A melhor forma de lidar com um problema é conhecendo-o profundamente. As pré-concepções, baseadas em falsos entendimentos do que ocorre na vida real, são um mau guia para a formulação de políticas públicas.
Nesta resenha de Marcos Lacerda sobre o livro “Irmãos, uma história do PCC” (2018), de Gabriel Feltran, temos uma reflexão sociológica bem informada sobre a lógica do crime organizado no Brasil contemporâneo. O que caracteriza a força do PCC? Quais são as mudanças recentes nas atividades de tráfico de drogas no Brasil, com a nacionalização e a internacionalização do crime organizado? Como se deu e se dá a relação entre o PCC e o Comando Vermelho? Que dinâmica está gerando o aumento de violência e confrontos nos outros estados do Brasil, sobretudo o Nordeste? E o que todos estes problemas têm a ver com o processo de “modernização em falso” da sociedade brasileira?
Esta resenha acompanha o lançamento do Ciclo “Nenhum Brasil existe: cultura e política no Brasil contemporâneo”, que tem início hoje com uma conversa de Marcos Lacerda e Lucas Soneghet com o autor do livro, Gabriel Feltran.
Esperamos que seja um excelente achado, e leitura!
André Magnelli
Pontos de Leitura, 02 de novembro de 2023
Moralização, empresa e guerra:
um estudo do crime organizado no Brasil contemporâneo
(Resenha de Irmãos, uma história do PCC,
de Gabriel Feltran)
O ano era 2001. Eu estava voltando para a casa, após o fim do expediente no trabalho, como atendente de uma conhecida lanchonete. A lotação que pegava em Santana, bairro da zona norte de São Paulo, vinha cheia. Mal entrou na Av. Dumont Vilares, também conhecida como Avenida Nova, já era possível ver a fumaça preta que vinha do Carandiru, naquela época um dos mais conhecidos presídios de São Paulo. Estava havendo uma rebelião que, saberia mais tarde, era na verdade uma megarrebelião organizado por um grupo criminoso novo, hoje a maior facção do crime organizada no Brasil: o PCC.
A megarrebelião é um dos acontecimentos decisivos para a popularização do grupo, que é contada neste livro notável, cujos rigor etnográfico, sensibilidade literária, além da qualidade da análise sociológica, logo chamam a atenção do leitor. Escrito pelo sociólogo Gabriel Feltran, Irmãos, uma história do PCC (São Paulo, Companhia das letras, 2018) apresenta a formação do PCC e defende teses fortes, que apresentarei neste texto. Uma delas, a mais surpreendente, é a de que o grupo deve ser pensado como uma comunidade moral, aos moldes do que se vê por exemplo em sociedades secretas como a maçonaria. O valor maior defendido e disseminado pela facção seria a regulação moral da conduta entre os criminosos, muito mais do que a valoração empresarial, financeira ou mesmo militar, característica de outros grupos criminosos.
Como extensão, temos também o estabelecimento de regras de conduta e de uma série de mediações de conflito nas periferias dominadas pelo grupo, especialmente na cidade e parte do Estado de São Paulo, oferecendo algo como uma “justiça popular” eficaz em bairros populares da cidade. A eficácia da “justiça popular”, ao lado do formato do debate em torno das contendas, seria um dos elementos de legitimação da dominação do grupo.
O livro apresenta o processo de moralização, racionalização e militarização como traços constitutivos da formação do PCC, inicialmente nos presídios, passando pelas periferias de São Paulo e se estendendo, em menor grau, para o resto do país e parte do mundo. Tendo, como é bom ressaltar, a moralização como dimensão central.
O livro está dividido em duas partes e uma série de capítulos. Acompanham a leitura casos etnográficos mais específicos, com o desdobramento do seu contato com alguns “nativos”. Também temos o estudo histórico da formação das classes populares em São Paulo, começando pelos filhos pobres de imigrantes europeus e passando pelos filhos pobres de imigrantes nordestinos, além de negros, pardos e brancos pobres, incluindo a discussão também no âmbito dos limites da modernização do país. Tudo entremeado por boas análises do repertório de canção popular, culminando numa interpretação sociológica de fôlego a respeito da sociedade brasileira contemporânea e os impasses do nosso processo de modernização social.
A irmandade do crime
Geralmente tende a se destacar a racionalização empresarial como traço característico do PCC. A racionalização empresarial da atividade criminosa teria permitido um aumento na produtividade e, com isso, um aumento no lucro da facção. Ao mesmo tempo em que teria sido a racionalização empresarial a responsável pela diminuição da letalidade, ao menos entre os criminosos. Seria mais rentável que os integrantes se preservassem. Tal preservação da vida teria se dado por conta da racionalização empresarial. Em outras palavras, seria melhor para os negócios.
Mas a coisa não é bem assim. Ou ao menos, não totalmente. Na verdade, segundo mostra o livro, antes da racionalização empresarial está a regulação moral, ou seja, a disseminação de um conjunto de valores de ordem moral entre os criminosos, como forma de legitimação das regras de conduta dos seus integrantes. A adesão aos valores teria sido mais decisiva do que a racionalização empresarial e, mesmo, do que o monopólio da força.
O PCC seria algo como uma comunidade moral, de feição horizontal, sem lógica de comando piramidal. O grupo conseguiu construir um consenso, com um conjunto de valores, cuja legitimação vai se dando no contexto das ações. O integrante deve ter “proceder”, no sentido de cumprir com a ordem moral do grupo e o seu conjunto de valores.
Embora existam obviamente hierarquias na estrutura da organização, muito bem apresentada pelo autor, através da relação intrincada e em rede das sintonias, correspondendo às suas diversas funções, há uma base “igualitarista” na relação entre seus membros, que pode ser exemplificada através de uma lógica relacional menos da ordem do comando pré-estabelecido por pessoas em situação de poder e chefia, do que pelo debate, deliberação e criação de consensos sobre o que é “certo” ou “errado”, dentro da ótica da facção.
Nos debates se constrói um consenso em torno das ações que devem ser realizadas e, definido isso, são mandados os “salves”. Os salves, aliás, devem ser pensados mais como um tipo de comunicação, baseado na lógica do consenso após os debates, do que como um “mandar fazer”.
A distinção é fundamental, e Feltran a descreve minuciosamente em um dos capítulos do livro “Há uma grande diferença entre mandar fazer ou comunicar o que é certo a ser feito”. Nessa diferença reside uma mudança na relação com o receptor da mensagem. Mandá-lo fazer algo significa colocá-lo em posição de subordinação. Comunicá-lo sobre o que é certo fazer o coloca na condição de quem está recebendo uma deliberação que foi discutida, gerou consenso e se espera dele o cumprimento. Daí a importância do debate. E do debate racional, baseado em argumentos, contrapontos e assim por diante.
A estruturação funcional do grupo depende, assim, dessa valoração moral como base mesmo de sustentação. Ao mesmo tempo em que se define em torno da lógica do debate e da argumentação. Entre a moralização, racionalização e militarização, é o primeiro elemento o mais importante.
É claro que existe algo de interdependente entre eles. Mas racionalização e monopólio da força são subordinados aos valores morais. Este o achado do livro. O PCC não é apenas uma organização empresarial ou militar, mas antes uma comunidade moral. Como comunidade moral o grupo estabelece, dissemina e horizontaliza uma série de princípios e valores que norteam a organização.
A formação
A formação desta comunidade moral do crime foi se dando inicialmente nos presídios da cidade e do estado de São Paulo. Depois foi se estendendo para as ruas, também inicialmente nas periferias da cidade de São Paulo, e também para as outras cidades do Estado de São Paulo. Posteriormente, o grupo foi ganhando força também nas capitais e Estados do país e, mesmo, fora do Brasil.
A junção entre face moral (regulação da conduta), face empresarial (racionalização econômica) e face guerreira (estruturação militar), com a predominância da primeira, se deu primeiramente nos presídios e tem como demarcação principal o Carandiru, como não poderia deixar de ser. O presídio, após a chacina de 1992, se transformou em ícone com força social, política e também cultural. O massacre do Carandiru ainda estimula uma série de polarizações na política regional e nacional. Foi em torno das questões dos direitos dos presos que o grupo foi fundado em 1993, num presídio de Taubaté.
A proposta era a moralização, em primeiro lugar, ao lado da racionalização e, se necessário, a militarização da relação entre os presos. A moralização tinha como traço principal a criação de regulação moral da conduta entre os presidiários, eliminando os casos de “opressão”, tipos de violência e dominação entre os presos e também em relação aos carcereiros em geral. A ideia do sindicato do crime cabe bem aqui, no sentido da defesa dos direitos dos presos, de acordo com o que prevê o código penal e a constituição federal.
Isso se deu durante a década de 1990, gerando uma hegemonia do grupo nas cadeias de São Paulo, tanto no aumento do número de integrantes batizados, quanto do aumento de presos que seguiam a lógica de conduta moral do grupo.
Tal processo acompanha, aliás, as políticas de encarceramento em massa, que passam a ser a base da gestão de segurança pública no Estado de São Paulo. Indiretamente tal política acabou contribuindo para um aumento significativo dos filiados, ou batizados no PCC, que vinham dos presídios. Ou mesmo, dos que não eram filiados, mas que seguiam o ritmo do grupo, se adaptavam e tomavam como valor as regras de regulação moral da conduta.
A virada nos anos 2000
Quem viveu a década de 1980 e 1990 na periferia de São Paulo sabe muito bem do contexto de conflitos permanentes entre criminosos, policiais e os chamados “justiceiros”, cuja função era executar pequenos bandidos. Os justiceiros atuavam como reguladores militarizados das relações nos bairros populares. Disputavam com os criminosos. Eram financiados por pequenos comerciantes das regiões. A partir dos anos 2000 a coisa muda de figura. Há o que autor chama de uma transição do tipo de regulação da violência na periferia da cidade. Da figura do justiceiro para os “irmãos” do PCC.
Essa passagem acompanha o processo de extensão da lógica, ou do ritmo do PCC das cadeias para as ruas e bairros da cidade. A mesma tríade, com o mesmo tipo de funcionalidade: moralização subordinando racionalização e militarização. Das regras e condutas da massa carcerária para as regras e condutas das atividades criminosas fora das cadeias.
O estabelecimento dessas regras vai se dando aos poucos e algumas ações podem ser destacadas. A primeira é a que se convencionou chamar de “tribunal do crime”. Trata-se na verdade do estabelecimento do debate, como tratado aqui, com jogo de acusação e defesa, medidas dos tipos de penas, em torno de contendas nas periferias da cidade. As contendas podem ser tanto entre criminosos mais propriamente, como mesmo entre moradores do bairro. No livro, o autor destaca um caso que ganhou eco na imprensa nacional, em que fica evidenciado a lógica do debate, as formas de punição, o papel dos valores morais do grupo e assim por diante. Algo que pode ser realçado, por exemplo, é o momento em que a pessoa que fez a acusação diz que agirá de acordo com o comando, que jamais desrespeitaria o comando. Ao que um dos criminosos debatedores diz que não era assim que ele deveria se comportar. Não é ao comando que ele deve obedecer, mas ao que é “certo”, ou seja, a valores e princípios morais como os defendidos pelo comando.
Ao lado do estabelecimento do debate como forma de mediação de conflitos há também o tabelamento de preços nos mercados ilegais da droga. O tabelamento visa desestimular o conflito armado dos grupos criminosos e, com isso, pacificar a relação entre os traficantes de drogas. Se todos vendem pelo mesmo preço, não faz muito sentido o conflito armado como estratégia de monopolização da concorrência. Não há, neste sentido, concorrência propriamente dita. Há uma espécie de irmandade em torno do objetivo principal. Neste caso, comercializar drogas. Em outros casos, se unir pela luta contra o “sistema”.
Definir o inimigo, o “sistema”, permite criar tanto força de coesão entre os criminosos, quanto uma comunidade de pertencimento que desestimula ações mais violentas entre os criminosos, como por exemplo os assassinatos. Este é o terceiro fator, que pode ser destacado, ao lado do “tribunal do crime” e do tabelamento de preços das drogas.
A extensão do ritmo do PCC das cadeias para as periferias de São Paulo, tanto na capital quanto no estado, conduziu a um outro processo, este muito longe de se realizar nos termos de regulação moral da conduta, como se nota nos bairros de São Paulo. Eu me refiro mais precisamente ao processo de expansão nacional e internacional do grupo criminoso. Ele se deu inicialmente através de uma parceria com a maior facção criminosa do Rio de Janeiro, o Comando Vermelho.
Expansão nacional e internacional
A expansão do grupo, para além do Estado de São Paulo, foi se dando de maneira silenciosa, sem alarme, presença na mídia ou qualquer coisas do tipo. A lógica do grupo, de regulação dos mercados, diferentemente do monopólio, e de moralização da conduta, foi se construindo pelos outros estados brasileiros. Para isso foi importante a parceria com o Comando Vermelho, grupo bem mais antigo e consolidado no Rio de Janeiro, mas já com ações também de ordem nacional.
A aliança foi se consolidando durante muitos anos. Até que houve uma cisão. Mais precisamente em 2016. Com a cisão entre os grupos, começa a acontecer uma série de conflitos sangrentos em presídios e também nas periferias especialmente dos estados nordestinos e nortistas. Os números de homicídios em Fortaleza, por exemplo, aumentam vertiginosamente. É o período também dos massacres nas cadeias, com o aparecimento de facções até então desconhecidas do público, como a FDN (Família do Norte), o Sindicato do Crime, entre outras. Estas facções vão agindo de acordo com a sua aliança com CV ou PCC. A partir daí todos passam a saber que o PCC vinha se expandindo nacionalmente.
Mas se em São Paulo é a face moral do grupo que parece a mais visível, em outros estados a coisa é bem diferente, ou ao menos é assim que passou a ser a partir da cisão com o CV. Como diz Feltran, no Amazonas, Ceará ou em Minas Gerais, “suas faces (…) são muito mais guerreiras e empresariais, do que mediadoras, pacificadoras”. O autor apresenta uma série de possíveis explicações para tal situação, tais como a já mencionada cisão da parceria do PCC com o CV, que teve como desdobramento uma série de ações violentas em cadeias nacionais; o fato de que a presença do PCC em outros estados tem se dado mais através da lógica empresarial do que propriamente da lógica moral baseada na mediação racional de conflitos; o grupo tem tido também dificuldade em estabelecer a dinâmica do tabelamento de preços nas bocas de fumo nacionais, como estratégia de diminuir a concorrência e, junto com ela, diminuir também o conflito armado entre os grupos.
Em 2017 houve uma série de conflitos entre prisioneiros do Norte e Nordeste do país, entre facções regionais que seriam aliadas das facções paulistana e carioca. Houve um saldo macabro de mortos, como parte do conflito. A face guerreira do PCC se mostrou na sua forma mais sangrenta e brutal. O crime não é creme, como se diz.
Aspectos fundamentais para a constituição do grupo, tais como a união entre os criminosos em torno da ação contra o “sistema”; o respeito entre os pares de crime; a mediação de conflitos com debates em torno das contendas; a restrição do uso e da ostentação de armas nos bairros populares; a regulação e tabelamento dos preços nas bocas de fumos não conseguiram, até aqui ao menos, se estabelecer nos outros estados brasileiros.
Assim, neste momento, tem sido justamente a face guerreira do grupo a primeira a aparecer, ao lado da econômica. Mas não foi assim também nas origens do grupo em São Paulo? Um exemplo histórico é lembrado no texto. O maio de 2006, quando houve uma série de atentados do PCC na cidade e estado de São Paulo com mais intensidade. A imagem da capital paulistana parada, com pouca movimentação de carros e pessoas, num dia de semana, ficou marcada como expressão da força real da facção e da sua capacidade de instaurar o terror como forma de ação. O saldo geral foi sangrento, com cerca de 500 homicídios, entre policiais, criminosos e “suspeitos”. Ou seja, a face guerreira estava exposta nitidamente e foi usada como tipo de ação que colocou em segundo plano as dimensões morais e econômicas. Outro exemplo já tratado aqui foi a megarrebelião de 2001, que teve como efeito a exposição do nome e da marca do grupo na grande mídia.
Será isso que estaria ocorrendo agora, no processo de nacionalização do grupo? O PCC tem mostrado mais a sua face guerreira, que acaba por subordinar as faces econômica e moral? Se assim for, quem está ganhando a “guerra”? Se o PCC vir a ganhar a “guerra”, o grupo vai estabelecer uma lógica de pacificação entre os criminosos e, assim, colocar em primeiro plano a regulação moral da conduta, como fez na cidade e estado de São Paulo, incluindo os seus presídios?
Modernização em falso
O livro conta com um trabalho histórico sobre as classes populares em São Paulo, mediada por um repertório de canção popular, que vai da canção de Adoniran Barbosa, representando, a seu modo, o contingente de pobres brancos, filhos de imigrantes estrangeiros. “Saudosa Maloca” está ali como que explicitando as agruras reais destas frações das classes populares. Também aparece um outro exemplo de canção popular. Dessa vez, Luiz Gonzaga, cujos baiões serviram como trilha sonora importante para os migrantes nordestinos que vinham a São Paulo ou Rio de Janeiro com maior intensidade entre as décadas de 1950 a 1980.
Com a vinda dos migrantes nordestinos, há também uma mudança na feição das classes populares paulistanas. Dessa vez passamos a ter menos brancos pobres, e mais pardos e negros. Não que não tenham brancos pobres. Alguns conseguiram ter algum tipo de ascensão social. Poucos. Mas agora estamos diante de um novo contingente que, a seu modo, vai se estruturando nas periferias da cidade. São como que mais uma das feições dos personagens do processo de modernização desigual na sociedade brasileira em geral.
A ascensão social a partir da integração nos mercados legais, com carteira assinada, garantia de direitos sociais, possibilidade real de “subir de cargos” na empresa, ou mesmo integração através da educação formal, do ensino médio à universidade e, depois, com sorte, muita sorte mesmo, um cargo de docência, tudo isso vai se transformando em um campo de impossibilidades. Talvez até mesmo de irrealidades. Ao menos para a maior parte das pessoas nascidas e criadas nas periferias da cidade.
A partir da década de 1990, junto a isso, o tipo social também vai se modificando. Agora o que temos é um tipo social próprio aos bairros populares. Formado pelos filhos e netos dos migrantes nordestinos, ao lado de negros, pardos e brancos pobres. Há também neste período uma diminuição na migração.
Se voltarmos agora ainda nestes capítulos, veremos que no início o autor apresenta uma tema caro ao pensamento brasileiro, a respeito de pobres que estão tentando se integrar à vida social, à cidadania, isso através de instâncias tradicionais do processo de socialização: trabalho, escola, família, religiosidade, institucionalidade estatal e assim por diante. Parecia possível ainda.
O próprio país estava passando por um processo de modernização. Os anos JK, a construção de Brasília, o processo de industrialização e urbanização acelerada. Os anos pré-golpe de 1964 talvez tenham sido os mais entusiasmantes quanto a isso. A década de 1980 [década perdida] e a década de 1990 parecem ter refreado o processo e gerado uma espécie de desencantamento.
Desencantamento quanto à possibilidade real de inserção e integração a uma vida social saudável. E isso vem junto com o pós-guerra fria, a globalização, a desregulação dos mercados, a informatização do Capital, fenômenos que, curiosamente, são acompanhados da transnacionalização do crime organizado.
Assim, uma nova geração, vinda de baixo, um enorme contingente passa a ter como possibilidade única de integração o consumo, a lógica da sociedade de mercado como instância máxima da socialização. Todos passamos a ser sujeitos monetários sem dinheiro.
Daí que, dentro dessa lógica, o crime acaba oferendo algo, especialmente para esses sujeitos monetários sem dinheiro. Claro que em disputa com outras instâncias, como a igreja, o trabalho no comércio, e os sonhos de ascensão social através da canção popular, em especial o funk paulista, ou o futebol.
E o que chama mais a atenção do livro todo, claro está, é que além dos ganhos financeiros, do estímulo ao ethos de guerreiro, da vida vivida com intensidade máxima do “Vida Loka”, exista também a criação de um senso de pertencimento através da constituição de uma comunidade moral, como caminho ou caminhada possível para um número de pessoas entre os mais pobres, que vão criando uma lógica própria de irmandade, a irmandade do PCC e, com carradas de razão, já não creem nos processos de modernização e de integração social.

Marcos Lacerda
Pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Sociologia – UFPel e livre-pesquisador do Ateliê de Humanidades. Doutorado em Sociologia pelo IESP/UERJ (2011-2015). Foi Diretor do Centro da Música da Funarte / Ministério da Cultura, responsável pelas políticas públicas para a música no Brasil, entre maio de 2015 e março de 2017. Atua na coordenação e curadoria da coleção Caderno Ultramares, da OCA Editorial de Portugal, ao lado do crítico e editor Sérgio Cohn. Autor de “A sociedade das tecnociências: Introdução à obra de Hermínio Martins” (Ateliê de Humanidades, 2020) e organizador, com André Magnelli, de “Sociologia das tecnociências contemporâneas” (Ateliê de Humanidades, 2020).
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