional. Cada nova parte acrescentada à teoria retoma seu todo e sobre ele avança.
Vislumbre de um primeiro hiato
No capítulo “Abertura” do livro, encontraremos um percurso próximo ao já feito de modo bastante dedicado e profundo na Trilogia do controle (especialmente em O controle do imaginário), Limites da voz (volumes 1 e 2) e em Mímesis: desafio ao pensamento. Percurso que demonstra a construção do paradigma subjetivo, culminando-se no autocentramento do sujeito cujo desfecho à maneira de Costa Lima será o vislumbre de um hiato, qual seja: a abertura da pluralidade nietzschiana para se delinear o sujeito fraturado.
O chão da mente pergunta pelo ficcional. E a resposta decorre do questionamento da mímesis tradicional, em movimento que se mostra possível principalmente pela indagação sobre o que se entende por subjetividade. Por isso esta obra centraliza a questão do sujeito, sendo este capítulo a ela seminal, pois conforma o que o autor chama de “uma arqueologia do sujeito” (p. 46). É nele, no capítulo, que se demonstra aquilo a se entender: a alocação da subjetividade em sua dimensão histórica usual, para então considerar o autocentramento e as fraturas subjetivas ao longo da história do Ocidente (p. 39-40).
Assim, partindo de Platão e passando por São Tomás de Aquino, Descartes, John Locke, Kant, Herder, Hegel, Shopenhauer e chegando a Nietzsche, delineia-se o desfazimento do sujeito autocentrado pela compreensão das fraturas constituintes da individualidade. Demonstra-se que Kant dá abertura à proposição da concepção do sujeito fraturado, embora ainda construa sua reflexão a partir do paradigma tradicional clássico da substância-essência-verdade culminante em uma perspectiva empirista.
Está em questão esse essencialismo substancialista que é determinante em Descartes para a consolidação de um sujeito centralizador e controlador da natureza e de suas vontades, i.e., do mundo externo, por conseguinte, das representações que evoca: “o fundamento de substância que calça o eu justifica o cunho de realidade de tudo que, como já dizia, se concebe clara e distintamente. Estabelece-se assim o que será o ponto de divergência capital com Kant, de que este tirará a centralidade do juízo sintético a priori” (p. 54-5). Ainda: “em Descartes, a substantia se encarna no homem; antropomorfizada, ela de certo modo esconde sua falibilidade” (p. 55). Se, para Kant, em Descartes, “com a única proposição do eu penso constrói-se uma falsa consciência” (p. 57), pois “a consciência não fornece a representação de uma experiência externa” (p. 58), no próprio filósofo prussiano “já não se trata de se desembaraçar do que julga empirista na elaboração cartesiana, mas do questionamento do sujeito como substância” (p. 58). Kant questiona “que o sujeito cartesiano ainda em parte mantinha a concepção da autossuficiência da substância” (p. 58). A partir da proposição do a priori, “afirma-se que o conceito cartesiano do eu concentra-se na consciência de si, sem qualquer alusão à intuição, o único meio, segundo o pensamento kantiano, pelo qual o objeto se nos torna apreensível” (p. 60). Por isso, Kant mantém
o legado do cogito afastado da inerência da substância, que passa a adquirir uma dimensão irredutível ao imediatamente antropológico. Melhor dito, o antropológico kantiano não se confunde com o mundo das certezas. O que equivale a dizer que o plano do conhecimento não se confunde nem com o mundo da indeterminação nem com seu oposto, o de um positivo absoluto. […]. Reafirmar-se assim a excepcionalidade da elaboração kantiana seria um flatus vocis se não se considerasse o que incorpora do pensador temporalmente próximo. Dizê-lo implica que esse roteiro não deve ser lido como o relato de uma pugna entre alguns pensadores, mas sim como a colaboração retificadora que se estabelece entre eles. Ela se estende à linha constituída desde Aristóteles, cuja concepção de substância se modifica, recebe a atribuição de um eu que será desviada por Kant, sem que seja por ele negada
(p. 61).
O problema é que Kant contrapunha o cogito à intuição, mas aproveitava o refinamento da instituição cartesiana, supondo a maior questionabilidade do mundo pela afirmação de juízos não comprovados empiricamente (p. 72). Já o conhecimento que o sucede rompe com essa abertura proporcionada pelo pensamento kantiano, descontinuando-o.
É apenas com Nietzsche que se percebe a “necessidade de desenredar o mundo do que considerará ser o alçapão do conhecimento” (p. 82). Segundo sua filosofia, a coisa-em si não existe, consequentemente, tampouco a verdade, o ponto de vista definido ou o eu unitário, o um uno do ser. Em sua afirmação radical do eu, “declara que ‘o sujeito é uma multiplicidade’, não cogita em uma pluralidade de singularidades, mas na heterogeneidade de indivíduos singulares” (p. 88). Para Nietzsche, o indivíduo é composto por uma pluralidade de inclinações e instintos, uma pluralidade de “vontades de potência” dotadas de diversos meios e formas expressivos. Essa perspectiva antecipa o sujeito fraturado por reconhecer, de maneira geral, que o sujeito é uma variedade de consciências formadas a partir de uma axiologia social hegemônica de determinado tempo e espaço, bem como de valores da comunidade em que se vive. Contudo, esse Nietzsche pluralista, que ultrapassa o traço egoico tradicional, é exceção em sua concepção teórica geral, contrariando-se a especificidade da diversidade – que não perdurou – e dominando-se, em contrapartida, o destaque do eu.
Continuando a construção da descontinuidade
O destaque do eu entranhou de tal modo na constituição social que, como afirma Costa Lima, “quase três séculos depois, a sóbria vibração cartesiana continuará a ser escutada ao longo da obra de Georg Simmel” (p. 51). É o que percebemos no segundo capítulo do livro: “Georg Simmel e a questão do sujeito”, a partir da discussão em torno da harmonia estabilizadora do eu (que é controladora) e a ideia de uma pluralidade efetiva de papéis subjetivos (que libera o ficcional do veto da regularidade).
O chão da mente demonstra que Simmel parte do legado kantiano, mas dele se desvia em direção a uma solução para a questão do sujeito autocentrado que, falsa, apenas potencializa sua solaridade. Em contrapartida, o encaminhamento para a solução mencionada inaugura caminhos que começam a apontar para a concepção de sujeito fraturado. Daí colocar-se a ambiguidade simmeliana em questão para entender-se, em profundidade, as bases propulsoras para um pensamento na contramão, como contravertente, do paradigma a que se vinculará o sociólogo alemão: o do autocentramento do sujeito. Sem pretender reproduzir o trânsito de Costa Lima pelas obras de Simmel, cabe frisar, no âmbito desta resenha, que a ambivalência teórica simmeliana se dá proporcionalmente à centralização do destaque, na teoria problematizada, da individualidade.
As ligações entre o a priori kantiano (a intuição) e o empírico (os dados fáticos) se dão no plano inconsciente. Nesse caso há uma causalidade que acontece como em segundo plano, i.e., não material ou biologicamente – engendrada em uma lei geral que explica conceitualmente a relação entre a consequência e sua causa –, mas em uma cadeia mental individual, de caráter metafórico, não consciente, sob um fenômeno representacional. Há, assim, ações humanas observáveis sem motivações conscientes que se resolvem na consciência. Sobretudo no que concerne à experiência de inter-relação humana entre o indivíduo e o outro, sendo este último a unidade interna da personalidade, que é plural sem ser coletiva, ou seja: é uma unidade de pluralidade de condutas, uma singularidade múltipla e particularizada. Tal constructo teórico daria espaço para se pensar a pluralidade de papéis sociais exercida por um mesmo sujeito a partir de suas fraturas, por meio da discussão do ficcional, que é a forma discursiva que pode afastar de vez o resíduo de autocentramento, não fosse o vínculo positivista e cientificista a orientar a metafísica simmeliana. Por essa perspectiva, as relações do sujeito proposto por Simmel se dariam objetivamente por uma construção subjetiva, empática, que desfaria a distância entre o vivido e sua imagem. E isso só seria possível dada a função conciliadora atribuída à estrutura psíquica individual: “ao realce do eu, e de sua forma plural, a personalidade, se contrapunha o peso da objetividade, constituído pelo que se afasta do sujeito. Ambos são tratados como partes de uma dualidade pelo que os unifica: a formação do valor” (p. 138). O dualismo oscilante entre subjetividade e objetividade, portanto, continua o paradigma substancialista sobretudo porque, avançando a construção do sujeito autocentrado, dá acabamento ao primado do sujeito individual, que ilusoriamente é detentor do controle sobre suas representações e, por assim sê-lo, toma a si como medida do mundo. A resultante é que essa relação dual, pela harmonização relacionista de seus polos escalonares, não passa de uma unidade metafísica: o externo, a natureza, o objetivo está incluído no eu e este, o subjetivo, é parte daquele.
Segundo Costa Lima, a necessidade humana de equilíbrio e estabilização no que diz respeito à relação entre o vivente e o mundo, emoções/expectativas e resultados, faz tanto sentido quanto a premência de se pensar o trancendentalismo sem limites do a priori kantiano oposto ao absoluto da subjetividade da metafísica anterior a ele. No entanto, o relacionismo teorizado para equilibrar a relação entre sujeito e mundo é controverso, equivocado, e dele o autor de O chão da mente diverge. A inconsonância se dá justamente porque, em lugar de harmonizar os polos da relação, é na dissonância e no dissenso produzido em tal interação que é possível acentuar não as semelhanças, mas as diferenças resultantes desse convívio, permitindo-se a emersão do ficcional:
O padrão de consciência vigente na sociedade ocidental esconde os papéis menos salientes do eu porque seu ideal é confundi-lo com o papel mais aceito e de maior êxito do eu. O eu, pressionado pela consciência padronizada no grupo de referência, procurará estar a ele ajustado, tornando ignorados seus possíveis outros papéis. A teoria dos papéis tende assim a desempenhar mesmo na pesquisa científica uma posição secundária. Seu resgate ainda assim subordinado é passível de se dar pela extrapolação da análise da ficcionalidade. O conceito de papéis motiva a aproximação do ficcional, mesmo porque o ficcional, em sua modalidade interna, distancia-se da prática autocentrada (p. 170-1).3
O intervalo, a maquete, a planta: uma instalação
Mesmo Freud teria chamado a atenção para o fato de que há, na mente humana, uma tendência a propor a tudo uma interpretação que suponha uma estrutura encadeada. Tanto assim que a memória tem a capacidade de conectar, involuntariamente, quaisquer desconexões de um sonho incoerente. A isso se chamou “elaboração secundária”, que “concede ao material onírico, ainda quando complexo e relativo a experiências e sensações conscientemente rejeitáveis, ajustar seu conteúdo aos preceitos e valores de quem tenha sonhado” (p. 184-5). A diferença, contudo, é que o sujeito freudiano assim o faz no intervalo de suas contradições internas, no espaço da linguagem, entre razão crítica, circunspecção, paixão e os desvãos do desconhecido: “o ser não tem por fronteiras senão a contradição em que opera” (p. 190).
Costa Lima toma a teoria freudiana como importantíssima descontinuidade na reflexão que se vinha fazendo sobre o sujeito. Descontinuidade essa que prepara solo fértil para a proposição do sujeito fraturado, permitindo-se pensar a ficção. Aliás, na primeira seção do terceiro capítulo (“Primeira parte: uma conversa com Freud”), vê-se como a dinâmica psíquica oferece justificativas para a questão do ficcional.
Do onírico (o sonho) ao estritamente ficcional (a ficção literária propriamente dita) e deste ao ficcional consciente (o ensaio, por exemplo), há um mecanismo subjacente a funcionar por meio de: a) censura e repressão consciente; b) recordação da cena vivida; c) inconsciente que atravessa a resistência oferecida pela censura e deforma o vivenciado. Sem embargo, em termos da teoria costalimiana, assim poderíamos traduzir tal mecanismo: a) controle do imaginário, b) semelhança (que contém restos do real) sobre a qual se ergue c) a diferença ficcional que dribla o controle e deforma os traços de semelhança com a realidade. Segundo Costa Lima, “o exercício das disposições ficcionais – o ficcional restrito do sonho, o ficcional no sentido amplo, que provoca a experiência estética – interrompe a via ‘civilizada’, socialmente integrada e controlada por normas e costumes que a sociedade adota” (p. 194-5).
O sonho se faz de “restos diurnos” do vivido selecionados e convertidos, por meio de deslocamentos e condensações, em imagens sensoriais e cenas visuais em sequência, e combinados com pensamentos oníricos latentes. Tal combinação é lida de modo associativo e interpretada simbolicamente a contrapelo da resistência, da censura e da repressão, dribladas pela burla ao controle consciente do eu ideal sobre o inconsciente, que, em cooperação com o pré-consciente, sempre faz incidir um ponto focal sobre a combinação. Analogamente, o que ocorre no escrito ficcional senão a seleção de restos do real a serem combinados na criação/invenção e convertidos na realidade interna da obra – constructo sequencial de imagens a serem associadas e interpretadas no plano da imaginação, conforme a teoria iseriana,4 a driblar ou burlar o controle do imaginário de Costa Lima?
Se há, segundo Freud, em todo sonho um ponto de contato obscuro e insondável com o desconhecido, Costa Lima diz que
toda atividade ficcional é decorrente de um núcleo desconhecido, e sua ativação é fruto de “uma atividade altamente complexa”, assim como de tais realizações serem sincrônicas a uma cadeia de experiências – o vivido combina-se ao imaginário, um e outro sofrem a interferência dos mecanismos de controle – sobre a censura; o vivido é desconectado de sua linearidade e, pelas imagens visuais, é combinado a outros instantes, ocasionando um conteúdo cuja aparência se confunde com o caos
(p. 203-4).
O que, como no sonho, absolutamente fundado na subjetividade de quem sonha, acentua sua constante interminabilidade, dada a parcialidade do indivíduo enredado no caos. A ficção propriamente dita, estrita, é produto do inconsciente, que desempenha um papel central na linguagem ficcional, ao excluir a preponderância da razão, ainda que conte com seu lastro. Ou seja, o inconsciente ganha maior espaço, libertando-se da mera vivencialidade e enganando os mecanismos repressivos.
Como disse Aline Magalhães Pinto durante o lançamento de O chão da mente, “como Costa Lima afirma, da mesma maneira que o sonho é um conglomerado geológico em que cada fragmento de pedra exige uma análise isolada cujo deslindamento coincide com a remoção, o trabalho sobre o ficcional não será da ordem da revelação de algo oculto, mas um movimento tal como aquele que há entre o mapa e o território”.
Ainda nos termos de Aline Magalhães Pinto, nesta seção de O chão da mente “o texto mostra como uma teoria da ficção surge em paralelo análogo à descoberta freudiana e analisa o quanto Freud é um investigador indispensável para uma parte importante do território do ficcional”. Ou, nas palavras do próprio Costa Lima, “a trilha aberta pela dimensão do inconsciente, em vez de se restringir ao científico-filosófico, ainda alcançou o ficcional com seriedade” (p. 233-4).
Fundação da inventividade
A teoria de Simmel foi o clímax do autocentramento do sujeito, i.e., de uma subjetividade individual, una, devedora da metafísica hegeliana em que a consciência racional era propulsora da ação controladora e centralizadora em si do mundo. Com Freud, o sujeito se complexifica, ganha profundidade psíquica, ultrapassando-se a restrição empírica e, “sem abandonar a intervenção da consciência, não é mais concebido à maneira de um prato condimentado por ela” (p. 212-3). Se em Freud o eu se amplifica em suas dimensões psíquicas, estas agora ganham espessura ao serem entranhadas na tessitura social. É o que se vê na segunda seção do terceiro capítulo de O chão da mente, “Segunda parte: complemento antropológico”: um perscrutar da ficção nos interregnos sociopsicológicos do sujeito.
Nessa segunda parte, Costa Lima recorre a contribuições, que avançam a perspectiva freudiana, de Georg Herbert Mead, Erving Goffman e Gregory Bateson. No fundo das perspectivas teóricas desses três autores, encontram-se duas questões fundamentais.
A primeira concerne à questão da finalidade do ficcional. Para Mead, o eu só se desenvolve socialmente a partir das experiências e atividades sociais – resultantes das relações com outros indivíduos – que vai vivenciando ao longo da vida. Portanto, esse eu surge na experiência social e é dela estruturante; responde à axiologia comunitária e a ela comunica suas diferenças identitárias em relação àquela. Nesse jogo, para se movimentar, cada participante pressupõe o movimento reativo do outro: “é nessa margem de imprecisão que temos de trabalhar. Ou seja, o inapropriado (em português) ‘jogo’ é o termo que temos provisoriamente de usar a propósito do discurso ficcional” (p. 217). Nesse contexto, jogo “significa o exercício de um discurso sem uma finalidade específica” (p. 217). Se o discurso pragmático, filosófico, religioso, científico, esportivo e a maioria das formas discursivas estão subordinadas a uma finalidade, o ficcional, ao contrário, possui uma “finalidade sem fim”, nos termos kantianos. O que não significa inutilidade, superfluidade, mas uma abertura a um leque diversificado de propósitos: “próprio do ficcional é sua interpretação não exaurir seu significado. […]. Acrescente-se: a pluralidade de reações que a ficção é passível de provocar […] constitui tanto sua riqueza quanto seu limite” (p. 217-8). Para Mead, a fertilidade do ficcional está em, a partir do vivido, trabalhar-se sobre a linguagem. E Bateson problematiza justamente a questão da forma, reiterando o já dito: sua fundação não é desprovida de fim, mas, ao contrário, ela aguarda sua atribuição sem evidenciá-lo, dada a diversidade de propósitos que podem servir a essa determinação. E, se é possível falar em algum fim do ficcional para Goffman, segundo Costa Lima estaria na suspensão do real por sua colocação entre parênteses. O que significa dizer: se para Goffman o sujeito é ativo, criador/inventor da realidade social – que é variável individualmente no tempo, no espaço, e comunitariamente –, e não passivo em relação a ela, o real não se afirma por si, mas resulta da percepção. Esta, por isso, coloca entre parênteses, na forma5 do texto ficcional, o mundo, enquadrando-o em um frame, em uma moldura. E o resultado é o efeito do “como se” conforme trabalhado por Wolfgang Iser.
Costa Lima ressalta a segunda questão ante a limitação da teoria de Goffman (subordinada às análises das vivências do cotidiano pelos sujeitos em seus contextos específicos), mas ela vale para os três, dada a abordagem a que se vinculam suas contribuições. Ela diz respeito à perspectiva sociológica, que, para o autor de O chão da mente, conquanto tenha seu valor na análise ficcional, é insuficiente para explicá-lo em relação à complexidade que envolve sua inter-relação com a forma.
Inclusive, a questão da perspectiva sociológica é cara à discussão sobre a mímesis, consequentemente, para o ficcional. Apagou-se ou silenciou-se a discussão sobre o fenômeno mimético entre os estudiosos da literatura no Ocidente e, com especial ênfase, em nosso periférico Brasil principalmente mediante o descaso da teoria em prol da pragmática positivista-cientificista, bem como por meio da minorização da indagação teórica no âmbito das próprias disciplinas filosóficas. Esse enfraquecimento é simultâneo ao crescimento da sociologia de interpretação dominantemente determinista, em oposição à análise empírica da sociedade historicamente modelada. E “o determinismo sociológico, quando trata da literatura e das artes visuais, assume a direção reprodutora: julga-se que o perfil da sociedade explica o caráter de sua literatura e pintura” (p. 237).

Andaimes da invenção
O determinismo sociológico integra o paradigma substancialista de que vimos falando com Costa Lima. Esse modelo engendra o sujeito autocentrado, que, como já explorado, se movimenta guiado pela crença ilusória no controle e na centralização das representações porque toma a si próprio como medida delas, fundando-se na metafísica. O resultado é a reafirmação constante da imitatio: conforme afirmado no périplo, “entender-se, com os antigos, que a mímesis é um derivado da natureza, a mimesis physeos, ou, com os modernos, como decorrência da sociedade ou da peculiaridade autoral, é reiterar sua natureza recapitulativa” (p. 239-40). Tomar mímesis por imitatio é conveniente para se homogeneizar as visões de mundo dos sujeitos e a verdade socialmente hegemônica, tornando o resultado desse processo algo firme, estável e uno. Ressalte-se que “a identificação da concepção moderna do sujeito da representação (Vorstellung) com a realidade (…) impede o reconhecimento dos modos discursivos e, por conseguinte, o reconhecimento diferencial da ficcionalidade” (p. 50).
Ao contrário, a complexificação da compreensão do sujeito a partir de suas contradições e fraturas, bem como da pluralidade de papéis que exerce socialmente enquanto sujeito fraturado, permite que este se relacione com o mundo representando-o pelo olhar não apenas do que é semelhante, mas também diferente. Diferença a que corresponde a liberação do ficcional. Uma vez liberado, é necessário entender suas particularidades. É o que se faz em “A ossatura da ficção”, quarto capítulo de O chão da mente.
Se na seção dedicada ao pai da psicanálise Costa Lima propôs a distinção entre ficção e sonho, ficção literária propriamente dita e ficção consciente, agora duas categorias são mobilizadas para pensá-las ainda mais profundamente: ficção interna e ficção externa. De pronto, pode-se dizer que a ficção interna coincide com o que se entende por ficção propriamente dita (ficção estrita). Já a ficção do sonho e a consciente tendem a ser ficção externa a depender, genericamente falando, da finalidade que lhes forem atribuídas:
Em mínimas palavras, a ficção externa se diferencia da interna porque, por sua intencionalidade, é paralela a seu resultado pretendido. O que vale dizer: não poderia ser definida por alguma “finalidade sem fim”, pois sua meta pragmática é tão imediata e evidente quanto sua manifestação. Apesar disso, cabe-lhe o nome de ficcional porque, de fato, não se ampara em um lastro de verdade, embora no fundo de si seu agente pretenda falar a verdade
(p. 263-4).
Se formas discursivas como a religiosa, a filosófica e a científica têm por fundo a estrutura conceitual, a expressão ficcional literária tem por base a metáfora. Assim, ficção interna, i.e., literária, é aquela que se dá a partir do vetor da diferença da mímesis reconsiderada. Embora não possa ser conceituada, esta acontece pela dinâmica entre semelhança e diferença em relação ao mundo vivido, pois a “semelhança com seu referente é indispensável para que a metáfora, em vez de enigmática, encontre sua decodificação no léxico atuado. Por isso ainda é indispensável que sua maior parte seja realizada pela diferença, isto é, pelo suprimento de um vazio presente no léxico em pauta” (p. 251). Tal suplementação se dá pela via imaginativa assentada na invenção metafórica inovadora de resultado aleatório.
Em síntese, poiesis (criação) é o termo central que tem sido dedilhado desde que entendemos a mímesis como a combinação de semelhança e diferença. A tensão nela presente supõe que o aspecto não necessário ao conhecimento de alguma coisa é convertido pelo mímema em algo sério e estritamente indispensável, sem que seu empenho o transforme em útil. Daí o cuidado que nesta seção se dedicou à linguagem da ficção. Ela constitui uma espécie discursiva, não confundível com a pragmática, a religiosa, a filosófica, a científica. Cada uma serve a uma meta e, por isso, satisfaz a uma necessidade. Só a ficção implica a “suspension of disbelief”, sem outra aparente vantagem senão a de confiar integralmente em sua experiência
(p. 259).
Essa suspensão é a grande marca do ficcional para Wolfgang Iser, de quem Costa Lima refaz brevemente o percurso em torno do ficcional. Assim, foca nos pais dessa discussão, Bentham e Vaihinger, sobretudo neste último – que já mencionava a ficção no plano empírico em relação à cláusula do “como se” -, para demonstrar como Iser propõe sua suspensão para o que estamos chamando de ficção interna, a literária propriamente dita. É pela suspensão iseriana que a ficção desrealiza o real e realiza o imaginário, por meio da transgressão do vivido.
Daí Costa Lima dizer que a ficção transgride e conecta o real ao texto (pela mímesis) simultaneamente porque “ela tem a aparência de algo ilusório, superficial e se indispõe com o princípio de realidade. Bem poderíamos chamá-la, portanto, de a “realidade do irreal”; preferimos entender que a expressão contraditória se torna compreensível ao optarmos em entendê-la presente pela cláusula do ‘como se’” (p. 266).
Ressalte-se, entretanto, um aspecto importante na arquitetura de O chão da mente: como ficou subentendido até aqui, nem toda literatura é ficção. A literatura certamente abrange a ficção interna (literária) e também alguma coisa do que se pode chamar de ficção externa, além daquilo que encerra características literárias, como o ensaio: “Freud e Bergson, com independência de suas qualidades de cientista e de filósofo, são exemplos de ensaístas. Isso não significa que sejam alguma espécie de ficcionistas” (p. 262-3).

A ronda e a obra
Não é possível construir uma teoria da ficção sem considerar sua posição marginal na história do pensamento ocidental. Tal marginalização dificultou não só a circulação de ideias e objetos com o rótulo de ficção, mas a própria teorização do ficcional. Ao longo do desenvolvimento da sociedade no Ocidente, a axiologia das classes dominantes sempre recorreu ao discurso moralizante, religioso, racionalista, cientificista, mercadológico, midiático etc. para impor sua verdade controladora-ordenadora do mundo. Como a ficção literária, em sentido estrito, “conta estórias”, portanto ecoa o que não é verdadeiro, sem tampouco ser falso, viu-se reduzida ao que única e exclusivamente repita o real sob o olhar hegemônico. Sócio-historicamente, tende-se a realçar a apreensão da realidade pela perspectiva do discurso dominante, ao mesmo tempo que se relega à secundariedade os demais discursos que se emaranham no tecido social. A recusa desse sistema implica lidar com o leque discursivo em igualdade, sem pensá-lo em termos de maior ou menor legitimidade social.
É o que se discute em “A ramificação do controle”, quinto e último capítulo de O chão da mente. Retomando ideias desenvolvidas em O controle do imaginário & a afirmação do romance, Costa Lima mostra o romance como campo ideal para a compreensão do controle, “porque seu autor não ocupa uma posição fixa e há de recorrer a máscaras” (p. 296-7).
Schlegel, Bakhtin e Zunthor, cada um em seu tempo e espaço, apontaram traços importantes do gênero: a não monologia, a pluridiscursividade, a variabilidade, a instabilidade, a proximidade ao relato individual, a tematização da problemática da verdade… Tudo isso em oposição ao conservadorismo hegeliano. A partir dessas características, Costa Lima ressalta que “o romance tematiza indiretamente o papel da linguagem quanto à verdade, sua incompletude constitutiva e, em consequência, seu estatuto ficcional” (p. 293). Por suas idiossincrasias, o romance coloca em xeque a relação ficção-realidade-verdade-discurso, trazendo à tona, por excelência, a problemática do literário discutida ao longo de O chão da mente.
Enquanto narrou explicitamente aventuras extraordinárias, i.e., que não repetiriam o real, o romance foi mantido à margem, inclusive, do que se chamava literatura e relegado à classe dos textos de mero entretenimento. Somente com o surgimento dos primeiros romancistas ingleses, quando atrelou sua dissonância ao trabalho da forma para burlar o controle, conseguiu ser visto como literatura, melhor dizendo, como ficção literária, consequentemente, como escrito cuja finalidade é sem fim.
Subjaz a toda essa discussão a arguta estrutura de O chão da mente, que centraliza a questão do sujeito como pano de fundo do surgimento da problematização do ficcional. Uma vez que o controle implica “adaptar o ficcional ao horizonte de crenças e valores sociais, com o respeito aos critérios de utilidade e virtude” (p. 302), a passagem do autocentramento à fragmentação do sujeito possibilita produzir ficção justamente no hiato surgido sobre o chão da mente.
São Carlos (SP), 16 de agosto de 2021
Notas
1 Seja por sua formação orientada por Paulo Freire, seja pelo questionamento paterno sobre a decisão de se dedicar à literatura.
2 “[…] antes de 1970, o termo ‘ficção’ praticamente não conhecia uma acepção positiva” (p. 218-9); “consideremos que sua tematização específica se efetuará a partir do século XVIII, assim como seu aprofundamento teórico se dá bem mais recentemente. Não obstante, ela já era objeto de indagação entre os gregos” (p. 266).
3 “A exaltação do sujeito uno se deu no século XVIII, paralelamente ao Iluminismo, como contraponto à consideração dos estamentos sociais. Trata-se de um sujeito burguês por excelência, destacado por suas iniciativas próprias. Assim, ensina-se que cada um de nós deve se considerar como sujeito uno: alguém seria professor, pai, amante e sei lá mais o quê, permanecendo, no entanto, o mesmo. Já o sujeito fraturado pensa no estilhaçamento que lhe ocorre, por conta do exercício das várias funções que desempenha na sociedade.
Para dizer da maneira mais simples possível, imaginemos um homem que, no interior da família, é visto como pai exemplar a ponto de poder sentar na cabeceira da mesa e dizer para os filhos serem ilustres, de modo a se mostrarem dignos do lar. Digamos que seja também um comerciante que, ao ouvir um freguês questionar o preço de um determinado feijão, inventa que se trata de produto importado. Podemos dizer, portanto, que o mesmo pai de família exemplar é um comerciante ladrão. Façamos de conta que, na noite da mesma jornada, esse pai e comerciante vá a um concerto de música clássica e, apesar de a programação ser medíocre, pensa que pagou caro pelo ingresso e o violinista é famoso, portanto se convence de que assistiu a uma obra-prima. Como vemos, apresenta tantas faces quantas são as cenas em que se mostra – pois é fraturado”. In: BASTOS, Dau et al (orgs.). Luiz Costa Lima: um teórico nos trópicos. Rio de Janeiro, Garamond, 2019, p. 43.
4 ISER, Wolfgang. O fictício e o imaginário: perspectivas de uma antropologia literária. Rio de Janeiro, EdUERJ, 2013.
5 Na teoria dos frames, de Goffman, embora se induza a percepção de que o fim diz respeito ao uso a ser feito do conteúdo de algo, não se tematiza a questão da forma. Mas a possibilidade de colocar entre parênteses, por meio da percepção, a apreensão subjetiva da realidade social permite a Costa Lima a reflexão: “A distância quanto à formulação de Goffman, portanto a dificuldade que procuramos vencer, está precisamente em que ele privilegia a situação em que se encontra o tipo de sujeito que estuda. Ou seja, que realça a ‘existência’. A ‘forma’, a que não aponta, é o que se mostra ao se retirar o conteúdo, porquanto é este que provê certo objeto da aptidão para certa causalidade. Em poucas palavras, a forma equivale ao que é irredutível à causalidade, que, de sua parte, permite a afirmação de certo fim” (p. 230).

Júlia de Mello é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura (PPGLit) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), com pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), nº do processo: 2019/03937-0. E-mail: mellodeju@gmail.com.
Como citar?
MELLO, Júlia de. Entre o mapa e o território: como se constitui o ficcional?, Fios do Tempo (Ateliê de Humanidades, 27 de agosto de 2021.
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