Nesta semana nos despedimos do antropólogo David Graeber. Em sua homenagem trazemos um pequeno depoimento de Frédéric Vandenberghe (Núcleo de Pesquisa Sociofilo / IFCS-UFRJ), que foi seu amigo pessoal e colega em Yale. E publicamos dois pequenos posts: como convite para que conheçam a obra de Graeber, fizemos um Pontos de Leitura com uma relação de seus livros com pequenas apresentações; e publicamos no Fios do Tempo uma tradução de um verbete escrito por F. Vandenberghe e D. Graeber sobre o Movimento Anti-utilitarista em Ciências Sociais (M. A. U. S. S.), publicado na Blackwell Encyclopedia of Sociology.
Movimento Anti-Utilitarista em Ciências Sociais (M.A.U.S.S.):
o que é e como conhecer
David Graeber (1961-2020) – in memoriam
Frédéric Vandenberghe
O movimento anti-Utilitarista do MAUSS – um acrônimo para Mouvement Anti-Utilitariste dans les Sciences Sociales – foi fundado em 1981 por Alain Caillé e uma aliança de intelectuais em grande parte francófonos para combater a hegemonia do utilitarismo nas ciências sociais (escolha racional) e na sociedade (neoliberalismo). Seu órgão, a Revue du MAUSS, é uma revista semestral dedicada ao estudo do dom no qual antropólogos, sociólogos, economistas e filósofos políticos da esquerda exploram os contornos de uma ciência e sociedade alternativas não baseadas no interesse próprio e no egoísmo. Enquanto o grupo sempre funcionou como um coletivo e encorajou a escrita colaborativa e a pesquisa, Alain Caillé permaneceu seu expoente mais proeminente e, durante o último quarto de século, trabalhou para desenvolver o clássico “Ensaio sobre a dádiva” de Marcel Mauss (Mauss 1924) em uma sociologia política das associações que considera a tripla obrigação – “dar, aceitar e retribuir a dádiva” -– como a base da vida social (Caillé 2000, 2009; Godbout & Caillé 1992).
O foco teórico em Mauss não se deve simplesmente ao fato de que seu Ensaio sobre a Dádiva foi concebido como um desafio direto às suposições fundadoras da economia liberal. Ao reintroduzir símbolos e agências no sociologismo de Durkheim, Mauss delineou uma generosa sociologia das relações sociais que supera tanto o economismo quanto o determinismo social, o mercado e o Estado e, em última instância, a própria oposição entre o indivíduo e a sociedade. Livre, mas obrigatório, o “espírito do dom” é o catalisador dessa rede de associações que tornam possível o que chamamos de “sociedade”, aquelas relações sociais das quais tanto o mercado quanto o Estado emergirão como uma formação secundária, que está sendo incorporada atualmente a uma rede terciária de relações globais.
Caillé e seus companheiros MAUSSianos não ignoram a natureza agonística do dom primitivo, nem acreditam que as sociedades contemporâneas são movidas apenas pelo interesse. Pelo contrário, eles defendem a primazia do dom e o concebem como um “fato social total” que anima todas as instituições da sociedade. Ele engloba conflito e paz, obrigação e liberdade, interesse e generosidade. É nesta capacidade que Caillé sugere que o dom oferece um novo paradigma para as ciências humanas, há tanto tempo presas a um impasse cada vez mais sem sentido entre individualismo metodológico e holismo: um “terceiro paradigma”, como ele coloca, que começa, ao invés disso, a partir de nossa capacidade de criar novas relações sociais. No nível político, podemos ver essa mesma capacidade institucionalizada em um terceiro setor de associações voluntárias, onde se oferece uma terceira via genuína, não “entre” o liberalismo e o socialismo tradicional, mas além de ambos. Se a política pode ser concebida como a continuação do dom por outros meios, as associações locais que implementam a política da dádiva podem, por sua vez, ser entendidas como movimentos sociais que procuram defender a economia moral contra o mercado e o Estado. Tais associações não visam abolir o Estado ou o mercado, mas rejuvenescer o tecido social e “reincrustar” (Polanyi 1957) o mercado e o Estado no mundo da vida.
Contra as versões contratualistas do mundo do trabalho, o movimento anti-utilitarista defende o princípio de uma “renda básica” universalmente garantida como expressão generalizada de reciprocidade que pode regenerar a solidariedade social. A ideia é que quando todos os cidadãos recebem um “demogrante” incondicional, capaz de sustentar suas necessidades básicas, eles serão livres para fazer algo em troca para a comunidade – e, inevitavelmente, farão -, contribuindo assim para a realização do sonho de Mauss de um socialismo cooperativo ou associativo.
Referências e sugestões de leitura
Caillé, A. (2000) Anthropologie du don: Le Tiers paradigme. Desclée, Paris [Antropologia do dom: o terceiro paradigma. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002].
Caillé, A. (2009) Théorie anti-utilitariste de l’action: Fragments d’une sociologie générale. La Découverte, Paris [Teoria antiutilitarista da ação. Rio de Janeiro: Ateliê de Humanidades Editorial, 2020 – no prelo].
Godbout, J. & Caillé, A. (1992) L’Esprit du don. La Découverte, Paris [ Espírito da dádiva. Lisboa: Editora Piaget, 1997].
Mauss, M. (1924) Essai sur le don: Forme et raison de l’échange dans les sociétés archaïques. Année Sociologique 1 (ser. 2): 30–186 [Ensaio sobre a Dádiva. In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: Editora UBU, 2020].
Polanyi, K. (1957) The Great Transformation. Beacon Press, Boston [A grande transformação: as origens da nossa época. Rio de Janeiro: Campus, 1986]
Sites
http://www.journaldumauss.net/
https://www.cairn.info/revue-du-mauss.htm
Pontos de Leitura. Homenagem a David Graeber (1961-2020): depoimento e obra
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