Hoje temos publicação dupla, em formato escrito e audiovisual.
Trazemos, no Fios do Tempo, o prefácio de André Magnelli ao livro “Políticas da dádiva: associação, instituições, emancipação”, de Paulo Henrique Martins (Ateliê de Humanidades Editorial, 2023): “A crítica e a política nas fronteiras da dádiva”.
E, no Pontos de Leitura, disponibilizamos o primeiro vídeo do Pontos que é exclusivo para os sócios-leitores do Ateliê Clube. Nele, Magnelli faz uma leitura comentada do prefácio. Isso lhe permite trazer sua dupla visão do livro: como editor e como intelectual. Link para assistir: https://youtu.be/1NY9e1ApMlE
Além desse material, os sócios-leitores do Ateliê Clube têm acesso exclusivo ao segundo vídeo, que é uma conversa entre Magnelli e Paulo Henrique Martins. O diálogo passa por várias questões: diagnóstico sobre a atualidade, o que é a dádiva, a recepção das pesquisas sobre dádiva no Brasil, o papel das universidades e dos intelectuais, desafios da democracia, a relação entre dádiva e pós-colonialidade, a centralidade das emoções e dos afetos, o papel da dádiva para a administração estatal, a gestão pública e um bom governo; a necessidade de renovação da ação civil e pública.
Desejamos, como sempre, uma excelente leitura, e escuta!
Fios do Tempo / Pontos de Leitura,
05 de julho de 2023

A crítica e a política nas fronteiras da dádiva
Prefácio a “Políticas da dádiva”, de Paulo Henrique Martins
Paulo Henrique Martins é um intelectual que faz lúcido rimar com lúdico. Ao mesmo tempo que reconhece de modo intuitivo e analisa lucidamente a realidade em movimento, ele possui uma imaginação que articula diferenças esparsas, fazendo liames criadores que abrem trilhas e brechas. Quando ele fala sobre o devir das coisas, os leitores apressados podem ter dificuldades em alguns momentos de captar o que é pensado, pois lhes é demandada uma escuta atenta e sensível, quase que contemplativa. De certo modo, esse pensador pernambucano, de nacionalidade brasileira, espírito latino-americanista e valores cosmopolitas, faz com que nos encontremos, simultaneamente, com a tradição humanista, os saberes populares, o xamanismo ameríndio e a sabedoria oriental. Ao apontar para um pensamento das fronteiras, ele não está mencionando apenas um conceito, mas expressando uma experiência. Paulo pensa, efetivamente, por dentro das fronteiras e de modo fronteiriço.
Políticas da dádiva: associação, instituições, emancipação é o segundo volume dos seus estudos de Teoria Crítica da Dádiva. Publicamos anteriormente Itinerários do dom: teoria e sentimento (2019).[1] Os dois integram a coleção Metamorfoses, que se dedica a publicações que descrevem, sistematizam e promovem outros modos de vida em relação ao que predomina no utilitarismo radicalizado contemporâneo. Itinerários do dom reúne seus escritos sobre dádiva publicados entre 2005 e 2019, que tratam de temas como a noção do dom como (anti)paradigma, as relações entre a teoria do dom e as investigações pós-coloniais e os aportes do dom tanto para uma sociologia do amor, dos sentimentos e das emoções, como para o esclarecimento dos processos de individuação de caráter generativo.[2] A coleção Metamorfoses, que foi inaugurada com esse livro, foi concebida de início para reunir todas as publicações do Ateliê de Humanidades Editorial em torno da teoria e prática da dádiva, pois identificamos nela uma vocação especial para a reconstrução da teoria social crítica e a articulação de práticas transformativas – tais como o convivialismo, a ecologia política, a economia plural, a nova gestão, a economia social e solidária etc. Desse modo, é possível trabalhar para uma convergência de iniciativas cognitivas, afetivas, econômicas, políticas, ecológicas e éticas que tenham potenciais generativos de caráter emancipatório.
Além dos estudos de teoria crítica da dádiva, publicamos na série Cartografias da Crítica outro livro de Paulo Henrique, Teoria crítica da colonialidade[3], que recentemente foi traduzido e publicado pela Routledge.[4] Neste livro, ele desenvolve a proposta de uma renovação da crítica teórica através da interseção entre as teorias críticas do Norte-Global – em especial a teoria da Escola de Frankfurt e a teoria antiutilitarista do Movimento antiutilitarista em ciências sociais (MAUSS) – e as do Sul-Global. Ao propor uma “teoria crítica da colonialidade” em diálogo com o pensamento crítico decolonial, ele expõe, em igual medida, uma crítica aos limites desse movimento intelectual, defendendo, então, um esforço teórico reconstrutivo mais amplo, que inclui um diálogo entre diversas contribuições teóricas, tais como as teorias da dependência, o colonialismo interno, a pedagogia da autonomia e as teologias da libertação. Além disso, ele propõe que a teoria crítica seja cuidadosamente traduzida para o contexto latino-americano e caribenho, o que demanda uma análise das dinâmicas dos poderes patriarcais e oligárquicos, dos colonialismos internos, dos conflitos étnicos-raciais e dos impasses do desenvolvimento na periferia de um capitalismo mundializado e de impulso neocolonial. Por fim, ele se propõe a pensar horizontes emancipatórios para nosso continente, que sejam capazes de articular a crítica da dominação com práticas utópicas e heterotópicas, como as do convivialismo e do bien vivir.
Agora, em 2023, com Políticas da dádiva, chegamos à consumação madura de um admirável arco de reflexão do autor nos últimos quatro anos. Ao longo desse período, Paulo Henrique teve um papel central na própria construção da instituição em rede de livre estudo e pesquisa Ateliê de Humanidades e de nosso editorial, demonstrando, na prática relacional cotidiana, o quanto está visceralmente comprometido com a lógica generativa e circular da dádiva. Esse livro nos apresenta uma nova fase do esforço de articular os estudos sobre dádiva e pós-colonialidade, formando uma espécie de mediação prático-reflexiva dos livros anteriores. Esse esforço é feito com um aprofundamento da análise sobre as dinâmicas territoriais e as experiências vividas nas fronteiras do capitalismo contemporâneo. Para Paulo Henrique, a dádiva oferece uma perspectiva dinâmica sobre os eventos políticos atuais, pois é uma referência ontológica da política, que engloba tanto a vida privada e a sociedade civil quanto o Estado e o espaço público. A partir de uma abordagem relacional da dádiva, ele busca contribuir ao mesmo tempo para iluminar os mecanismos de alienação e inibição dos agentes sociais e públicos e abrir as potencialidades de emancipação presentes em saberes e práticas dinamizados pela lógica donista.
Esse livro defende, contundentemente, a tese de que a dádiva faz um aporte singular tanto para renovar o papel dos intelectuais nas sociedades contemporâneas quanto para pensar o Estado e conceber a ação pública. Como os circuitos de reciprocidades intelectuais e políticas se movem por fronteiras abertas, torna-se importante, para ele, compreender e promover as margens de autonomia das iniciativas intelectuais e dos sistemas estatais, com o intuito de organizar políticas que gerem solidariedades entre saberes e experiências, públicos e gestores. Com uma imaginação produtiva e um compromisso emancipatório que lhe são peculiares, Paulo Henrique apresenta, então, os meios pelos quais podemos reconstruir um bem comum democrático, através do fortalecimento recíproco entre a vida associativa, a atividade intelectual-crítica e as instituições estatais e públicas.
Nas fronteiras: um novo impulso para a crítica
Sendo um dos principais pesquisadores sobre a pós-colonialidade na América Latina, Paulo Henrique Martins está numa boa posição para refletir criticamente sobre o decolonial. Na esteira de Teoria crítica da colonialidade, ele reitera as dificuldades que a proposta decolonial tem para se articular de modo efetivo com uma práxis emancipadora. Por estar centrada numa desconstrução discursiva dos dispositivos de poder e saber, a crítica decolonial não aprofunda a análise das condições práticas de organização da cultura e do poder político e, assim, não possui respostas adequadas para os desafios das sociedades periféricas do capitalismo. Segundo ele, o decolonial não foi capaz de explicar as recentes mutações do capitalismo, e tampouco conseguiu formular satisfatoriamente as vias emancipatórias. De certo modo, a pretensão de romper com as tradições latino-americanas de pensamento crítico contribuiu para a insuficiência das respostas políticas, sendo perceptível a dificuldade que o desconstrucionismo tem para se conectar com as demandas subjetivas e práticas das pessoas. Assim, o decolonial não mostra um adequado senso das experiências cognitivas e afetivas e dos próprios desejos das subjetividades individuais e coletivas; e não apreende com a devida sutileza a força cotidiana das memórias, dos hábitos e das identidades, bem como a natureza complexa dos conflitos sociopolíticos da atualidade.
Por isso, enquanto que o meio acadêmico e o espaço público – brasileiro, latino-americano e, mesmo agora, europeu – surfam na ascendente da onda decolonial, os termos pelos quais essa modalidade de crítica se elaborou perdem parte do seu vigor heurístico, demandando uma saída da crista da onda atual para mergulhar num novo impulso, “de corpo inteiro nas ondas da dinâmica social”. Além de estimular um diálogo entre as distintas modalidades de pensamento crítico latino-americano e europeu, Paulo Henrique nos convida, agora, a desenvolver uma crítica pós-colonial de abordagem relacional e circular das fronteiras.[5] Isso quer dizer que a crítica precisa analisar as dinâmicas territoriais e o modo como os saberes circulam no contexto do mundo globalizado. Para tanto, ele apresenta noções como as de zonas de contato e de zonas de tradução, vistas como meios de analisar os modos de produção de saberes, ideias e culturas. Neste sentido, existe um trabalho complementar a ser feito entre a teoria crítica da colonialidade (TCC) e a teoria crítica da dádiva (TCD). De um lado, a TCC promove um “pluralismo dos campos, autores e ideias”, baseado em “redes de trocas teóricas e informacionais solidárias, que oxigenam a crítica intercultural, formando um novo tipo de prática que se torna comum nas esferas virtuais”; por outro, a TCD permite uma abordagem interativa e relacional, que ativa sentimentos de parceria e assegura “tanto a universalidade das trocas entre os sujeitos em favor do laço social, como a particularidade dessas trocas, obedecendo às diversidades interculturais”.
O capitalismo neoliberal possui, para ele, uma colonialidade intrínseca, com efeitos particulares sobre as sociedades periféricas como as da América Latina e do Caribe. Seus dispositivos neocoloniais, que avançam sobre os territórios do continente, acarretam uma desorganização da vida social e comunitária e uma desregulação do quadro institucional dos Estados. Na passagem para o século XXI, ocorreu um desincrustramento crescente da sociedade por parte tanto da economia de mercado quanto da inovação tecnológica, de modo que a mundialização, a informacionalização, a financeirização e a aceleração geraram um deslocamento das antigas fronteiras dos Estados-nacionais, com impactos negativos sobre as democracias. O resultado disso está numa desregulação da gestão social, econômica, política e ambiental, com uma crise da ideologia desenvolvimentista no contexto periférico. A combinação entre as frustrações com as promessas da globalização e a fragmentação das antigas solidariedades alimenta, então, um processo de regressão da cultura democrática.
Por essa razão, a questão das “fronteiras do capitalismo” se torna central, pois ela tem relação direta com a reconfiguração do espaço e do tempo na organização das instituições, tanto virtuais como presenciais. Para Paulo Henrique, as modalidades emergentes de agenciamentos territoriais, que se realizam conjugando o físico e o virtual, geram novos modos de produção e circulação que demandam um “deslocamento epistêmico”. As atuais lógicas territoriais conduziram ao esgotamento tanto do nacionalismo metodológico nas ciências sociais quanto das ideologias modernas, como o socialismo e o liberalismo, nas lutas sociais. Por isso, seria preciso reconsiderar, para ele, a relação entre nacionalismo e cosmopolitismo em diversos níveis da sociedade e nos distintos territórios geopolíticos. Isso demanda outros modos de articular teoria e práxis, que abandonem as narrativas lineares da modernização e assumam uma orientação pragmática, associacionista e “pluriperspectivista”. Tratar-se-ia, então, de voltar nossa atenção tanto para as dimensões corporais, emocionais e afetivas das experiências, quanto para novas mediações experimentais que assumam as tensões permanentes e crescentes nas dinâmicas territoriais, sobretudo no contexto das fronteiras.
Com lucidez, Paulo Henrique assinala que a atual crise das ciências sociais diz respeito às desconexões comunicativas entre o trabalho da crítica e os seus usos práticos na vida social e nas políticas públicas, havendo assim um hiato entre a reflexão teórica e os acontecimentos históricos. Para reverter essa situação, os intelectuais precisam assumir, para ele, o papel de intérpretes, abandonando o de legisladores, a fim de atuarem como tradutores nas fronteiras dos conhecimentos acadêmicos e não acadêmicos. Dito de outro modo, o desafio atual diz respeito às formas de mediar as realidades sociais. Isso quer dizer que os intelectuais precisam aprender a “surfar no caos” como “intérpretes e mediadores de eventos” dos quais são “um vetor ativamente responsável”. Isto é, as dinâmicas territoriais do mundo contemporâneo demandam um trabalho ativo de organização e circulação de símbolos que gerem elos entre as realidades nas fronteiras do capitalismo, incluindo aquelas que possuam potenciais emancipatórios, como as práticas solidárias e associativas. Para tanto, a crítica precisa ir ao encontro das dinâmicas circulares das dádivas, tomando em consideração “os sistemas primários de pertencimento” com seus “rituais coletivos de interação”, que “dão forma e visibilidade social a pessoas e coisas”.
Em outras palavras, “o avanço da crítica deve servir como base para instituir de novo as condições morais, afetivas, estéticas e políticas necessárias para a geração de pactos sociais e institucionais solidários”. Ao estabelecer o princípio da circulação permanente de objetos e símbolos organizando os lugares coletivos e individuais, a dádiva é um recurso teórico e prático para reconectar os impulsos de produção da vida associativa e da política. Isso envolve três movimentos conjugados: repensar a relação entre política e economia, Estado e sociedade; formular novos modelos de gestão política, econômica e administrativa, a favor de uma cultura cosmopolita dos bens comuns; e repensar a emancipação através do simbolismo tanto cognitivo quanto afetivo, pois “os afetos constituem uma disposição relacional que interfere diretamente sobre as formas de se fazer política”.[6]
Por uma emancipação: as políticas da dádiva
Vemos, portanto, como a relocalização da crítica nas fronteiras, orientada por uma lógica relacional e circular da dádiva, pode operar o deslocamento epistêmico da crítica intelectual demandado pelas atuais dinâmicas territoriais. Neste sentido, a dádiva serve não apenas para redinamizar a vida intelectual em um contexto de reconfiguração das redes territoriais e institucionais, como também para reformular os termos pelos quais pensamos e atuamos no âmbito da economia, da política, da administração e do direito. Neste sentido, as políticas da dádiva buscam, ao mesmo tempo, fortalecer a vida associativa e solidária na sociedade civil e nos espaços públicos e proporcionar novos modelos de reforma das instituições estatais e administrativas.
Existem muitas confluências entre este Políticas da dádiva e um outro livro de nossa coleção, A fábrica da emancipação, de Jean-Louis Laville & Bruno Frère.[7] Os dois retomam o tema da emancipação como horizonte da ação comum; fazem uma crítica às derivas da teoria crítica em uma hipercrítica pouco construtiva, descolada do mundo da vida e das capacidades de agir dos indivíduos; propõem uma colaboração entre as teorias críticas do Norte-Global e as chamadas Epistemologias do Sul; enfatizam a importância de uma sociologia atenta às emergências de dinâmicas associativas e solidárias com características emancipatórias (ainda que sempre ambivalentes e impuras); propõem renovações epistemológicas que articulem, de um modo mais pragmatista, processualista e experimental, a ciência com a ação, a teoria com a práxis; e, enfim, possuem uma preocupação em analisar o modo como as dinâmicas associacionistas se articulam com as mudanças institucionais no âmbito da economia, da gestão e da política. Contudo, apesar de Laville & Frère sinalizarem o interesse da dádiva para avançar na renovação da teoria crítica, isso não é realizado em A fábrica da emancipação e, por isso, ao trazer a lógica da dádiva como chave para a reformulação da práxis emancipadora, Políticas da dádiva: associação, instituições, emancipação traz um aporte inédito e, em certo sentido, inesperado.
Na verdade, todos aqueles que estão familiarizados com o tema da dádiva, tal como presente no Movimento antiutilitarista em ciências sociais (MAUSS) – do qual Paulo Henrique faz parte há décadas –, não se surpreendem com a conexão do paradigma da dádiva com uma teoria crítica orientada por interesses emancipatórios.[8] A grande surpresa está, precisamente, no fato de que ele explora o escopo mais amplo da dádiva, propondo-a como uma lógica atuante não apenas nas sociabilidades de nível primário (relações amorosas, amizade, família, vida associativa, espaço público) e no fortalecimento de uma democracia associacionista, mas também no âmbito da organização da política e do Estado. Quando propõe uma teoria antiutilitarista da ação pública, seu esforço teórico me parece, até onde sei, sem quaisquer precedentes.
Desse modo, movido por uma “utopia da esperança” ao modo de Ernst Bloch, Paulo Henrique tem o intuito de ativar as potencialidades da dádiva para a criação de um modelo de sociedade e de política que repense os fundamentos do bem comum; como num “sonho diurno”, ele aponta “para um futuro de paz, abundância e harmonia com a natureza”. Para encaminhar processos emancipatórios, é preciso reconhecer, segundo ele, que existe uma pluralidade relacional de perspectivas e que o mundo antigo possui virtudes e virtualidades aptas a parir um mundo novo; além disso, é preciso se deparar com o fato de que as formulações emancipatórias se dão nas tensões postas nas fronteiras, entre saberes localizados e saberes globalizados, entre saberes negligenciados/esquecidos e saberes globalizados/liberados, entre práticas comunitárias locais/regionais e práticas cosmopolitas, entre poderes autoritários e poderes participativos.
O livro se desenvolve, então, em quatro frentes de orientação prático-política: a proposição de uma abordagem relacional da democracia através da cultura da dádiva (capítulo 2); a construção de uma teoria antiutilitarista do Estado e da ação pública (capítulo 3); a proposição do convivialismo como prática política adequada às novas dinâmicas territoriais (capítulo 4)[9]; e a elaboração de uma teoria da individuação consentida e amorosa (capítulo 5).
Vale dizer que a ideia de cultura da dádiva possui um apelo mais forte ao dinamismo social concreto do que a noção de “paradigma da dádiva”, proposta por Alain Caillé. Para Paulo Henrique, as sociedades contemporâneas demandam a reconstrução de laços afetivos e morais geradores de confiança e solidariedade; sem isso, não apenas se torna impossível qualquer política emancipatória, como também ocorre um processo de autodestruição da democracia através de uma negatividade impolítica.[10] A dádiva é, para ele, o operador simbólico fundamental de reconstrução da confiança democrática. Assim, na esteira do Movimento antiutilitarista em ciência sociais (MAUSS), ele assume a importância da dádiva para a vida associativa, como intrínseca à cultura democrática, na medida em que é a própria forma de simbolizar, encenar, reproduzir e ritualizar a vida democrática cotidiana. Contudo, a dádiva é, também, um dispositivo de democratização dos sistemas de poder instituídos. Isso quer dizer que a cultura da dádiva permite orientar tanto a democracia associacionista quanto a ação pública estatal. E, para a realização das duas tarefas, é preciso valorizá-la, em igual medida, no âmbito da individuação humana, enquanto operadora de pulsões desejantes e diferenciadas no interior da democracia: “as perspectivas da política democrática em áreas de fronteiras dependem necessariamente de repensarmos a estrutura do poder político e as políticas públicas através de uma dinâmica relacional que valorize a regra da dádiva no processo de humanização de um sujeito em permanente processo de individuação dentro dos limites oferecidos pelas práticas democráticas”.
Paulo Henrique está propondo, então, um olhar institucionalista sobre a dádiva. E, mais ainda, uma análise de sua presença no aparelho estatal e na política institucionalizada. Sabemos como as esferas administrativa e jurídica do Estado tendem a ser pensadas somente no registro da racionalização formal-instrumental. No contexto de sociedades periféricas, essa racionalização do Estado é vista, com boas razões, como um meio de quebrar os circuitos interpessoais de uma dádiva negativa, “pervertida”, por assim dizer, vinculada a lógicas patrimonialistas, paternalistas, clientelistas e corporativistas. Eis aqui o velho problema da relação entre o público e o privado, tão abordado no contexto do pensamento social e político brasileiro. Portanto, é natural que haja uma suspeita a respeito do uso da dádiva na esfera da ação pública. Não estaria aí uma porta aberta para práticas de corrupção? Contrário a essa simplificação, Paulo Henrique propõe uma diferenciação entre as modalidades menor e maior da dádiva, que forma uma espécie de paralelo com a distinção entre a pequena e a grande política.
Vale lembrar, antes de tudo, que os mecanismos formais de legitimação estão em crise de legitimidade, justamente porque aparecem como artifícios desprovidos de substancialidade democrática, uma vez que se veem presos na pequena política, reféns de interesses oligárquicos locais e transnacionais. As defecções e os desencantamentos democráticos dizem respeito às experiências de injustiça e denegação de reconhecimento vindos de uma quebra do ciclo de reciprocidade que se espera entre cidadãos e Estado. De certo modo, os dispositivos jurídicos e administrativos ocultam a presença simbólica da dádiva na carne do social, que funciona como moral implícita ou tácita, como uma espécie de condição antropológica da política. Tal fato se explicita nos casos de desconfiança prática, quando degrada o “valor-confiança” da política, desorganizando o ritual das trocas entre agentes públicos e privados. Quando a dádiva funciona positivamente, a confiança se faz presente sustentando simbolicamente o sistema da racionalidade legal e as relações entre agentes burocráticos, e políticos, bem como entre agentes públicos e privados. Portanto, o simbolismo da dádiva é percebido quando está em falta, o que se expressa em perda de autoridade, desobediência civil, ressentimento cidadão, desconfiança das tomadas de decisão e carência de legitimidade dos poderes públicos. As formas mais triviais de manifestar isso estão nos protestos contra o mau uso dos impostos, o corporativismo dos funcionários públicos e o egoísmo oligárquico das elites políticas. Essas manifestações tornam visíveis as expectativas dos cidadãos a respeito dos ciclos de dádivas que estão na raiz das “instituições invisíveis” que sustentam a ação pública: confiança, legitimidade e autoridade. Portanto, pensar o Estado apenas através da racionalidade burocrática ou procedimental conduz a obnubilar as trocas circulatórias e dinâmicas de bens, serviços, palavras, gestos e afetos que fazem parte do cotidiano da política institucional, fornecendo-lhe a substância própria de sua legitimidade.[11] É por isso que o livro propõe a imaginação criadora de reformas de Estado que minimizem o peso do corporativismo e dos interesses privatistas, viabilizando ações de planejamento voltadas para a promoção da cidadania democrática. Isso quer dizer que, a partir da dádiva, seria possível reconstruir, hoje, uma imagem do que seria uma grande política que abra brechas nos dispositivos burocráticos e corporativistas, gerando uma desinibição da ação cidadã e pública e liberando uma ação comum e solidária que renove a cultura democrática.
Neste sentido, o livro é também um esforço de superação dos limites de um modelo de democracia demasiadamente centrado na participação e na deliberação, sobretudo no contexto dos sistemas sociais periféricos, que são muito dependentes da ação organizadora do Estado. Apesar de ser um momento importante da vida democrática, a participação popular de grupos locais possui uma série de embaraços e tensões. É necessário ampliar o campo da análise, a fim de pensar “a organização de uma política de vida comum saudável e integrativa no interior de sociedades nacionais periféricas”. Para tanto, de forma bem próxima a Jean-Louis Laville, Paulo Henrique desenvolve uma reflexão sobre a centralidade das esferas públicas associativas e híbridas; mas, diferentemente de Laville, e também de Alain Caillé, sua concepção de democracia é fortemente estética, focada sobre os corpos, as sensibilidades, as paixões e as emoções, sobretudo as amorosas. Não por acaso, ele diz que o trabalho intelectual nas fronteiras ainda não conseguiu abrir novas possibilidades teóricas porque falta reconhecer, devidamente, o lugar da “experiência corporal – psíquica, emocional, existencial e contextual – como centro estratégico do simbolismo democrático”.
Tudo isso remete ao reconhecimento do papel das identidades dentro das lutas democráticas, mas demanda também a recuperação de um sentido de bem comum que transcenda as lutas por reconhecimento. Paulo Henrique desenvolve, então, uma proposta de articulação entre políticas redistributivas e políticas de reconhecimento, que sejam adequadas ao contexto das sociedades periféricas, utilizando as reivindicações das identidades a favor do bem comum e evitando, assim, as tendências neotribalistas tão fortes hoje em dia. A descolonização das fronteiras simbólicas passa necessariamente por processos de reinstitucionalização do bem comum, o que não pode se limitar ao tema da economia, pois devemos considerar as possibilidades de desapego com relação a crenças que amordaçam e inibem o sujeito desejante. Nesse caso, aprofundando suas reflexões da última parte de Itinerários do dom, Paulo Henrique afirma que “a circulação de dádivas em favor da emancipação envolve simultaneamente as relações interpessoais e interinstitucionais com o intuito de liberar a generosidade pela generatividade”. Se, de um lado, o objetivismo, o utilitarismo e o narcisismo negativo bloqueiam os processos de diferenciação da psiquê, é preciso que, de outro lado, reconheçamos o papel da dádiva na formação de processos generativos de individuação. É assim que ele apresenta, no último capítulo, uma teorização da individuação consentida, dando uma atenção especial ao papel da individuação amorosa como experiência societal. Em uma proposta que condiz com seu modo de existir e com suas relações cotidianas com os outros, Paulo Henrique Martins defende que o agir amoroso é uma prática necessária para a reconstrução dos laços sociais, o que se realiza na troca de dádivas livres entre indivíduos. Deste modo, o amor não é uma ideia ou uma emoção, mas um processo de doação recíproca. Trata-se de explorar a “trama amorosa social que envolve corpo, mente e emoções através de experiências de liberdade e de responsabilidade consigo mesmo e com o próximo”. Trata-se de processos de aprendizagem, que são necessários para a expansão de novas modalidades sensitivas e perceptivas, incluindo as faculdades críticas e reflexivas. Isso porque “a individuação consentida revela um processo de autorreflexão crítica da vida social, um processo psíquico, afetivo e jurídico, que permite a emergência de uma dinâmica política e cultural ativa que se abre para pactos solidários nos planos coletivos e individuais”. Eis aqui, segundo ele, um caminho para “descongestionar a confusão mental e emocional que vem ameaçando o processo civilizatório” através da valorização de “relacionamentos plurais, amistosos, generosos e mutuamente satisfatórios”.
Quando se assume tal atitude com “coragem socrática”, como ele diz, podemos adquirir uma contemplação ativa das emoções e dos afetos de nós mesmos e dos outros, base imprescindível para a construção de uma sociabilidade emancipada e autorrealizada. E, neste sentido, é preciso saber aceitar voluntariamente as descontinuidades e incertezas, reconhecer, de algum modo, a dimensão trágica do existir em comum. Aqui está a “condição para nos individualizarmos de modo reflexivo e nos mantermos alertas na corda que tecemos para fazer a travessia abismal em direção a um destino insondável”.
Notas
[1] MARTINS, Paulo Henrique (2019) Itinerários do dom: teoria e sentimento. Rio de Janeiro: Ateliê de Humanidades Editorial.
[2] Isso é feito em diálogo com os sociólogos do grupo Social One, em especial Vera Araújo, Silvia Cataldi e Gennaro Iorio, que lideram um movimento intelectual voltado à investigação do amor na sociologia. Ver IORIO, Gennaro (2021) Sociologia do amor: ágape na vida social. Rio de Janeiro: Ateliê de Humanidades Editorial.
[3] MARTINS, Paulo Henrique (2019) Teoria crítica da colonialidade. Rio de Janeiro: Ateliê de Humanidades Editorial.
[4] MARTINS, Paulo Henrique (2022) Critical Theory of Coloniality. London/New York: Routledge.
[5] Sobre a abordagem relacional, Paulo Henrique se coloca em diálogo direto com o movimento da “sociologia relacional”. Ver VANDENBERGHE, Frédéric; DÉPELTEAU, François (orgs.) (2022) Sociologia relacional. Rio de Janeiro: Ateliê de Humanidades Editorial.
[6] Parte deste movimento conjugado, sobretudo os dois primeiros pontos, está presente em dois livros da coleção Metamorfoses: LAVILLE, Jean-Louis (2023) Uma economia para a sociedade: terceiro setor, economia social, economia solidária. Rio de Janeiro: Ateliê de Humanidades Editorial; FRANÇA FILHO, Genauto Carvalho de; EYNAUD, Philippe (2020) Solidariedade e organizações: pensar uma outra gestão. Salvador: EdUFBA / Rio de Janeiro: Ateliê de Humanidades Editorial.
[7] LAVILLE, Jean-Louis; FRÈRE, Bruno (2023) A fábrica da emancipação: repensar a crítica do capitalismo a partir das experiências democráticas, ecológicas e solidárias. Rio de Janeiro: Ateliê de Humanidades Editorial.
[8] A respeito disso, ver: Magnelli, André (2022) Critical theory of the gift: paths and programs of the MAUSS (1982-2022). MAUSS International. The Gift in movement: anti-utilitarian interventions in social sciences. 2022/2.
[9] Sobre o convivialismo, ver: INTERNACIONAL CONVIVIALISTA (2020) Segundo Manifesto Convivialista: por um mundo pós-neoliberal. Rio de Janeiro: Ateliê de Humanidades Editorial.
[10] Faço aqui uma alusão a um outro livro de nosso editorial, com qual Políticas da dádiva chega a dialogar: ROSANVALLON, Pierre (2022) A contrademocracia: a política na era da desconfiança. Rio de Janeiro: Ateliê de Humanidades Editorial. Ver também: ROSANVALLON, Pierre (2021) O século do populismo: história, teoria, crítica. Rio de Janeiro: Ateliê de Humanidades Editorial.
[11] Estas formulações podem se encontrar, de modo sinérgico, com as investigações de Pierre Rosanvallon sobre as mutações da democracia contemporânea e as possibilidade de renovação da vida democrática, cotidiana e institucional. Elas estão presentes na tetralogia que estamos publicando pelo Ateliê de Humanidades editorial: A contrademocracia, A legitimidade democrática, A sociedade dos iguais e O bom governo. Apesar de Rosanvallon não tratar da dádiva, suas análises sobre a complexidade da legitimação democrática, o caráter qualitativo da igualdade e a natureza da ação governamental possuem fortes confluências com as propostas presentes neste livro.

ANDRÉ MAGNELLI é idealizador, realizador e diretor da instituição de livre estudo, pesquisa, escrita e formação Ateliê de Humanidades (ateliedehumanidades.com).
Sociólogo, professor, pesquisador, editor, tradutor, mediador cultural e empreendedor civil/público. É editor do Ateliê de Humanidades Editorial e do podcast República de Ideias. É editor da tribuna Fios do Tempo: análises do presente. É curador do Ciclo de Humanidades: ideias e debates em filosofia e ciências sociais, co-organizado com o Consulado da França no Rio de Janeiro. Pesquisa na interface de teoria social, tecnociências & sociedade, sociologia histórica do político, teoria antropológica, ética, filosofia política e retórica.
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