Fios do Tempo. No limiar da era da inteligência artificial, o que é um autor? – por Bia Martins

O que é um autor? Como a ideia de autoria mudou na história? E o que será da autoria na era da inteligência artificial?

Hoje no Fios do Tempo, a professora, pesquisadora e jornalista Bia Martins reflete sobre algumas respostas a essas indagações, trazendo elementos que servem de esquenta para o curso “Autoria em rede”, cujas aulas síncronas começam nesta quarta-feira (21/06, às 19:30h).

Desejo, como sempre, uma excelente leitura!

A. M.
Fios do Tempo, 19 de junho de 2023


No limiar da era da inteligência artificial,
o que é um autor?

O que é um autor? A pergunta lançada por Michel Foucault há mais de 50 anos na célebre palestra proferida em 1969 na Société Française de Philosophie vai ganhando cada vez mais camadas e problematizações com o passar das décadas. Se naquela época, o filósofo francês já colocava em questão o caráter subjetivo da autoria, produções colaborativas contemporâneas como a Wikipédia, a enciclopédia on-line editada por milhões de pessoas ao redor do mundo, vieram abalar de forma ainda mais radical a figura do autor individual. E bem mais recentemente, a popularização da inteligência artificial generativa, como o ChatGPT, para produção de diferentes tipos de texto em linguagem natural, ou o MidJourney, ou para geração de imagens, desafia a própria concepção de autoria como prerrogativa humana.

Para explorarmos os sentidos desses deslocamentos recentes da autoria, um bom recurso é recorrermos à história a fim de darmos perspectiva ao fenômeno presente. Neste sentido, vale voltar a Foucault e lembrar que a autoria é uma construção histórica, ou seja, seus modelos variaram em diferentes períodos. Esse pensador ressalta que houve um tempo em que os textos literários circulavam sem que houvesse preocupação em lhes atribuir uma autoria; sua antiguidade, mesmo que suposta, já era garantia de sua qualidade. Por outro lado, na Idade Média, os textos científicos só ganhavam credibilidade se estivessem ligados a um nome que lhes desse peso. “Hipócrates disse”: cita ele como um exemplo da necessidade da referência autoral. No entanto, essa referência perde importância nos séculos XVII e XVIII, período em que, por outro lado, os discursos literários passam a precisar da chancela de um autor para serem validados: “perguntar-se-á a qualquer texto de poesia ou de ficção de onde é que veio, quem o escreveu, em que data, em que circunstâncias ou a partir de que projeto” (FOUCAULT, 2006, p. 49).

Voltando ainda um pouco mais no tempo, chegamos à Antiguidade e, então, lançamos a pergunta: quem é afinal o autor de Ilíada e Odisseia? No debate acadêmico que ficou conhecido como “questão homérica”, há estudiosos que afirmam que a resposta é simples: a autoria deve ser atribuída a Homero, conforme já foi estabelecido pela tradição literária há séculos. Porém, outro grupo de estudiosos defende uma hipótese mais complexa: a obra na verdade é uma compilação da cultura oral da época. Através da análise da construção das narrativas, esses pesquisadores procuram demonstrar que os poemas da obra são feitos de várias composições menores de diversos autores anônimos (NUNES, 2004). De forma ainda mais radical, Andrew Bennett (2005) argumenta que Homero pode ser entendido como um arquétipo, que funcionou como uma espécie de legitimação sobre uma tradição cultural, e não como uma pessoa, um poeta, que tenha de fato existido.

Naquele período histórico, a criação poética tinha um caráter aberto e fluido, característico da cultura oral. Cada declamador ou bardo recriava os poemas que recitava em público, inserindo novos versos improvisados. A improvisação, no entanto, não era aleatória, mas deveria estar inserida na tradição cultural vigente, que se manifestava através da figura mítica das musas que, acreditava-se, sopravam os versos aos poetas. As musas, portanto, inspiravam a criação e recriação poética, garantindo seu pertencimento e validação. Embora houvesse o reconhecimento pela performance de cada declamador, sua contribuição poética não era registrada para a posteridade, pois não havia essa preocupação. Nesse contexto, os poemas eram de todos e de ninguém.

Já na era medieval, Deus era o grande autor a quem o artista deveria ser fiel. Não só a arte, mas o próprio conhecimento estava subordinado à transcendência divina, afinal como escreveu São Tomás de Aquino no século XIII, “as ideias estão em Deus”. Naquele período, a instituição da auctoritas, uma autoridade da tradição religiosa formada por clérigos da Igreja Católica, tinha então a prerrogativa de validar ou vetar o que poderia vir a público. Além dos textos bíblicos, passava por seu crivo toda a produção intelectual da época, que seria sempre uma revelação pública de um saber transcendental e nunca uma intuição de caráter privado (BURKE, 1995).

Percebemos que nesses dois períodos, Antiguidade e Idade Média, a autoria esteve, de diferentes modos, relacionada a uma transcendência, das musas ou divina, que estava acima de um autor individual. Ou seja, no período pré-moderno o processo autoral esteve imerso na cultura coletiva, e não em uma consciência subjetiva. Nem mesmo a atribuição de autoria era relevante, pois o que valia era a capacidade de corresponder à tradição, mais do que um mérito autoral particular.

Apenas na Modernidade, a era da constituição do sujeito autônomo, é que ganha peso a noção de uma autoria individual. Além da importância do pensamento de René Descartes, que trouxe a ideia do ser humano racional e consciente como agente do próprio conhecimento, o movimento iluminista também contribuiu para essa mudança de mentalidade por reivindicar o valor da racionalidade e da autonomia, acima do dogma religioso e das crenças. O projeto de emancipação através da racionalidade apela para o debate público e, consequentemente, para a demarcação de posições e a atribuição de autoria. Nesse contexto, a figura do autor, como indivíduo criador, é fortalecida. Na mesma direção, em sua análise sobre a historicidade da autoria, Foucault (2006) ressalta a necessidade de identificar e punir os discursos transgressores como fator determinante para o fortalecimento da autoria individual, especialmente a partir do final do século XVIII. Roger Chartier (1999) reitera essa visão ao afirmar que as primeiras listas com nome de autores foram conhecidas, ainda no século XVI, em atos de censura do clero, do parlamento e dos governos.

Ao lado disso, transformações econômicas e tecnológicas influenciaram na formação de uma nova dinâmica social muito mais complexa que passou a pressionar por direitos de propriedade na circulação dos bens intelectuais. Por um lado, a invenção da imprensa que possibilitou a reprodução mais rápida e em maior escala das obras e, por outro, o desenvolvimento de um próspero mercado livreiro que ajudou a disseminá-las muito mais amplamente. O grande desenvolvimento do comércio, por sua vez, se desdobrou na criação de novos instrumentos administrativos e jurídicos, como o Copyright Act, assinado pela Rainha Anne da Inglaterra em 1710 e tido como a primeira legislação referente a direito autoral. A nova lei, no entanto, servia mais aos interesses das editoras do que dos autores das obras, que ainda não eram reconhecidos como dignos de remuneração (WOODMANSEE, 1994).

Foi no advento do Romantismo, nos séculos XVIII e XIX, que a concepção de autoria subjetiva se fortaleceu ainda mais, quando então ganhou relevância o valor da originalidade e a figura do gênio criador, como alguém portador de um talento único que o faz capaz criar uma obra destacada a partir de sua interioridade. Os poetas românticos contribuíram para essa mudança de entendimento com sua reivindicação pelo reconhecimento de seu trabalho intelectual e seu direito à participação nos lucros crescentes dos livreiros. Outra influência que reforçou essa visão foram as ideias do filósofo Johann Gottlieb Fichte, que defendia o caráter único do raciocínio de cada pessoa e, consequentemente, seu direito de autor tanto do ponto de vista moral, como o criador de sua obra, quanto do material, como o detentor de sua propriedade e de seus possíveis dividendos.

No entanto, a natureza subjetiva da autoria começou a ser questionada não muito depois, ainda no século XIX, com Mallarmé e sua alusão ao poder generativo da linguagem. Seu questionamento inspirou mais tarde, já no século XX, o pensamento de Roland Barthes (2004)  que declarou o desaparecimento do autor e apontou as citações dos mil focos da cultura como a origem do texto, e não mais o sujeito autor. Foucault, em sua palestra já citada, dialoga com Barthes, argumentando que, em sua visão, o autor de fato não morreu, mas vem se transformando, como vimos, através da história.

Chegamos então à atualidade, quando entramos em um novo modelo autoral em rede feito da conexão entre nós distribuídos que interagem na produção colaborativa. No entanto, é importante salientar que o ambiente digital é parte constituinte do momento atual, porém o modelo da rede vai além do suporte tecnológico para expressar uma nova chave para pensar o contemporâneo. André Parente (2004) chama a atenção para o papel estruturante das tecnologias de comunicação e de informação na nova ordem mundial, quando as mais diversas dimensões da atuação humana – sociedade, capital, mercado, trabalho, arte e até mesmo guerra – definem-se em termos de rede, que passa a ser uma espécie de paradigma da atualidade.

A comunicação em rede, nesse sentido, ganha centralidade na produção social no capitalismo contemporâneo. Podemos dizer que hoje a própria produção de subjetividade está articulada às tecnologias de comunicação e informação. Estamos mergulhados em um modo de existência em rede. Somos informados e formados na dinâmica dos fluxos da rede, participamos de sua constituição e respondemos aos seus estímulos em nossas práticas diárias de interação social. Se, por um lado, sabemos como nossas vidas estão imbricadas em complexos dispositivos informacionais de vigilância e controle presentes no meio digital, por outro, não devemos esquecer do potencial criativo que essas mesmas redes tornam possível.

Somos, como diz Derrick De Kerckhove (2003), parte de um hipertexto mundial, como uma mente coletiva que nos impulsiona a outra dimensão perceptiva e cognitiva, que tem relação não só com a velocidade, mas também com a abrangência das conexões e interações. Assim, o ambiente digital proporciona um tipo de cognição distribuída, que se dá a partir de uma memória comum e em uma amplitude inédita. A rede, desse ponto de vista, é uma prótese cognitiva compartilhada, através da qual tanto acessamos quanto coproduzimos colaborativamente obras nas mais diversas áreas: softwares; enciclopédia; pesquisa científica; projetos artísticos etc.

Um desses projetos, o mais notório, é o sistema operacional GNU/Linux, considerado o mais estável e flexível de todos, desenvolvido por milhares de programadores espalhados pelo mundo, que garantem seu contínuo aperfeiçoamento. Por trás dessa produção está o Movimento Software Livre[1], que com essa iniciativa pioneira inverteu a lógica da produção corporativa e influenciou o surgimento de muitos outros projetos nos mais variados campos de atuação. As diretrizes desse novo modelo autoral baseiam-se nos preceitos da cultura hacker, que preconiza a produção colaborativa e o conhecimento livre como dois vetores de uma dinâmica que tem como objetivo a construção de um bem comum.

Outro exemplo também de dimensão planetária que merece ser citado é a Wikipédia, a enciclopédia colaborativa com mais de 6 milhões de artigos em inglês e mais de um milhão em português, além de outras 315 versões idiomáticas, que todos podem acessar e também editar. Com já 22 anos de existência, a obra é fruto de contribuições de milhões de colaboradores de todos os continentes. Olhada com desconfiança por parte da sociedade – afinal como se pode confiar em uma obra editada por qualquer um? –, a enciclopédia livre segue sendo uma boa primeira fonte de consulta e o quinto endereço da internet mais acessado em todo mundo.

E agora temos um novo elemento a embaralhar de vez a acepção de autoria, até mesmo como algo de natureza intrinsecamente humana: sistemas baseados em inteligência artificial generativa, como o ChatGPT, que produz textos em linguagem natural, simulando a linguagem humana, ou o MidJourney, para a geração de diferentes tipos de imagem, em estilos variados, e com detalhes ao gosto do freguês. De fato estamos ainda no limiar dessa nova tecnologia que, desde o seu lançamento público há menos de um ano[2], tem apresentado ainda muitos erros no seu desempenho. Sabemos que são algoritmos treinados no chamado aprendizado de máquina, ou seja, eles vão se aperfeiçoando enquanto os usamos e corrigimos. Ainda é muito cedo, de toda forma, para arriscarmos previsões mais acuradas de como será seu real alcance no nosso dia-a-dia, porém em relação ao processo autoral é possível apontar para seus elementos constituintes.

Alguns pesquisadores, como Espen Aarseth (1997) e Pedro Barbosa (1996), já têm se debruçado sobre o tema há algum tempo, especialmente no que diz respeito a criações literárias, e apontado para o fato de que em um processo criativo que envolva o ser humano e a máquina (ou o algoritmo), temos basicamente duas posições: uma, a do agente humano, responsável pela concepção da obra, e a outra, no campo da materialidade técnica, executadas pelo software. Barbosa é bastante cauteloso ao analisar a atuação da máquina nesse processo, enfatizando que essa será sempre mecânica e vazia de sentido ou de intencionalidade. Quem fornece a estrutura e os limites do texto é a primeira instância de elaboração do projeto, o autor humano, capaz de dar significado à obra. Ao computador, com sua velocidade e precisão, restará executar os comandos e atualizar a proposta concebida originalmente de acordo com os parâmetros estabelecidos. Mas não uma ferramenta qualquer e, sim, uma máquina de alta capacidade operacional, como uma potente prótese de memória com um extraordinário poder de cálculo, muito superior ao do homem. Já Aarseth fala da emergência de um autor ciborgue, numa combinação entre a criação humana e a atividade maquínica. No desenvolvimento de um projeto dessa natureza, em sua visão, uma parte do processo criativo é exclusiva do cérebro humano, capaz de imaginar contextos e elaborar propostas de intervenções no mundo. No entanto, outra parte dessa produção é delegada à máquina por seus atributos operacionais mais eficientes para determinados tipos de tarefas, como os que envolvem grande processamento de dados.

Embora esses pesquisadores não vislumbrassem ainda a emergência dos chatbots de linguagem natural e seu impacto na atividade humana, suas percepções de como se dá um processo autoral na interação entre o homem e a máquina nos dão pistas para pensarmos a autoria na era do ChatGPT: ao humano ainda estará reservada a prerrogativa do ato imaginativo da criação, da invenção de novos projetos, do vislumbre de futuros possíveis. A inteligência artificial, como se sabe, opera por estatística, buscando a melhor resposta possível num volume monumental de dados e a uma velocidade quase instantânea. Mas sempre com base no que já existe, incapaz de reconhecer ou pensar o novo. Portanto, na interação com essa tecnologia, nos caberá sempre o lugar de conceber as melhores perguntas que possam produzir as respostas mais adequadas e necessárias.

Notas

[1] De forma resumida, o software livre se diferencia do software proprietário, como o Windows por exemplo, por garantir a qualquer usuário a liberdade de executar, copiar, distribuir, estudar, mudar e melhorar o software. A única condição é manter as derivações com a mesma licença copyleft a fim de garantir que essas mesmas liberdades se perpetuem, numa espécie de círculo virtuoso. Mais informações sobre o software livre em: https://www.gnu.org/philosophy/free-sw.pt-br.html.

[2]      O ChatGPT foi lançado em 30/11/2022 e o MidJourney em 12/07/2022.

Torne-se sócio-apoiador do Ateliê Clube

Referências

AARSETH, Espen J. Cybertext – Perspectives on ergodic literature. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1997. 

BARBOSA, Pedro. A ciberliteratura – Criação literária e computador. Lisboa: Edições Cosmos, 1996.

BARTHES, Roland. O rumor da língua. 2ª ed. Tradução Mario Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

BENNETT, Andrew. The author. New York: Routledge, 2005.

BURKE, Séan. “Reconstructing the Author”. In: BURKE, Séan. Authorship: from Plato to the Postmodern. Edimburgo: Edinburgh University Press, 1995.

CHARTIER, Roger. A aventura do livro, do leitor ao navegador. Tradução Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes. São Paulo: Unesp, 1999.

DE KERCKHOVE, Derrick. “Texto, contexto, hipertexto: três condições da linguagem, três 33 condições da mente”. Revista Famecos, n. 22, p. 7-12, dez. 2003.

ECO, Umberto. A obra aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. 10ª ed. Tradução Giovanni Cutolo. São Paulo: Perspectiva, 2015.

FOUCAULT, Michel. O que é um autor?. 6. ed. Tradução António Fernando Cascais e Eduardo Cordeiro. Lisboa: Passagens, 2006.

MARTINS, Beatriz Cintra. Autoria colaborativa e validação textual: o caso Wikipédia. Contemporânea. v. 11, n. 01, p. 72-88, 2013.

______. Autoria em rede: os novos processos autorais através das redes eletrônicas. Rio de Janeiro: Mauad X, 2014.

NUNES, Carlos Alberto. “A questão homérica”. In: HOMERO, Ilíada. Trad. Carlos Alberto Nunes. 4ª ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004, p. 7-55.

PARENTE, André. Enredando o pensamento: redes de transformação e subjetividade. In: PARENTE, André (org.). Tramas da rede: Novas novas dimensões filosóficas, estéticas e políticas da comunicação. Porto Alegre: Sulina, 2004, p. 91-110.

WOODMANSEE, Martha. The Author, Art, and the Market: Rereading the History of Aesthetics. Nova York: Columbia University,1994.


BIA MARTINS é jornalista e pesquisadora, é doutora em Ciências da Comunicação (ECA/USP) , com pós-doutorado em Ciência da Informação (IBICT/UFRJ). É editora do site Em Rede < http://www.em-rede.com> e autora do livro “Autoria em Rede: os novos processos autorais através das redes eletrônicas”, publicado pela editora Mauad X em 2014.

Catálogo do Ateliê de Humanidades Editorial


Últimos posts

Deixe uma resposta

por Anders Noren

Acima ↑

%d blogueiros gostam disto: