Trazemos hoje no Fios do Tempo o meu prefácio ao livro de Patricia Jasiocha, Com Freud em Viena (Ateliê de Humanidades Editorial, 2023). Penso que esse pequeno texto está expressando tão bem o que é o livro no que o concebo em seu processo de elaboração e em sua forma final, que evitarei aqui me alongar.
Desejo, como sempre, uma excelente leitura!
A.M.
Fios do Tempo, 24 de agosto de 2023
A psicanálise nas tramas da escrita
André Magnelli
Com Freud em Viena é um percurso analítico de reconhecimento de si num encontro singular com o mundo dos outros e o mundo em comum. Tendo ido morar em Viena, Patricia Jasiocha faz um itinerário pelas cidades em que a psicanálise nasceu, reconstruindo os traços de história expressos em ruas, praças, casas, hotéis, museus, monumentos, montanhas, vinhedos, restaurantes. Ela narra sua própria “experiência de (des)integração” ao ingressar como estrangeira na sociedade austríaca, diante da qual vivenciou seu próprio desamparo.
A autora reconstrói acontecimentos históricos e conceitos centrais da psicanálise junto com uma reflexão introspectiva sobre seus afetos, desejos, memórias, experiências e pensamentos. Ao se deslocar entre vidas, histórias e culturas, a trama da escrita se tece numa interlocução contínua com Freud e tem por motor os encontros e as dissonâncias, os desejos e as repulsas, tanto em relação à cultura austríaca quanto no tocante ao próprio inconsciente. Para Patricia, a Viena dos sonhos quebrou-se “num só golpe, ríspido e indelicado”, e, em consequência, boa parte do que está escrito diz respeito a uma experiência traumática, de natureza psíquica e cultural. Trata-se, aqui, de um trabalho de elaboração analítica defronte às formas do desconhecido, incluindo o desconhecido que se dissimula no que parece ser o mais familiar, esperado e reconhecido. Como ela diz, citando Juan de la Cruz, “para atingir o ponto que não conheces, deve atingir a estrada que não conheces”. Ao que complementa, remetendo a Andrew Solomon, viajar é uma forma de desligamento, ato fundamental para o ingresso na vida madura. Nessa via formadora, a idiossincrática figura do Herr Professor é, ao mesmo tempo, o personagem concreto de um acontecimento decisivo e o fantasma especular de uma reflexão em busca de si mesma.
Este livro possui traços de autobiografia, memórias, romance, etnografia, roteiro de viagem, texto de introdução e pensamentos filosóficos. Sua escrita tem por inspiração a psicanálise e pratica a autoanálise. Mas tranquilize-se, caro leitor, os narcisismos são evitados, inclusive aquele que investe masoquisticamente na figura de uma vítima de algozes mil; você não será também submetido a um texto repleto de condensações e deslocamentos simbólicos oriundos do onírico; a fluxos tortuosos de consciência em livre associação tecidos por uma narração sadicamente indecifrável; ou a uma escrita automática desobediente à lógica do discurso público compreensível por todos. Ao contrário de tais coisas tão comuns quando a psicanálise inspira o escritor, Patricia Jasiocha nos dá o prazer de uma composição elaborada e reelaborada, feita com o cuidado delicado de uma artesã, indo e vindo entre a escrita, a escuta, a análise, o passeio e a leitura. Com isso, a relação terapêutica se mostra mais ampla que de costume, conectando a oralidade da sessão de análise com incursões curiosas pela cidade e uma escrita desenvolvida em interlocução. De certo modo, estamos diante de uma prova de que é possível falar do inconsciente em primeira pessoa sem que seja desejável professar uma escrita em estado selvagem.
As questões relativas ao desejo compõem um lugar central do livro, por óbvio. Contudo, a atenção não está centrada nas vicissitudes da sexualidade, aquilo com o que o freudismo nos acostumou. As reflexões correspondem mais aos desafios da época atual, em que nossas individualidades liberadas e mobilizadas descobrem que os seus desejos envolvem mais que as pulsões sexuais e estão às voltas com questões de caráter ético-existencial, como aquelas refletidas ao longo deste livro: como conviver com o desamparo? O que fazer com nosso narcisismo? Como inventar um jeito de estar no mundo? O que é a liberdade? O que queremos que seja de nós? Como lidar com nossas forças mais agressivas e destrutivas? Como escutar a “voz tênue da razão”? O que é se tornar uma autora? Por que pensar e narrar são atos de liberdade?
Ao se deparar com abandono e desorientação no momento em que esperava por acolhimento e direção, a autora se negou a enclausurar-se na raiva, no ressentimento, na amargura e na vitimização, escapando também, tão logo quanto pôde, das facilidades da arrogância. Desse modo, decidiu-se por enveredar num “esclarecedor processo de autoanálise e autocompreensão”, uma vez que buscou não o reconhecimento de outros, mas um encontro consigo, certo autorreconhecimento. Melhor dizendo, com a falta de um bom encontro, abriu-se um caminho desconhecido em que se tornou possível elaborar outra compreensão de si. Lemos então delicadas reflexões sobre a vulnerabilidade humana – a partir das experiências de desamparo de Freud, dos humanos e, claro está, de si mesma – e sobre os mecanismos defensivos, projetivos, identificatórios e constitutivos do psiquismo. Como lembra Patricia, a dependência está na origem; e a liberdade (na interdependência) é uma conquista. Para construir “o aparelho psíquico, nossa usina geradora de força vital”, nada está garantido, pois envolve trabalho ininterrupto para todos nós, “indivíduos de carne, osso e história”.
E isso não se faz de modo solitário, como se fosse suficiente ater-se apenas à própria interioridade. Não por acaso, a autora conjuga a análise do inconsciente com uma inserção cada vez mais interessada na cidade: “trafeguei pela cidade enquanto trafegava pelas minhas experiências”. Assim, as ruas de Viena a conduzem para novos encontros com a psicanálise, com sua história e consigo mesma. Certamente, trata-se de uma experiência agridoce: “a cidade trocava de figurino à medida que as cenas aconteciam: ora era o ator vestido de professor se apresentando radiante e formosa; ora surgia furiosa como o ator preso na alma de um professor”. De todo modo, buscando recursos para compreender melhor as coisas, ela se desloca pelo espaço e tempo, gerando esclarecimentos recíprocos entre o ontem e o hoje, o biográfico e o histórico, o psíquico e o cultural, o cotidiano e o extraordinário. Sua análise clínica se conjuga com explorações na cidade com um espírito de curiosidade e investigação. Para tanto, as experiências estéticas – com vinhos, vinhedos, campos, trigos, girassóis, papoulas, matos, flores, queijos, rios – e os testes de resistência corporal se associam intrinsecamente ao trabalho de pensar, num “processo intenso de reorganização e reordenamento”.
Esse livro pode ser lido como uma apologia à práxis da psicanálise; e lhe serve, em igual medida, como uma introdução. Contrária à medicalização da vida psíquica e suas expectativas de alívio imediato e funcional, a autora resgata o processo de humanização promovido pela psicanálise. Isso é feito por ela através da humanização do seu próprio fundador – Sigmund Freud – ao relatar fatos biográficos, descrever os lugares que materializam sua história e revelar suas fragilidades, frustrações, realizações e complexidades. Qual é o lugar do analista? Como estar nele? Essas indagações são desenvolvidas em passagens sobre a interpretação dos sonhos; o papel da observação e da escuta; a associação livre e a transferência analítica; o delicado manejo dos sintomas; os afetos e a sua elaboração em pensamentos; e o caráter processual e inacabado do trabalho analítico.
Todas essas reflexões são feitas com uma peculiar sensibilidade etnográfica a respeito das diferenças culturais. Apesar de não ter sido formada na área, Patricia possui um olhar antropológico refinado que lhe é intrínseco. Quando começamos a lê-la, associamos de pronto a forma de sua escrita àquela do relato etnográfico. Parte disso se deve ao fato de que foi a experiência etnológica com uma outra cultura que gerou os pensamentos que aqui se materializam, de modo que sua sensibilidade etnográfica se mostra em sinergia com uma percepção clínica dos desejos e das relações humanas. Uma vez que o seu contato foi transformador, a escrita nos convida a uma transformação em conjunto. Não por acaso, a autora não apenas descreve a sociedade austríaca em suas distintas facetas, como também se mostra atenta às variações culturais dos saberes e práticas psicanalíticos; e, não por acaso também, ela pensa bastante – e nos faz pensar juntos – por contrastes e comparações entre Áustria e Brasil. Neste procedimento, não raciocina de modo maniqueísta, pois se recusa a simplificar e romantizar. Sua percepção destaca, ao contrário, um senso de singularidade e incompletude; e, em consequência, sua vontade se volta para a promoção de aprendizados recíprocos. Contudo, vale destacar um sutil pendor a favor de uma vocação brasileira para a psicanálise. Patricia reflete sobre o caráter fértil da informalidade da profissão no Brasil e delineia os traços culturais que seriam afins às qualidades próprias de uma boa práxis psicanalítica. Dentre elas, a disposição ao flerte, esse “tipo de interesse e curiosidade que aguça a sensibilidade para escutar, amplia olhares, apresenta diferentes ângulos e vieses, cujos efeitos facilitam conexões e produzem ligações inusitadas e criativas”.
Curiosamente, foi através de um certo flerte lampejante que o Herr Professor sofreu uma metamorfose na psiquê de Patricia: se, de partida, ele havia se convertido de um fantasiado Herr Beschützer (Senhor Protetor) num real Herr Hilflosigkeit (Senhor Desamparo), ele desaparece ulteriormente em uma simbolização multicolor das nossas intermitências ambivalentes: verde, giallo, giallo, giallo, ora verde, verde, giallo… Assim, num fim provisório de análise, somos conduzidos a pensamentos sobre a liberdade, feitos em interlocução com Hannah Arendt. Trata-se de uma reflexão sobre o entrecruzamento das capacidades de agir e de narrar, ao mesmo tempo que um testemunho sobre como, para ela, “falar, escutar, escrever e narrar” foram estradas que surgiram na frente de abismos originados de um distanciamento não desejado, mas instrutivo e, no fim das contas, valorizado.
Haverá liberdade sempre quando houver chances de uma outra história ser produzida, e contada, sempre de novo. Ora, a psicanálise não seria exatamente uma certa capacidade de contar histórias, de instaurar uma narrativa de si e, eventualmente, um poder de agir? É isso que ocorre com a elaboração narrativa de Patricia Jasiocha, cujo resultado se expressa em suas belas palavras: “além do autorreconhecimento de ter me tornado autora, aquilo que recebi e transformei foi equivalente a renovar a pele da minha alma”.
Lá onde havia o desamparo, uma autora veio a nascer.
Julho de 2023

ANDRÉ MAGNELLI é idealizador, realizador e diretor da instituição de livre estudo, pesquisa, escrita e formação Ateliê de Humanidades (ateliedehumanidades.com).
Sociólogo, professor, pesquisador, editor, tradutor, mediador cultural e empreendedor civil/público. É editor do Ateliê de Humanidades Editorial e do podcast República de Ideias. É editor da tribuna Fios do Tempo: análises do presente. É curador do Ciclo de Humanidades: ideias e debates em filosofia e ciências sociais, co-organizado com o Consulado da França no Rio de Janeiro. Pesquisa na interface de teoria social, tecnociências & sociedade, sociologia histórica do político, teoria antropológica, ética, filosofia política e retórica.
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