Fios do Tempo. Vodu, Voodoo ou Vodou? As religiões de matriz africana na mira do sensacionalismo – por Eduardo Regis

Trazemos hoje no Fios do Tempo um artigo de Eduardo Regis falando de vodu/voodoo/vodou. Para interromper a associação automática de pronto, não se preocupe, não há nenhum mal nisso. Não se trata de bonecos espetados, zumbis e coisas afins. Este é exatamente o problema a ser tratado. O que nos leva a pensar assim?

A motivação da escrita de Eduardo Regis está numa “notícia” publicada pelo Estadão com a seguinte manchete: “Encomendar ‘vodu’ contra autoridades não é crime, decide STJ”. O que está mobilizado imaginariamente nessa manchete e matéria? O que é o vodoo? Por que tendemos a representar esta religião do Haiti a partir de imagens maléficas? E o que EUA e Hollywood têm a ver com isso?

Além de sinalizar para o reconhecimento deste belíssimo universo de religiões afro-brasileiras e afro-americanas – Vodoo, Candomblé, Tambor de Mina, Umbanda, Quimbanda, Santeria, Palo Monte, a religião de Maria Lionza etc. -, o artigo pensa o que fazer para trabalhar contra as preconcepções interreligiosas tão comuns. Afinal, vale a dica: “o que hoje pode gerar um clique, amanhã pode se converter em um terreiro queimado”.

Desejo, como sempre, uma excelente leitura!

A. M.
Fios do Tempo, 11 de abril de 2023



Vodu, Voodoo ou Vodou?
As religiões de matriz africana na mira do sensacionalismo

Recentemente, circulou em diversos portais da grande mídia a notícia de que fazer “vodu” com finalidade de ameaçar alguém não é crime, conforme decisão do STJ. Deixarei a análise da questão legal para os operadores e teóricos do direito, pois prefiro focar no verdadeiro absurdo desse acontecimento: novamente estamos diante do uso irresponsável e preconceituoso de um termo que denomina uma religião.

Em geral, as notícias veiculadas sobre o caso em tela traziam o “vodu” logo na chamada, de maneira que o sensacionalismo fosse um chamariz irresistível aos olhos curiosos dos internautas. Nos corpos das notícias, para quem se desse o trabalho de chegar a conferir, estava lá – em palavras claras – a associação inequívoca entre “vodu”, “macumba” e “magia negra” e a intenção de causar o mal a um determinado alvo. Caso claro de ignorância, má-fé e da intenção patente de associar uma religião de matriz africana (em verdade, mais de uma) à perversidade. Além disso, fica evidente também que ao dar tanto destaque a uma decisão como essa, fica revelada uma malícia que objetiva deslegitimar tais religiões, visto que os doutos juízes parecem – na redação enviesada das notícias – ter decidido que, acima de tudo, práticas espirituais de matriz africana são puro objeto de fantasia.

Notícia no portal de internet do “Estadão”. Acesso em 05/04/2023.

Dizer que o preconceito contra as religiões de matriz africana é novo seria absurdo. É notório que ele acompanha e molda a história brasileira desde os tempos da colônia. Pelo início do século XX, o país, impulsionado por uma série de transformações sociais e pelo desejo de se alinhar a um pensamento moderno, começou a se utilizar não mais apenas do discurso da fé católica, mas também da racionalidade para diminuir o valor das práticas espirituais dos ex-escravizados e de seus descendentes. Portanto, hoje, em pleno ano de 2023, já estamos com alguns séculos de perseguições a essas religiosidades e, aparentemente, não há previsão de uma melhora substancial nesse sentido. Portanto, se declarar com uma notícia dessas não chega a ser particularmente surpreendente.

Ilustra essa situação muito bem, um passeio pelos comentários nas redes sociais, que divulgaram de maneira exaustiva as notícias supracitadas. A ampla maioria das pessoas que se sentiu motivada a deixar uma mensagem na área de comentários, o fez motivada pelo total escárnio às religiosidades de matriz africana. São comentários em “tom de brincadeira”, mas que revelam que para essas pessoas, por exemplo, “vodu” é sinônimo de um bonequinho no qual se espetam agulhas e que “macumba” é o mesmo que feitiços maléficos.

É verdade que o Brasil é extremamente racista no quesito religioso, mas no caso em especial do termo “vodu”, temos mais alguns culpados, sendo a principal, sem dúvidas, a indústria de entretenimento dos Estados Unidos da América. Para entendermos isso, precisamos também compreender onde nasce essa associação entre o “vodu” e “bonequinhos de espetar” e “feitiços maléficos”. Como muitas histórias recentes, o início disso tudo se encontra na voracidade dos Estados Unidos da América por querer dirigir os rumos do mundo. Ocorreu que, entre 1911 e 1915, o Haiti sofreu uma série de turbulências políticas que dispararam um velho interesse dos EUA pelo território deles. Usando da desculpa da instabilidade política, os EUA invadiram e ocuparam o Haiti de 1915 até 1934, pilhando e explorando o pequeno e pobre país. Durante essa ocupação, os norte-americanos tiveram contato com as particularidades haitianas, dentre elas o Vodou (termo mais apropriado) haitiano, uma religião viva e dinâmica, que surgiu no país durante seu período colonial e que é formada por diversas influências africanas e também do catolicismo. Ainda, embora exista Vodou em outros países, como na República Dominicana e exista o Vodum africano, encontrado na região do Benim, e todos eles sejam conectados pelos fios da história e das influências, estou focando no haitiano, por conta do poder que exerceu no imaginário ocidental.

Em toda sua ignorância e incapacidade de tentar entender a alteridade da realidade haitiana, os norte-americanos começaram a tratar o Vodou como objeto exótico e – obviamente – perigoso. As histórias sobre os zonbis – que virariam os zumbis da cultura contemporânea – começaram a circular e rapidamente chegaram a Hollywood com a estreia de White Zombie estrelado por Bela Lugosi em 1932. Não creio que seja realmente necessário, mas é oportuno dizer que apesar dos esforços do etnobotânico Wade Davis nos anos 1980 em estudar os supostos casos de zumbificação no Haiti, ou seja, do resgate de pessoas “clinicamente mortas” de suas tumbas para transformá-las em trabalhadoras sem vontade própria, não existe qualquer evidência concreta de que tal prática seja verdadeira. O que não quer dizer que ela não exista no imaginário haitiano, o que são coisas bem diferentes.

Alguns anos mais tarde, nos anos 1950, aconteceu que bonecas haitianas feitas com partes de castanhas de caju e de outras fontes naturais se tornaram uma pequena febre nos Estados Unidos da América – provavelmente ainda por conta de todo o fascínio que o Haiti e o Vodou exerciam. Essas bonecas foram importadas aos milhares para os EUA e eram vendidas como “bonecas voodoo”. Entretanto, o departamento de saúde da cidade de Canton divulgou que as bonecas eram venenosas – por conta de seus componentes naturais – e que podiam causar reações severas e até levar bebês ao óbito. Não é preciso colocar que isso causou um temor generalizado que acabou aumentando ainda mais o pavor das pessoas pelo Vodou e pelo Haiti.

Com isso, Hollywood, empresas de entretenimento e diversos autores começaram a produzir mais e mais ficções e até mesmo produtos infantis (quem não se lembra do desenho do Pica-Pau e do episódio do “vodu é pra jacu”?) explorando essa visão equivocada sobre o Vodou haitiano. Alguns exemplos: o filme “Coração Satânico” de 1987; o filme “Brinquedo assassino” de 1988, que apresenta um sacerdote Vodou chamado “Dr. Morte”; James Bond em “Vive ou deixe morrer”, de 1973, que apresenta o Barão Samedi – uma entidade do Vodou haitiano – como vilão; e o próprio filme baseado nas pesquisas de Wade Davis, “A maldição dos mortos-vivos” de 1988, que é, de fato, um filme de terror baseado no Vodou. Por óbvio que todos esses produtos chegaram e foram consumidos à exaustão no Brasil, criando uma imagem do Vodou completamente equivocada.

No nosso país, portanto, onde a “macumba” ainda é vista como uma espécie de feitiçaria perversa e onde casas de religião de matriz africana são depredadas ou ainda, alvos de importunações constantes por uma variedade de pessoas intolerantes e ignorantes que, infelizmente, estão ligadas principalmente aos movimentos neopentecostais, o termo “vodu” como outro nome para “magia negra” acha uma casa acolhedora. Afinal, por qual razão a espiritualidade de derivação africana em qualquer outro lugar seria diferente do que temos aqui? Concepções desvirtuadas internas e próprias então recepcionam e moldam as informações que chegam dessas outras religiões. Não haveria, em verdade, muito espaço para uma compreensão real do Vodou no Brasil, mesmo que só tivessem chegado aqui informações precisas sobre o mesmo, pois não conseguimos encarar nossas próprias questões com as nossas espiritualidades de matriz africana.

Em minha opinião, só há uma maneira de mudar esse cenário. Precisamos cobrar e trabalhar pela educação transformadora que tantos desejamos e essa deve incluir uma discussão religiosa aberta, honesta e verdadeira, comandada por profissionais capacitados e não por doutrinadores. Todos os setores da sociedade e todos os atores religiosos têm que participar dessa iniciativa de maneira equivalente, mesmo que ocorra competição, desentendimentos e brigas durante esse processo – e haverá, não sejamos inocentes. O que não pode continuar a existir é a dita “educação religiosa” que é, verdadeiramente, uma catequese em uma determinada religião, como ocorre em instituições educacionais confessionais ou como acontece de maneira velada em instituições não confessionais comandadas por pessoas intolerantes. Em outras palavras, se quisermos construir uma sociedade mais tolerante no âmbito religioso, a educação não pode estar curvada aos desígnios de um ou de outro setor. O ensino religioso deve ser inclusivo e absolutamente livre de sectarismos, de maneira que todos os cidadãos tenham a oportunidade de construir uma relação de respeito a todas as manifestações religiosas.

É preciso considerar que diante da ignorância e da intolerância, “vodu”, “macumba”, “candomblé”, “quimbanda”, podem parecer tudo como exatamente a mesma coisa: o outro indesejável. Não há espaço para descanso na luta pelos direitos de liberdade religiosa, de respeito e também na luta antirracismo. Pois sim, a intolerância religiosa contra religiões de matriz africana está fortemente suportada pelo racismo. Não há mais como duvidar disso e como separar os assuntos – falar de religiões afro-brasileiras e afro-americanas é falar da condição das pessoas pretas e, portanto, é uma questão que afeta a todos.

Por isso, o Brasil precisa saber o que foram as Macumbas. Precisamos conhecer melhor nossos Candomblés, nosso Tambor de Mina, nossa Umbanda e nossa Quimbanda. Porém, também devemos olhar para as religiões afro-americanas com carinho e respeito. O Vodou haitiano é belíssimo e nada tem de mero artifício para que se cometam atrocidades. A Santeria, o Palo Monte, a religião de Maria Lionza e tantos outros são expressões importantes e ricas que devemos tratar com cuidado e com admiração. Isso, acredito, criará uma rede de informações boas que nos ajudará a valorizar o que fazemos aqui e combaterá a ignorância de maneira eficaz.

Até lá, os profissionais de educação, de mídia e os divulgadores científicos deveriam, pelo menos, ter a responsabilidade de não fomentar ainda mais desenganos como esse do “vodu”. Talvez não tenham parado para considerar que o que hoje pode gerar um clique, amanhã pode se converter em um terreiro queimado.

EDUARDO REGIS é Especialista em Ciências da Religião (FSB-RJ) e doutorando em Ciências da Religião (UFJF). Atualmente, seus interesses de estudo orbitam o Vodou haitiano e a Quimbanda brasileira.


Catálogo do Ateliê de Humanidades Editorial


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