Às vésperas do segundo turno das eleições presidenciais, o Ateliê de Humanidades julga de utilidade pública trazer a uma audiência mais ampla esta Carta de um amigo conservador católico e monarquista, originalmente uma manifestação de um conservador católico a seus amigos próximos. Desde que travamos o nosso primeiro contato com o texto, identificamos a relevância de sua publicação enquanto documento representativo de um ponto de vista historicamente influente na sociedade brasileira.
Depois de reconstituir, a partir de seu prisma, o panorama que o havia levado a votar em Jair Bolsonaro em 2018, o autor argumenta que o atual presidente traiu as suas expectativas mínimas, revelando-se em tudo um falso conservador. São abordadas ainda possíveis ameaças ao catolicismo pela forma com que Bolsonaro tem relacionado religião e política.
A seguir, publicamos a íntegra de sua carta, assinada, como na forma original, pelo pseudônimo do autor, que permitiu nossa publicação.
Thiago Cabrera e André Magnelli
Fios do Tempo, 28 de outubro de 2022
Por que não voto em Bolsonaro?
Carta de um amigo católico conservador e monarquista
Meu caro amigo,
Você perguntou-me sobre minha posição neste segundo turno. Você sabe de minhas convicções em defesa do direito natural clássico e da tradição política brasileira, da monarquia e, especialmente, dos princípios da doutrina social da Igreja. Não falo em nome da Igreja, obviamente, nem de nenhum movimento: expresso a você, em confiança, o que tenho visto e analisado, e a posição que tomei.
Você e eu compreendemos bem por que Jair Bolsonaro ganhou as eleições de 2018. Vivíamos sob um regime dominado por um minoria que se considerava mais ilustrada que o comum do povo e, no governo, procurava impor pautas contrárias à moral natural e popular. Podemos mencionar aceitação das drogas, uniões homossexuais, e tantas outras pautas, a mais grave de todas sendo a legalização do aborto, ou seja, o assassinato de bebês dentro do útero materno. Tendo surgido um candidato que se afirmava rotundamente contra toda essa pauta, era compreensível que recebesse um grande, entusiasmado, sincero apoio, apesar das óbvias limitações humanas e intelectuais do candidato.
Como muitos, pensava eu que, uma vez eleito, Bolsonaro deixaria de lado comportamentos e atitudes incompatíveis com o ofício de presidente da República, e, agindo institucionalmente, saberia governar como um presidente conservador. Um presidente conservador não é chulo, um presidente conservador não divide a nação para seu benefício político pessoal, um presidente conservador não põe os interesses de seus filhos e de sua família acima do bem comum. Um presidente conservador teria efetivamente trabalhado pela vida e pela família, com boas nomeações para o Supremo e favorecimento de legislação conservadora. Um presidente conservador teria dignificado a efeméride irrepetível do Bicentenário da Independência, que passou em brancas nuvens, quando não em triste circo com coros de “imbrochável”. Nenhum presidente conservador verdadeiro teria humilhado o país dessa forma.
Agora, como ficaram as pautas da vida e família nestes últimos quatro anos? Para o STF, o presidente nomeou ministros sem compromisso claro com a luta pela vida e pela família. O interesse foi em primeiro lugar a composição política e a preservação dos interesses da família presidencial. Se foi assim no primeiro mandato, quando o escrutínio popular ainda tinha algum peso em vistas da possibilidade de reeleição, o que será num possível segundo mandato? Sinceramente espero outros Kássios, ou um Augusto Aras, ou pior. O presidente não honrou seu compromisso pró-vida, o qual, é forçoso reconhecer, ele nunca teve: não só declarou já publicamente que o aborto é questão a ser resolvida pelo casal, como sugeriu o aborto de seu próprio filho (da segunda mulher), se fosse a preferência da mãe. É triste reconhecer que Bolsonaro sempre foi um partidário da visão neomalthusiana de controle populacional, e não por acaso faz poucas semanas esteve comemorando a sanção que deu, sem veto algum, a essa nova lei que diminui a idade para esterilização humana e, pior ainda, permite à mulher e ao homem casados castrar-se sem obter previamente a anuência do cônjuge. Como alguém que se vende como cristão e conservador sanciona uma lei dessas, e ainda comemora depois?
Está muito claro para mim que Bolsonaro apenas se aproveita do voto conservador. Em quatro anos de governo, não moveu uma palha pela aprovação do Estatuto do Nascituro, que era o mínimo que se esperava desse governo. Estamos tal qual na época do PT: não houve nenhuma mudança na lei sobre aborto. O que tivemos, sim, foi essa lei tremendamente deletéria a favor da esterilização, comemorada por Bolsonaro como um grande feito. Ele continua o mesmo positivista neomalthusiano de sempre, um antinatalista. Simplesmente agarrou uma bandeira conservadora e fingiu ser cristão, mas efetivamente não tem feito nada além de dividir a nação, conspurcar a presidência e a imagem exterior do Brasil, e principalmente, e é o que vejo de mais grave, comprometer seriamente o futuro das pautas pró-vida e pró-família no Brasil e do movimento conservador de forma geral.
O abuso eleitoreiro da religião tomou proporções impressionantes sob Bolsonaro. Tem levado católicos a odiar o Papa e atacar os bispos: uma tragédia. O bolsonarismo tem-se tornado mais uma das “religiões políticas” denunciadas por Voegelin. Vimos o ultraje realizado em Aparecida esse ano. Temos visto as destruições de imagens e a invasão de igrejas católicas. Com Bolsonaro o que vemos é o recrudescimento do ódio protestante contra a Igreja. Bolsonaro é um símbolo dessa onda de ódio ao Papa e à Igreja. Apesar disso, eleitoralmente Bolsonaro se diz católico. Mas já não sabíamos que Bolsonaro, dizendo-se católico, sacrilegamente se fez “batizar novamente” pelo presidente do PSC, o pastor Everaldo, no rio Jordão? É claro que um ato sacrílego dessa gravidade significa a apostasia e a excomunhão latae sententiae, conforme o Código de Direito Canônico. Nem vou mencionar aqui os múltiplos “casamentos” e o fato de que Bolsonaro levou para o Palácio do Planalto uma concubina que se faz passar por primeira-dama.
O que efetivamente Bolsonaro tem promovido é uma protestantização do Brasil, até na mente de muitos católicos que têm posto o “Messias” acima do Papa e dos bispos. Vemos até padres se meterem em política para defender Bolsonaro, traindo a própria vocação sacerdotal para virarem militantes políticos… Não nos enganemos: quanto mais poder Silas Malafaia e quejandos obtiverem, mais ameaçada está a liberdade dos católicos no Brasil. Foi a bancada evangélica que tentou impedir a aprovação do Acordo Brasil-Santa Sé, de 2008, firmado por Bento XVI e Lula. A meta deles inclui retirar a posição oficial de Nossa Senhora Aparecida como Rainha e Padroeira do Brasil e extinguir os feriados católicos.
Bolsonaro não cumpriu suas promessas nas questões mais graves da defesa da vida e da família, que foram seguramente os motivos que levaram muita gente honesta a apoiá-lo em 2018. Talvez você mesmo, e eu também. Sei que você não votou por interesses pessoais (muita gente se aproveitou e pensa que se aproveitará mais da anomia promovida por Bolsonaro), nem por ódio antipobre (que agora estamos vendo que de fato existia e existe…), mas por pensar que Bolsonaro seria um dique contra as pautas revolucionárias. Enganamo-nos e, quanto mais cedo o percebermos e remediarmos, melhor para o futuro do movimento conservador. Penso na geração, entre os 10 e 18 anos, que está sendo ensinada que Bolsonaro é um modelo de cristão e conservador. Essa geração será, motivadamente, a mais revolucionária do Brasil, porque, se Bolsonaro é um modelo de conservadorismo, o conservadorismo é algo incompetente, chulo e desumano. E nós passaremos 50 anos tentando mostrar que focinho de porco não é tomada.
Bolsonaro não é e não pode ser considerado um símbolo do conservadorismo brasileiro. Não é sequer um mal menor; é, provavelmente, o mal maior… Diante da tragédia que é Bolsonaro para as causas que mais amamos, o que fazer? Votar no PT parece demais, chegaria a doer. Minha posição atual é anular, para não compactuar com essa destruição do Brasil e do movimento conservador perpetrada pelo sequestro bolsonarista. Mas não descarto “alular” o voto, porque também estou convencido de que o melhor que nos pode acontecer, em curto, médio e longo prazo, é voltar para a oposição, fortalecer a formação cultural e intelectual, formar quadros e não perder nosso futuro. Um Congresso conservador mostrará mais serviço com Lula na presidência que com Bolsonaro. O compromisso com o Centrão limitou a atuação das bases conservadoras no Congresso a fim de proteger o governo e o presidente e sua família. Perdemos muitas chances que, sendo oposição, poderíamos aproveitar.
Lembremos que o Congresso na época de Dilma Rousseff, sob Eduardo Cunha, fez mais pelas pautas conservadoras que nesses quatro anos de Bolsonaro e Arthur Lira. Vai ser bom ser oposição novamente e conquistar não só o Estatuto do Nascituro, parado no Congresso todos esses anos, como muitas outras vitórias que Bolsonaro não permite avançarem. Temos que lembrar, por fim, que um governo Lula não será um governo do PT. É governo de uma frente ampla de perpassa todo o espectro político, incluindo Geraldo Alckmin e Henrique Meirelles, e que o próprio presidente já estará, pela idade e por tudo que passou nos últimos anos, muito cansado e fraco.
Esses quatro anos finais de Lula podem ser a clausura de uma era política no Brasil, mas não teremos esse final se Bolsonaro ficar mais quatro ano no poder, alimentando as utopias da esquerda em contraste com sua comprovada inépcia. Deixemos a esquerda governar esses quatro anos, com toda a oposição que sofrerá de dentro e de fora. Assim seremos nós a apontar um futuro melhor. Aliás, a falta de estratégia política dos conservadores é notável e triste: em 2004 a esquerda soube distanciar-se de Lula, criar o PSOL e outros partidos, e fazer oposição de esquerda ao governo do PT. Não tivemos isso na direita conservadora, que se abraçou a Bolsonaro apesar de sua notória ineficácia, e por isso arrisca seu futuro, nas próximas décadas, indo para o fundo do poço junto com ele, quando for a hora, que sempre vem. Bolsonaro precisava de uma oposição de direita, de pressão que lhe cobrasse atitudes efetivas a favor das pautas que o elegeram e que ele ignorou durante seus quatro anos da presidência.
Em resumo, meu querido amigo: não acho que um governo Lula seja o fim do mundo para nós. Pelo contrário, vejo muito mais oportunidades para nossas causas num governo Lula, estando na oposição, que sendo situação com Bolsonaro. Não vejo a hora de voltar a fazer oposição ao PT. Talvez vote 13 por isso mesmo, como quem escolhe o adversário. Talvez vote nulo, se a perspectiva de apertar 13 for muito dura. Mas certamente não vou contribuir com Bolsonaro e os prejuízos que traz para a união nacional (é um presidente que se comporta como chefe de partido e hostiliza as instituições que representa, ou seja, é um tirano, que do caos que promove tira benefícios políticos pessoais…) e para o próprio movimento conservador.
Imagino que você não seja daqueles que, por falta de formação doutrinal mais sólida (problema, aliás, tão generalizado…) tem escrúpulos de votar no Lula. Tenho visto tantos absurdos por aí, tantos abusos de consciência… Sabemos que seria um pecado votar no Lula por esperar com isso a legalização do aborto, por exemplo, como seria o mesmo pecado votar no Bolsonaro para comemorar sua militância pela laqueadura de trompas. Mas não se trata disso. Um católico pode votar no Lula apesar de (não por causa de) faltar um compromisso pró-vida mais explícito, como pode votar no Bolsonaro apesar de (não por causa de) o candidato defender pautas anticristãs como a esterilização humana, ou não ter compromisso com as gravíssimas pautas da doutrina social da Igreja em relação os deveres de justiça e solidariedade com os mais pobres. Não existe nenhuma obrigação moral em votar no Bolsonaro ou deixar de votar no Lula, e é triste vermos gente sendo enganada nesse sentido. De todo modo, com minha ajuda ou sem minha ajuda, espero em 2023 estar fazendo oposição ao PT: será o melhor para todos nós, tenho certeza.
Um forte abraço do seu amigo,
Tito Guedes Alcoforado (pseudônimo)
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