Fios do Tempo. A urbanidade religiosa à luz do novo urbanismo – por Rita de Cássia Gonçalo Alves

O Fios do Tempo está de volta após um pequeno recesso por causa das atividades internacionais do Ateliê de Humanidades ao longo do mês de outubro.

Recomeçamos hoje com o texto de Rita de Cássia Gonçalo Alves, autora de “Urbanidade gospel: megatemplos evangélicos na experiência urbana” (Ateliê de Humanidades Editorial, 2023), sobre a reconfiguração do urbanismo e as interseções atuais entre política e religião no espaço urbano.

O que seria o novo urbanismo? Qual o papel dos atores religiosos na construção da urbanidade? Por que é importante ter uma atenção, ao mesmo tempo compreensiva e crítica, para a formação dos “equipamentos multisserviços religiosos” nas cidades? Eis aqui algumas boas questões a refletir.

Desejo, como sempre, uma excelente leitura.

Fios do Tempo, 31 de outubro de 2023
A. M.



A urbanidade religiosa
à luz do novo urbanismo

Os princípios urbanistas são matérias que devem ser atualizadas frequentemente, acompanhando as conquistas civilizatórias. Não se pode abandonar as demandas não resolvidas da modernidade, pois uma sociedade só pode ser considerada “moderna” quando entende a modernização não como um estágio, mas como um processo de transformação. Uma sociedade é “moderna” quando se organiza tendo a mudança como núcleo, a fim de atender às necessidades do ser humano. Por exemplo, as questões ambientais e os desafios da redução das desigualdades e da inclusão social são temas essenciais à realidade atual. No Brasil, isso está promulgado pelo Estatuto das Cidades (Lei n. 10.257/2001) e é tributário de uma luta pela reforma urbana que se origina após 19601 no Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano – CNDU.

Pensar as cidades hoje implica em formulações complexas que necessitam ser pensadas em suas múltiplas instâncias e escalas – da economia à cultura, do social à política. Para tanto, precisamos reconhecer nossos problemas contemporâneos e desenhar uma agenda de melhorias às nossas cidades. O urbanista François Ascher defendia que o caminho seria formular o que ele chamou de “novo urbanismo” – um modo de planejar cidades adequado aos “desafios e às formas atuais de pensar e agir” das comunidades (ASCHER, 2010, p. 18), tendo em vista que as cidades são cada vez mais diversas e diferentes. O novo urbanismo reconhece que as comunidades possuem seus próprios modos de vida e formas de governança. O desafio urbanista é, então, identificar o papel das organizações da sociedade civil como facilitadoras desses modos de vida e governança, como agentes que envolvem as comunidades e as ajuda a articular suas aspirações. O novo urbanismo é uma espécie de mediador entre a singularidade da população e a legalidade estatal, tendo em vista a produção de um bem-estar social (SANDERCOCK, 1997).

É sabido que a revolução agrícola – com o surgimento dos complexos agroindustriais nos anos 1960-70, sobretudo nos solos de cerrado – aumentou a produção alimentar, porém expulsou do campo grandes quantidades de agricultores de maneira concomitante ao surgimento do capitalismo industrial. Esse duplo processo, conforme explica Ascher (2010, p. 25), provocou um “enorme crescimento demográfico nas cidades, acarretando um crescimento espacial acelerado e gerando, ao mesmo tempo, a pauperização de uma parte das populações urbanas”. É neste processo que a diferenciação social se inscreve de modo ainda mais perceptível no espaço: com o desenvolvimento dos transportes coletivos e os bondes, formaram-se bairros residenciais de alta renda e bairros industriais para fábricas e operários.

Neste processo, os poderes públicos foram levados a atuar de forma ativa, tanto no campo do urbanismo quanto no campo econômico-social, a fim de enfrentar as insuficiências, as incoerências e as disfunções das lógicas privadas. Estabeleceu-se uma exigência de materialização do Estado de bem-estar, que tenha equipamentos coletivos e serviços públicos com habilidades de permanência, de resistência e de readaptação, aptos a acolherem formas plurais de vida.

Com a redemocratização do país, surgiram múltiplos atores sociais vocalizando demandas das bases da pirâmide social. Como diz o ditado medieval, “o ar da cidade liberta”. Mas, em contrapartida, a cidade é um local de perigos. Sendo ambivalente, ela demanda proteções para os cidadãos. Importa perceber como os atores lidam politicamente com os problemas públicos, na medida em que as questões materiais envolvem noções de justiça e um discurso (público e moral) que transforma necessidades em direitos.

Nos últimos anos, deu-se importância à dimensão pessoal e social, recorrendo-se a organizações da sociedade civil (OSCs) para assegurar as prestações sociais. Por isso, as parcerias entre poderes públicos e privados multiplicaram-se. Para gerir os problemas sociais e a desigualdade crescente, um novo tipo de regulação foi esboçado: a “regulação de parceria” (ASCHER, 2010). Os atores, com lógicas diferenciadas, foram compelidos a elaborar gestões comuns, negociar compromissos duradouros e criar instituições coletivas.

A esse respeito, vale mencionar o marco regulatório da Lei 13.019/2014 (que trata dos instrumentos de parcerias entre a administração pública e as organizações da sociedade civil – OSCs) e o Decreto Federal 8.726/2016 ( que regulamenta a Lei 13.019/2014), ambos promulgados pela presidência de Dilma Rousseff. Essas leis dispõem sobre regras e procedimentos do regime jurídico que disciplina as parcerias entre a administração pública federal e as organizações da sociedade civil.

A matriz religiosa brasileira, composta em grande parte por católicos (52%), protestantes (31%) e religiões de matriz africana (6%) (IBGE, 2022), desenvolveu nos últimos 50 anos uma rede de confiança e de apoios mútuos entre seus fiéis, com ajudas em momentos de vulnerabilidade pessoal e social. Neste cenário, as instituições religiosas foram e continuam sendo centrais no reposicionamento dos problemas públicos. Educação, cuidado, atenção básica à criança, aos idosos e aos deficientes, combate à fome, assistência jurídica e psicossocial estão entre as ações mais praticadas pelas entidades religiosas no meio urbano.

Mais recentemente, algumas religiões se voltaram para a formação de espaços que funcionam como equipamentos urbanos de “multisserviço”. Isso reflete a opção política por serem centros de suporte às vulnerabilidades e de prestação de diversos serviços a usuários. Com isso, manifesta-se uma ambição em definir o que é uma “boa” cidade e em construir instituições que intervenham ativamente sobre a organização das cidades.

A fé é o principal valor do brasileiro, de acordo com o estudo “Religião, direito e secularismo no Brasil”, realizado pelo CEBRAP (2020). Ao apoiarem-se na fé, os brasileiros se acreditam capazes de seguir adiante, mesmo num contexto de esgarçamento social e de ausência do Estado. Por isso, as instituições religiosas detêm a confiança de uma grande parte dos brasileiros, pois promulgam uma fé associada à esperança. Elas diminuem o pessimismo e devolvem de alguma forma aos indivíduos um lugar no mundo e na cadeia das ações. Nessa esfera, as entidades religiosas têm atuado na construção de ideais de urbanidade nas cidades. Seguem pouquíssimos exemplos disso.

Alguns projetos com multisserviços e expressividade multissítio2
executados por organizações religiosas urbanas

Ilê Axé Oyà Omin (Pedra Furada) Ilê Tomim Kiosise Ayo (Cajazeiras) Sanzala de Nsumbu (Águas Claras) (SSA)Distribuição de cestas básicas; Distribuição de refeições; Alfabetização de jovens e adultos; práticas ancestrais de cuidado na saúde física e emocional; oficinas de corte e costura e bordados para geração de renda 4; aulas de toques ancestrais para qualificação musical na percussão afro-brasileira.
Lar da Esperança / Sinagoga Beit Lubavicth (RJ)Farmácia comunitária; convênios com hospital israelita Albert Sabin; centros especializados para aparelho auditivo, cirurgia de catarata e recuperação pós-cirúrgica; refeitório coletivo; assistência social para imigrantes; cestas básicas; tratamento ambulatorial; atividades sociais, grupos de oração, serviços comunitários  no Morro do Borel.
ÚNICA – União Umbandista Luz, Caridade e Amor (RJ)Atendimento Espiritual; Terapia Holística; Reiki; Barra de Access; Terapia Xamânica; Massoterapia; roda de Conversa “Sagrado Feminino”; Jiu-Jitsu; aulas de bateria e atabaque; aulas de inglês; Kit Enxoval distribuído anualmente mulheres grávidas em situação de vulnerabilidade; assistência jurídica; assistência odontológica; cestas básicas.
Primeira Igreja Batista de Curitiba (PR)Auxílio-emprego (doação de vale-transporte e busca de parcerias com empresas para empregabilidade de neurotípicos, neurodivergentes, surdos e deficientes físicos); auxílio hospitalar: formação de intérpretes para acompanharem surdos a hospitais, consultas ou exames; programações culturais para surdos e deficientes visuais; grupo de teatro, coreografia e pagode para surdos, deficientes físicos e deficientes visuais.
Elaborado pela autora (2023).

Bem-estar, seguridade, educação, esferas de justiça e práticas organizacionais próximas às demandas reais da sociedade são o que devemos aspirar em nossas cidades. No caso brasileiro, Estado e religião sempre atuaram diante de tais aspirações. Hoje, eles reconfiguram as suas relações diante dos atuais repertórios da cidadania. No entanto, precisamos reivindicar novas formas de discurso religioso que estejam mais conectados com a ação política democrática. As relações entre o religioso e político devem fazer parte de uma agenda cidadã, garantindo um diálogo possível entre diferentes posições, identidades e grupos no espaço público, a fim de fortalecer a vida associativa e os mediadores locais.

Quanto mais as pessoas se movem, mais se tornam possíveis as trocas entre elas, expandindo as bases sobre as quais as diferenciações e as afinidades podem se apoiar. Daí a importância de a administração pública olhar com atenção as ações promovidas pelas religiões na cidade, bem como promover a comunicação e circulação entre elas. Sobretudo porque o desafio para a democracia consiste em transformar as formas de solidariedade cotidianas entre os cidadãos em uma consciência de pertencimento a sistemas de interesse coletivo (ASCHER, 2010, p. 45).

Neste sentido, é preciso compreender o lugar dos equipamentos multisserviços religiosos nas cidades brasileiras e suas ações para a educação, a cultura, o lazer e o acolhimento. Esse reconhecimento da centralidade dos ideais e práticas de urbanidade religiosa no meio urbano deve estar articulado com uma crítica das tensões que muitos deles possuem com uma experiência cívica satisfatoriamente ampla, plural e democrática.

Torne-se sócio-apoiador do Ateliê Clube

Notas

1 Entre 1964 e 1978 as políticas urbanas na Administração Pública Federal criaram organismos que foram grandes marcos institucionais para a estruturação do desenvolvimento urbano no Brasil, como o BNH; IBGE; IPEA; Ministério do Planejamento e o CNDU.

2 O mesmo que mais de um bairro; ou além do bairro.

Referências

BRASIL. Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001. “Estatuto das Cidades”. Estabelece diretrizes gerais da política urbana. Recuperado em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LEIS_2001/L10257.htm

BRASIL. Lei nº 13.019, de 31 de julho de 2014. Regime jurídico das parcerias entre a administração pública e as organizações da sociedade civil. Recuperado em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l13019.htm

BRASIL. Decreto nº 8.726, de 27 de abril de 2016. Regulamenta a Lei nº 13.019, de 31 de julho de 2014. Recuperado em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Decreto/D8726.htm

CEBRAP. Religião, direito e secularismo: a reconfiguração do repertório cívico no Brasil Contemporâneo. MONTERO, Paula et al. (2022). Recuperado em: https://bv.fapesp.br/pt/auxilios/90587/religiao-direito-e-secularismo-a-reconfiguracao-do-repertorio-civico-no-brasil-contemporaneo/

GONÇALO, Rita. (2023) Urbanidade Gospel: megatemplos evangélicos na experiência urbana. Ateliê de Humanidades Editorial.

GONÇALO, Rita. Urbanidade Gospel: um perfil de planejamento. Pesquisa de pós-doutorado IPPUR-CNPq (2023).

IBGE. Indicadores (2022). Recuperado em: https://www.ibge.gov.br/indicadores.html

PIB Curitiba. Ministérios Eficiente. Nossa História. Recuperado em: https://pibcuritiba.org.br/especiais/.

LAR DA ESPERANÇA (Beit Lubavitch). Quem somos. Recuperado em: https://www.lardaesperanca.org.br/quem-somos

LUPA DO BEM. Centro Cultural UNICA: fé, cultura e arte se encontram no Rio de Janeiro. Recuperado em: https://lupadobem.com/centro-cultural-unica-fe-cultura-e-arte-se-encontram-no-rio-de-janeiro/

SANDERCOK, Leonie. Toward Cosmopolis: planning for multicultural cities. New Jersey (EUA): John Wiley & Sons, 1997.

RITA DE CÁSSIA GONÇALO ALVES é Doutora em Planejamento Urbano e Regional pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Autora do livro “Urbanidade gospel: megatemplos evangélicos na experiência urbana“. No Pós-Doutorado desenvolveu uma pesquisa sobre Religião e Cidade, com foco nos megatemplos evangélicos e suas interseções nos seguintes campos: planejamento de grandes projetos, gestão de cidades e modos de produção da experiência urbana. No âmbito profissional atua nas áreas de planejamento urbano feminista, desenvolvimento econômico e social. É Sócia-Proprietária do coliving Mulheridade Preta, no Rio de Janeiro.

Catálogo do Ateliê de Humanidades Editorial


Últimos posts

Deixe uma resposta

por Anders Noren

Acima ↑

%d blogueiros gostam disto: