Semana passada nos despedimos do antropólogo e filósofo francês Bruno Latour. Em sua homenagem, divulgamos o vídeo de nossa entrevista com ele realizada no dia 04 de novembro de 2020 (https://youtu.be/T-yCg0pu2Xk). Em “Os fios de um pensamento entrelaçado”, uma conversa feita no dia seguinte às eleições norte-americanas (que confrontaram Biden e Trump), tivemos uma longa conversa de 1 hora sobre os distintos fios que o pensamento de Latour teceu ao longo das décadas, discorrendo sobre ecologia, política, ciência, religião, linguagem, geopolítica e estética.
Prosseguindo com nossa homenagem, trazemos hoje, em parceira com a UBU Editora, a entrevista em formato escrito. Tendo sido adicionadas algumas notas de caráter informativo, cremos que o leitor tem aí um rico material para o estudo do pensamento de Bruno Latour em suas facetas e em seu conjunto.
A.M.
Fios do Tempo, 17 de outubro de 2022
Os fios de um pensamento entrelaçado:
Entrevista com Bruno Latour
Realizada por André Magnelli
em 04 de novembro de 2020
[André Magnelli – A. M.] Caro Bruno Latour, muito obrigado por ter aceitado fazer essa entrevista. Nós, do Ateliê de Humanidades, ficamos felizes com a oportunidade. Felizmente, a publicação de “Diante de Gaia” é um sucesso comercial no Brasil.[1] Contudo, como não há debate intelectual nem luta contra “inimigos” negacionistas só deixando belos livros nas prateleiras, achamos que sua entrevista será uma contribuição importante para a recepção de “Diante de Gaia” no Brasil. Não só no meio universitário, mas também no espaço público. Muito obrigado, sr. Latour, pela presença e oportunidade.
Vamos falar do livro “Diante de Gaia“, puxando alguns fios que se entrelaçam com sua obra, com seu trabalho anterior. O primeiro fio pode ser tecido a partir dos problemas da natureza, da ciência e da política. Depois, falaremos da religião, da guerra e da geopolítica.
Bom. Vamos começar com uma questão muito geral para situar o público. Desde “Jamais fomos modernos” (1991)[2] e, sobretudo, “Políticas da natureza” (1999)[3], as questões de ecologia política tomaram um lugar central, sendo associadas à sua crítica da concepção moderna da natureza e da ciência. Você poderia falar um pouco da maneira como essa questão emerge em seus trabalhos até o surgimento da questão do Antropoceno?
[Bruno Latour – B.L.] Sim, eu não cheguei a essas questões, como muitas pessoas, porque sou naturalista, ou interessado pelos seres da natureza. Não foi por aí que eu entrei. Não foi pelo gosto pelos passeios ou pela vida selvagem, ou o encontro com catástrofes ecológicas particularmente fortes. Eu entrei através dos estudos que fiz anteriormente sobre a prática científica. Eu estudei durante muitos anos, desde a vida em laboratório, os cientistas no trabalho e sendo… seguindo as controvérsias criadas pelas descobertas científicas, eu me deparei muito cedo, nos anos 1990, com os efeitos dessas pesquisas científicas sobre o debate público. Então foi realmente no momento em que fiz “Políticas da natureza” que percebi que havia, no conjunto de ações controversas, uma enorme parte dessas controvérsias que eram sobre questões que não são exatamente da natureza mas de objetos comuns, e meu trabalho, em particular, foi baseado num estudo sobre água e as políticas da água.
Foi a partir disso que percebi, puxando um fio, como você diz, que há água e por trás dela há a atmosfera e a terra etc. E nesse momento, descobri Gaia e os trabalhos de Lovelock[4], que levei muito tempo para absorver, pois são ideias novas. E há seis anos eu voltei ao campo das minhas origens, isto é, a Sociologia das Ciências, trabalhando com colegas cientistas das “zonas críticas”. São aqueles que chamamos de cientistas [savants] das zonas críticas.
Acabei de fazer uma exposição e um livro sobre esse novo terreno, de certa forma.[5] Então, minha linha de interesse é uma linha de Antropologia das Ciências. Por isso tenho uma visão meio diferente da ecologia política como é entendida pelos ativistas ou por naturalistas.
[A.M.] Como ponto de partida de “Diante de Gaia” você tem uma posição muito categórica em defesa dos fatos estabelecidos pelas “ciências frágeis”, como você diz, dos climatologistas e das ciências da terra. Alguns consideram sua posição como um distanciamento com mea culpa em relação às teses originais das Science and Technology Studies. Após a pós-verdade, você se retiraria diante do desastre que sua geração contribuiu ao gerar a relativização das ciências. Bom. Na minha opinião, esta não é a questão, pois suas formulações sobre a referência circulante e os processos sociotécnicos de tradução e de descrição ainda são os critérios para dizer por que os cientistas podem dizer coisas que os climato-céticos ou negacionistas do clima não podem. Gostaria de ouvi-lo sobre esse assunto. No que os “Science Studies” constituem uma boa “arma” para lutar contra o negacionismo galopante?
[B.L.] Você tem razão. Não tenho uma diferença entre o argumento que eu dava nos anos 1980 e nos que tenho agora. A Sociologia das Ciências nunca foi uma crítica da possibilidade da chegada em certas circunstâncias, com certos instrumentos num tipo de sociedade de fatos demonstrados e certificados. A questão do STS era saber como conseguir. Então, o argumento que diz: “Engraçado, Latour pensava que não havia fatos e agora acha que há” é totalmente absurdo e você tem razão em destacar. Acho apenas, de forma divertida, que cientistas que, às vezes, protestavam contra meu trabalho, há 40 anos, pois o viam como um ataque à atividade científica, hoje, como a ciência é atacada por forças bem superiores aos relativistas, isto é, a força dos negacionistas, eles dizem: “O que o sr. Latour e os Science Studies dizem pode ser uma ajuda para reforçar o trabalho e o grau de certeza e a confiança que as pessoas têm, que o público tem na ciência. E acho que temos um belo exemplo na pandemia de Covid-19, pois as pessoas se dão conta agora que é preciso ter muitas condições para produzir conhecimento, que alguns conhecimentos são muito assegurados, outros menos, mas todo esse trabalho coletivo de tatear é, ao mesmo tempo, produto de uma atividade científica que é muito social, controversa, etc., e, ao mesmo tempo, em certo número de pontos, não todos, chega a certezas locais, provisórias e revisáveis. Enfim, a ciência, como ela é feita, a ciência como eu sempre defendi, e, é claro, estudei.
Então, acho que nesse debate, claro que tem gente que se coloca atrás dos climato-céticos, mas não é mais uma questão científica, é uma questão que é claramente: “em que mundo você quer viver” e “não quero viver em seu mundo”. Seria a posição dos seus amigos brasileiros negacionistas do clima. Não é uma questão científica. Não adianta nada ir dizer que há muitos dados por trás desses fatos que são robustos e bem estabelecidos. Então não adianta lutar em nome da ciência, por razões religiosas ou ideológicas. Acho que sua posição é justa.
Os Science Studies (STS) ainda são para mim, tanto no período em que fomos acusados de criticar a ciência quanto no período em que éramos acusados de reforçá-la, o mesmo trabalho, o mesmo respeito pelas condições sociais, mediáticas, morais, financeiras da atividade científica. Então, o problema não está aí. Contudo, se interrompemos o trabalho científico, se suprimimos as subvenções dos pesquisadores, se reprimimos as descobertas deles, se proibimos os jornais deles, se os impedimos de se reunirem, então atacamos a capacidade dos cientistas de chegar a certezas. Isso está muito claro. Mas não é mais um problema político, não é mais um problema científico, é um problema de organização da pólis [cité] na qual vivemos.
[A.M.] Essa questão nos conduz a outra sobre a crítica e a sua relação com a crítica, com a Sociologia crítica. No Ateliê de Humanidades, nós temos um projeto chamado “Cartografias da Crítica”, que pensa nos fundamentos, nas potencialidades e nos limites da crítica no século XX. Nós compartilhamos com você a concepção de que há um mal-estar com o pensamento crítico que, ao cair na armadilha da hipercrítica e da hiperinflação das crises, tem certa responsabilidade com o clima intelectual de devastação geral hoje em dia. Mas se nos lembramos, com Reinhart Koselleck e os filósofos antigos (que você conhece muito bem) que a crítica é o processo e o ato de decisão diante da crise (a origem etimológica é essa), diante de uma demanda da práxis, me parece que ela seria uma atividade imprescindível do pensamento e da ação.
De certa maneira, se você me permite, “Diante de Gaia” é um trabalho de crítica e de diagnóstico do presente, e você fez até uma proposta não moderna das concepções de alienação e de emancipação. O que você acha da crítica e do papel dos intelectuais e dos cientistas nas sociedades contemporâneas?
[B.L.] Gosto muito da sua expressão de hiperinflação da crítica. É a isso que eu reajo em 2002 com artigo e que causou certo alvoroço, com o fato de que a crítica não tinha mais energia: “Por que a crítica perdeu a força?”.[6] E justamente por causa da questão dos climato-céticos, em 2002. Então, é evidente, se usarmos a definição de Koselleck, o trabalho crítico é sinônimo de trabalho intelectual. Não faz muito sentido negar isso. Mas eu reajo a uma questão, que hoje em dia se coloca com as eleições americanas, que é para que serve esse enorme investimento, essa hiperinflação de capacidade crítica se não podemos impedir que 60 milhões de americanos, talvez até mais (saberemos daqui a pouco), votem por Donald Trump, ou no Brasil, por que esse extraordinário fluxo da inteligência brasileira, de grandes intelectuais brasileiros e de humanidades, têm tão pouco efeito no curso da ação política. Eu reagi, perguntando: se a crítica tinha um sentido no século XX, quando era preciso reagir à hegemonia do cientificismo da versão moderna do progresso e do desenvolvimento, será que hoje em dia, no século XXI, ela tem um sentido? Apesar de ser a reconstituição, o remendo, como se diz, o reencontro de um senso comum não seria importante? Eu achei que havia um desencontro entre a distância que é tomada pela noção de crítica e a necessidade de comprometimento e de proximidade, o que chamamos de “proximidade crítica” e não distância crítica.
Então é claro que isso cria uma diferença e as tarefas e os valores do trabalho intelectual estão do lado da reconstrução, da volta da confiança e – isso é o ponto importante que há em Gaia – a redescoberta de algo que parece com um solo, uma ancoragem, apesar de a crítica estar muito associada a uma ideia de nomadismo, de distância, de movimento, de globalização, de saída (ao menos na Europa) do interior, do campo, do passado, etc. Mas eu resolvi o problema simplesmente com o trabalho que faço, o catálogo que faço chamado “Critical Zone” (2020)[7], zona crítica, pois me ajuda a transformar a palavra crítica não numa atitude e em distância, mas num lugar.
Desse ponto de vista, e sua reformulação da questão é exata, nós vivemos numa zona crítica. Então, a palavra crítica mudou de sentido. Não é mais a distância, é como conseguir se manter dentro dessa zona crítica que é muito pequena, que é Gaia, e é a única coisa que temos como experiência. Então essa é minha história com a crítica – e eu diria até exageradamente com a crítica da versão francesa e também com a americana –, dessa espécie de hiperinflação, como você falou, justamente, e da banalização do espírito crítico, e o que eu chamaria agora do seu reforço.
[A.M.] E do lado da atividade intelectual da teoria crítica, acho que a teoria crítica, que deve ser desenvolvida em sua opinião, será uma concepção de crítica “não humanista”.
[B.L.] Uma o quê?
[A.M.] Não-humanista. Pós-humanista ou… Uma concepção de crítica que faz a aliança entre humano e não humano. Uma concepção de críticas intelectuais, não… [pausa] sem estar em desarmonia com o senso comum e a concepção terrena dos humanos e não humanos. Essa crítica exige uma nova relação entre conhecimento e a potência de agir e uma nova aliança das humanidades com cientistas e senso comum? Por exemplo, ela demanda “humanidades científicas”, como você disse em “Cogitamus” ou uma humanidade ambiental, como dizem Jean Baptiste Fressoz e Christophe Bonneuil? É uma reconfiguração das próprias humanidades que é exigida?
[B.L.] Sim, você tem razão. É complicado para um grupo chamado Humanidade falar do fato que não seja humanidade. Nós usamos a palavra humanidade científica ou ambiental, e acho engraçado você citar “Cogitamus”, pois ninguém cita. Esse livro foi um fracasso completo, mesmo que eu goste dele. A ideia é muito simples, é dizer: a tradição que associamos à humanidade sempre foi de ligações entre os cosmos. Nunca fomos antropocêntricos, a humanidade nunca foi antropocêntrica na grande tradição humanista.
Foi simplesmente na versão da segunda parte do século XX em que a noção de humanidade foi reduzida. Ela foi reduzida, se tornou muito mais antropocêntrica e limitada, não a quaisquer humanos, mas a humanos da sociedade industrial em situação de privilégio e saque do resto do planeta. Então, quando se diz “sair do humanismo” significa ter outros modelos além do único modelo industrial… humano do século XX industrializado que só cuida dele mesmo.
Acho que todo mundo compartilha essa dúvida sobre a humanidade. Agora, a pergunta difícil é: qual é a nova figura do humano, a partir do momento em que acrescentamos o conjunto de relações que lhe permite existir? Há realmente uma mutação nisso. Acabei de terminar, hoje mesmo, um livro sobre essa questão[8] da metamorfose do humano submetido ao confinamento, pois é isso que me interessa no momento: desconfinar. E vocês também, imagino. E esse humano confinado deve sofrer inúmeras metamorfoses. E nisso, um humano com vírus, por exemplo, um humano com máscara, um humano que deixa CO2 atrás, um humano que deve se preocupar com sua comida, etc., é um humano que parece um pouco ao humano da grande tradição humanista, mas muito diferente do humano do século XX.
Desse ponto de vista há um debate, um combate entre o que chamo de humanos com os terrestres. E você tem razão em lembrar que a distinção que, novamente, faz um deslocamento em relação à antiga noção de crítica, é que o terrestre tem um solo, pelo menos uma relação muito estreita com o senso comum. Mas falando da pergunta anterior, nós associamos a crítica a uma distância em relação ao senso comum. O senso comum era considerado como algo do qual sair. Mas agora, o senso comum e a definição do humano e da zona crítica se tornam muito importantes. Isabelle Stengers acabou de lançar um livro chamado “Restituer le sens commun” ou “Réactiver le sens commun”, que também vai nessa linha.[9] Então, o alinhamento das humanidades, do senso comum e da crítica não é mais o mesmo que aquele da segunda parte do século XX.
[A.M.] A pergunta nos conduz ao fio da linguagem. No rastro do esgotamento do paradigma da representação social, da análise do discurso, do pós-estruturalismo, você tem um papel importante com outros, como Luc Boltanski, Isabelle Stengers, na introdução da retórica, no sentido amplo e bom do termo “retórica”, no seio das ciências sociais, articulada à semiótica e ao pragmatismo em geral. Esse contexto, que entrelaça a ciência, a política e o direito, está presente nos trechos sobre a indissociabilidade entre fato e valor, descrição e compreensão, de jure e de fato em “Diante de Gaia” e em outros livros. Qual é a importância da retórica e da semiótica para entender como a ciência é feita entrelaçando política e democracia, e como o mundo só pode ser entendido através de uma ontologia plural e experimental?
[B.L.] É uma pergunta bem ampla. Sobre retórica… Não tenho certeza de usar a palavra retórica, mas semiótica, sim, simplesmente porque os defeitos da palavra, da língua e os efeitos da ontologia, usando uma expressão meio pedante, estão ligados. A primeira coisa que fiz foi minha tese que se chamou: “Exegese e ontologia”.[10] Já era exegese e semiótica, pois, para mim, é o mesmo trabalho, quer dizer, o sentido e a realidade são duas vezes a mesma questão. Não sei se interessaria a seus ouvintes, pois é uma questão realmente metafísica. Na prática, significa que não podemos fazer um trabalho de ciências sociais, pois é disso que você falou, sem se interessar pelo texto, pela maneira como o texto é redigido, o que Donna Haraway diz, de forma bastante extravagante mas eficaz, com a noção de “narração especulativa”, isto é, é só pela especulação que as ciências chegam a certezas; e as ciências sociais não podem chegar a esse nível de precisão, de invenção, de originalidade se também não estiverem atentas aos efeitos dos sentidos produzidos pela forma como ela conta suas histórias. E história não é negativo, não é o equivalente a falsidade. As histórias são as coisas mais difíceis que há e as que captam de forma mais direta a realidade das quais falam.
Então isso não é bem uma escola, é uma tradição que é das humanidades, e não se pode distinguir as ciências sociais da capacidade de sentir a textualidade, sentir a realidade do procedimento do sentido, já que produzir sentido é sempre estar ligado a uma enunciação, à forma como se fala, à reação das pessoas com que se fala, etc. Eu não inventei nada, simplesmente me interessei de forma bem obstinada pela semiótica desde minha primeira tese até “Diante de Gaia”, cujos dois primeiros capítulos são sobre isso.
E continuei a falar de Gaia pelo teatro, em conferências, espetáculos, com exposições, pelas mesmas razões. Quer dizer, toda vez, a forma de exposição, do teatro, a forma livre oferece outras apreensões de um fenômeno que nos escaparia sem isso. Mas também é verdade para um cientista que construiria uma experiência de laboratório elaborando experiências espetaculares, etc. Isso é muito comum na prática. Estamos em plena humanidade, na própria definição de humanidade. E isso não distingue as ciências das humanidades. É a forma como as humanidades ou as exegeses, no sentido amplo, entendem as ciências exatas.
[A.M.] Vamos passar a outro fio da sua obra, o da religião, que é central em “Diante de Gaia”. Em “Políticas da Natureza”, você já tinha mencionado, brevemente, que era preciso secularizar a concepção da natureza. Contudo, foi em “Diante de Gaia”– e nas “Gifford Lectures”, claro – que você fez uma história que restitui a construção de uma teologia política da natureza na modernidade. Somos aqui confrontados a uma interpretação impressionante, tendo diálogos com autores como Eric Voegelin, Stephen Toulmin, Peter Sloterdijk, etc.
Me parece que há dois objetivos combinados em “Diante de Gaia”. Por um lado, mostrar como o modernismo perdeu a materialidade do mundo com a imanentização do transcendente, com o movimento gnóstico cristão após Joachim de Flore. Por outro lado, encontrar a concepção original do apocalipse, contra a degeneração gnóstica. Um apocalipse associado à lógica da encarnação, da geração e da mediação, associado ao problema do “fim do tempo no tempo que passa”. Toda essa elaboração é encarregada de revitalizar a religião como “relegere”, como cuidado, como não negligência, como disse Michel Serres, um cuidado do qual a diplomacia se encarrega. Você poderia nos falar do lugar da teologia política e da religião em suas reflexões recentes, mostrando como ela se liga ao fio dos estudos anteriores sobre a enunciação religiosa, em “Júbilo”, por exemplo?
[B.L.] É uma bela pergunta, que você preparou com muita atenção e eu agradeço. As perguntas são muito boas. Minha entrada nesse assunto, ao contrário dos colegas franceses das ciências sociais, é que a religião é um veneno, digamos, que deve ser utilizado em pequenas doses. Mas se não sabemos de onde vem esse veneno, que é capaz de fazer coisas maravilhosas, torna-se uma catástrofe. Então, minha solução sempre foi dizer que sobre as questões religiosas é preciso ser religioso, para entender de onde vêm. Depois, graças ao fato de ser uma tradição milenar, pode-se compensar o perigo.
Aliás, eu descobri o livro que devia ter lido, mas não conhecia, de Ivan Illich, que se chama em francês “La Corruption du Meilleur Engendre le Pire“, que é um livro totalmente surpreendente de entrevistas no final da vida dele.[11] E é exatamente o que ele diz. No Brasil nós temos um exemplo evidentemente trágico com o Pentecostalismo, com as extensões da religião na teologia política, como também há na América. A perversão do melhor leva ao pior. É uma maneira de dizer: para evitar o pior é preciso se interessar pela origem de todos esses temas. Foi por isso que fiquei muito entusiasmado, pois desde sempre tive um interesse acerca do cristianismo, de ler Eric Voegelin, que introduz essa noção de imanentização que é, no fundo, uma das definições do modernismo e, provavelmente, a mais precisa do modernismo, isto é, o modernismo é a laicização do ideal escatológico, mais precisamente é a sua corrupção. Pois esse ideal escatológico, em vez de ser o que não se pode ser realizado na Terra, finge-se realizar na Terra. Então há essa espécie de amálgama de teologia e política, vou dizer de forma vulgar, a manteiga e o sorriso da manteigueira. Tem-se, ao mesmo tempo, os prazeres terrestres da realização material, e os ideais do Céu, no sentido de “Heaven“. Ao mesmo tempo em que se tem acesso ao mundo. Acho que, fundamentalmente, não há outra fonte [maior] da dominação material, dos extratores, dos que estão saqueando o planeta, do que essa mistura entre teologia e política.
É uma perversão da religião, mas também, não devemos esquecer, é uma perversão da política. Pois perde-se a capacidade de cuidar da situação, que é a própria definição da política, e prestar atenção ao sentido que você disse, isto é, que a religião é o contrário da negligência, que é a característica da religião (isso é Michel Serres).[12] Esse amálgama desse termo meio estranho, mas que é muito justo, o de “imanentização”, ou, como diz Illich, “a corrupção do melhor leva ao pior”, me interessou muito. E agora isso toma dimensões trágicas no Brasil e na América.
Meu amigo Eduardo Viveiros de Castro vai ainda mais longe, pois ele vai mais atrás, antes do período cristão até a teoria da origem da Era Axial, que é uma espécie de fantasia dos filósofos que não é só, como ele pensa com Déborah Danowski (com quem ele dá um curso), que não é só o fim do modernismo a que assistimos, é o fim da Era Axial, isto é, essas más ideias da transcendência que levaram povos inteiros, como a América neste momento, o Brasil e muitos outros, para fora do solo.
Não se pode estudar essas questões sem se interessar pelas religiões, sem sentir a importância do religioso. Algo que resta um anátema na França, com os colegas de ciências sociais que, nas questões religiosas, estão no nível de Voltaire. Não, é injusto com Voltaire, digamos que no nível dos anti-eclesiásticos do final do século XIX.
[A.M.] A concepção de um retorno ao terrestre é uma retradução da questão da encarnação?
[B.L.] É, enfim… O tema da encarnação, que foi retrabalhado no importante texto do Papa Francisco, com seus inúmeros problemas teológicos, pois claro que é difícil para um Papa, que sempre mostrou interesse em olhar para cima, olhar para baixo. Então há muitos problemas de orações, de metáforas, de reflexos que são muito difíceis. Na semana passada em Roma, em igrejas barrocas, e há muitas no Brasil também, com magníficos céus, com Santas Virgens voando, etc… Então, a ideia de dizer: “parem, voltem para a Terra, lembrem que o tema é da encarnação e não do voo”, é um grande problema.
Primeiro, e trabalho muito isso com meus amigos católicos na França, é uma fonte de renovação muito considerável da teologia, mas também, do ponto de vista político, ativista, digamos, a possibilidade de se aliar com ativistas “mais ecológicos”, no sentido laico do termo, e os milhões de cristãos. Falo dos cristãos, não aqueles que querem o contrário, voar ao Céu, mas os que voltam para a Terra.
Então há uma questão em termos de energia dos homens políticos que é muito importante. Eu trabalho nisso com Eduardo e Deborah pois é um tema que os interessa muito também.
[A.M.] Você terminou “Diante de Gaia” com a encíclica do Papa Francisco [Laudato Si]. E da encíclica Fratelli Tutti, você tem alguma opinião, o que pensa sobre ela?
[B.L.] Eu gosto muito. De qual está falando? Da Laudato Si?
[A.M.] É, da Laudato Si. Claro.
[B.L.] Pois havia outra.
[A.M.] Sim, claro.
[B.L.] A Laudato Si é muito importante…
[A.M.] [Interrompo Latour] Tanto a Laudato Si, quanto a Fratelli Tutti. Qual é sua opinião sobre elas?
[B.L.] Não trabalhei diretamente nelas. Eu as conheço, mas não sei. Mas fiquei muito interessado pelo momento do Vaticano sobre a Amazônia, sobre a celebração e o texto sobre a Amazônia, claro. Mas vemos que, do ponto de vista das reações que isso suscitou na França e na América, e não sei como foi no Brasil, foi uma reação muito forte. Mas acho que não só o Papa deve fazer esse trabalho, mas todas as pessoas interessadas na questão religiosa. É um trabalho muito difícil pois é preciso reassociar a questão religiosa com a descida da reencarnação e não com o voo.
Ao mesmo tempo, é preciso entender o que aconteceu no período no qual nós interpretamos a questão da salvação e do julgamento, a questão escatológica. Ela foi transportada por erro, por figura [metafórica], na época, ao Céu, no sentido de Heaven [Paraíso]. Então isso exige um trabalho, e em minha experiência na França isso está bem no comecinho para os cristãos, os católicos, os protestantes, padres que eu conheço, no comecinho da sensibilização. Ainda temos a ideia de que a religião cuida dos humanos, da alma dos humanos e do futuro. Ainda estamos no século XIX. Em todo caso, na França. Então, se o Papa é tão detestado, isso é por bons motivos, pois ele aponta para uma direção espiritual e teológica, prática e ativista, que não agrada a 99% dos católicos, com certeza. Por isso é um personagem profético. Para mim, ele é como Greta Thunberg. São duas figuras proféticas.
[A.M.] Vamos passar a outro fio, que é o da guerra e da paz. O problema da relação entre guerra e paz é outro fio condutor do seu trabalho. Em seus estudos em laboratório[13], você põe em jogo a relação de guerra e paz nas associações entre os humanos e os não humanos. Na sua reconstituição da relação entre ciência e política[14], você mostra como a Filosofia declarou guerra à multidão colocando-a na caverna, com Platão, Sócrates. Em “Jamais Fomos Modernos”, você diz que a Constituição moderna surgiu de um dispositivo científico-político tratando da guerra civil, e “Diante de Gaia” fala dessa questão. Em “Políticas da Natureza” você supõe que não há associação sem inimigo. É a questão schmittiana[15] que também volta em “Diante de Gaia”. Há um tema recorrente, mas em “Diante de Gaia” me parece que sua reflexão toma um caráter mais dramático, mais trágico e mais perigoso, com Carl Schmitt, quando você supõe de uma vez por todas que estamos em guerra e devemos declarar nosso inimigo e nos colocar em defesa em nossos “territórios de vida”, do terreno, do solo, do Lebensraum. É reconhecer, penso, que estamos em guerra para podermos construir uma paz possível. Esse é o lema de “Diante de Gaia”.
No fim das contas, você ainda é um pensador da paz e da diplomacia, onde a política é um processo de composição de um mundo possível, ou do melhor mundo possível. E desse jeito, como a guerra entra nesse pensamento de paz? Será numa dimensão mais ontológica ou estratégica? Como a questão da guerra é desenvolvida em seu pensamento? Tanto hoje como no passado?
[B.L.] Você leu todos esses livros? É impressionante. Não estou acostumado a ter perguntas de quem leu meus livros. Na França, ninguém lê meus livros, então são sempre perguntas simples demais ou bobas. Mas você faz perguntas complicadas e instruídas.
Minha entrada no assunto, confesso que é muito schmittiana, isto é, a distinção entre o mau inimigo, que deve ser eliminado, e o verdadeiro inimigo, que é suficientemente… que ataca sua definição de você mesmo a ponto de você não saber mais quem vai ganhar ou quem vai perder. Então, tenho isso em mente desde sempre, de certa forma. Fiquei surpreso quando abordei a situação ecológica, que foi sua primeira pergunta, pois continuavam a transportar às questões ecológicas uma versão muito simplista do acordo, isto é, desde que se interessava pelas questões da natureza, devia-se convergir, necessariamente. E foi exatamente o contrário, evidentemente. E minha visão é cada vez mais trágica, pois não imaginei, quando escrevi “Políticas da natureza“, que estaríamos no nível da política de Trump ou de Bolsonaro, claro. É o mesmo argumento, mas cada vez mais trágico conforme a situação fica tensa.
Mas está claro que, na situação em que estamos, ninguém mais imagina que as questões sobre a natureza vão unificar. As questões da natureza desunem. E nessa desunião, você disse de forma excelente, ou dizem: “Sim, vamos dar um jeito e vamos fazer acordos, nos reunir e concordar em salvar a floresta amazônica ou as geleiras ou a temperatura da atmosfera terrestre, etc.”, negando, escondendo o fato de que a situação é muito mais tensa, ou dizem: “sim, é um estado de guerra”, a guerra que o pensamento decolonial estuda há muito tempo; isto é, e o Brasil conhece perfeitamente em sua história e seu presente, o fato de que os Estados não estão apenas em relações de diplomacia clássica em Estado-Nação, mas em situação de guerra.
Então, agora essa situação de guerra é muito mais complicada de entender, pois ela atravessa todos os Estados, incluindo Brasil, França, EUA. Então, meu argumento é dizer: se vocês querem imaginar uma situação de paz, é preciso declarar a situação de guerra. Não adianta dizer que vão se entender nas questões ecológicas. E sou tão sensível que ao reler as questões sobre Sociologia das Ciências há uma tendência dos meios ecológicos, no sentido científico, de dizer que, já que se sabe cientificamente que é assim, que a Terra está ameaçada pelo CO2, etc., vamos nos entender. É uma versão pedagógica, uma versão cientificista da política. E sei que isso não vai funcionar, pois não é porque os bolsonaristas e os trumpistas não têm conhecimentos, é porque eles decidiram fazer a guerra contra os que contestam isso. Então, a declaração de guerra, sei lá, como a decisão de Trump de sair do Acordo de Paris, pois os franceses os invadiram como nós invadimos os países do Sul etc., esclarece as coisas.
Só que, e é a segunda parte do problema, há os campos. Não é um assunto em que se faz campos. Pois esses assuntos de guerra que dizem respeito ao mundo em que vivemos, nos atravessam. Então não podemos nos organizar, como se podia fazer antes, entre socialistas e capitalistas, por exemplo. Proletários e capitalistas, esse grande palco que as políticas organizavam e atravessavam todas as nações. É uma guerra, cujos campos são muito complicados e todos nós somos atravessados pelos resultados. Então é difícil organizar essa guerra, situá-la como uma guerra clássica. É uma guerra no sentido de Schmitt, quase uma guerra de partidários. Nunca se sabe onde estão os amigos e os inimigos. E isso exige um cuidado para decidir quem é contra e quem é a favor. Inclusive, vemos que no Brasil e na América o erro deve vir dos dois lados, na designação de quem é meu amigo e quem é meu inimigo, criando conflitos impossíveis a resolver e essa grande brutalização da política que estamos vivendo, em que passamos do inimigo no sentido schmittiano ao inimigo no sentido de barata a esmagar, fazer sumir, que é o contrário do inimigo.
Estamos numa situação trágica, pois dá a impressão de que há inimigos em todo lugar. E não conseguimos saber a quais podemos nos aliar. É por isso que o meu trabalho desde “Diante de Gaia”, e que é o tema do livro “Onde Aterrar?”[16] e do que acabei de escrever [“Onde estou?”], é dizer que devemos definir qual é o solo no qual a guerra acontece. Saímos do problema de guerra e paz e começamos a definir quais são os amigos e os inimigos quando definimos o mundo material ao qual pertencemos. Em outras palavras, para ter amigos e inimigos é preciso primeiramente ter uma terra, para poder ver um pouco quem é quem. E se você não sabe onde mora, e do que depende, não pode definir seus amigos e seus inimigos.
[A.M.] É um pouco o indicado no último capítulo de Diante de Gaia e desenvolvido mais depois. E a questão não é estatal, é mais de associação entre humano e não humano. A questão da guerra é desestatizada em seu pensamento sobre a guerra. Os territórios não são territórios do Estado-Nação, mas territórios de grupos e associações que são, ao mesmo tempo, locais e mundiais.
[B.L.] É, você tem razão. Quantas perguntas ainda temos, André? Só para saber.
[A.M.] Só a questão política e geopolítica. É a última pergunta. A próxima é a última…
[B.L.] Você tem razão. Vou só responder. Não são territórios no sentido de Estado-Nação. O Estado-Nação é organizado… Mais uma vez, como Schmitt, eu tento avançar além desse texto extraordinário. Os Estados-Nacionais organizaram um sistema de ocupação de territórios, de tomada de territórios externos e de definição de paz e guerra num certo espaço internacional, mas hoje não vemos mais isso, pois é muito mais complicado, pois não sabemos onde é o território. É o argumento de “Onde Aterrar?”. É preciso reconstituir os territórios. E só se conseguirmos reconstituir os territórios que, ao mesmo tempo, são inseridos nos Estados-Nações e distintos dos Estados-Nações, que poderemos definir algo como os campos, as zonas, os frontes. Mas se não temos territórios, não dá para ter política. E os Estados-Nacionais não são boas formas de definir os territórios em guerra. Então, a linda briga do ano passado entre Bolsonaro e Macron sobre os incêndios da Amazônia ligando a soja e as vacas francesas é um caso típico. Há a possibilidade de acordo mas, ao mesmo tempo, vemos que no território em que se faz o acordo entre vacas, soja, floresta, Amazônia, França e Brasil não há ferramentas de relações internacionais para tratá-lo.
[A.M.] A última pergunta é sobre a política, o problema político por excelência, que é “o que fazer”? Será inevitável falar disso sem lembrar que fazemos esta entrevista no dia seguinte às eleições americanas.[17]“Onde Aterrar?” foi escrito com o impacto das eleições de Trump. Nas últimas conferências de “Diante de Gaia”, assim como em “Onde Aterrar?”, você aborda questões políticas. Acho que a chave é o reconhecimento de que a questão social não pode ser mais desconectada da questão climática, no sentido amplo do clima, e vice-versa. Os conflitos na era do Antropoceno, que é a época geo-histórica, são conflitos, e serão cada vez mais, geossociais e geopolíticos, como você disse. Acho que isso exige uma nova estética, como você disse no início de “Diante de Gaia”, e novas instituições. Nós estamos insensíveis aos alertas. Nós precisamos de uma nova estética, de uma ressensibilização. E de novas instituições.
Na dimensão estética você fala da “responsabilidade”, de Donna Haraway, e da necessidade de uma atividade de geo-trançamento, um esforço para descrever de forma exaustiva os terrenos da vida. E na dimensão institucional, você fala da questão do Théâtre des Amandiers[18], da recomposição política. Latour, poderíamos terminar com sua resposta a esses dois pontos? [Enquanto eu perguntava, Latour havia se levantado e se dirigido à sua estante de livros…]
[B.L.] Primeiro, uma reflexão… Vou responder, mas…[retornando]… sobre a ressensibilização terrestre para a geo-história e também para a questão das instituições que poderão servir de mediadoras.
[Latour voltou com um livro para mostrá-lo na tela]
[A.M.] Qual é o livro?
[B.L.] “Critical Zones”.[19]
[A.M.] Perfeito.
[B.L.] Não é a Bíblia, mas responde a suas perguntas.
[A.M.] Certo.
[B.L.] Coloquei o livro na exposição sobre as zonas críticas, pois é meu livro mais bonito e eu tentei responder exatamente à sua pergunta, isto é, qual é a interseção entre a estética, a ciência, a política, para poder redefinir o terrestre. Pois quando falamos do terrestre, falamos de um objeto, Gaia, que não pode ser recortado da mesma forma que a esfera dos Estados tradicionais. Tradicionais, quer dizer, da época moderna. Então, é por isso que temos tantas dificuldades em definir os campos políticos e por que aqueles que estão, no momento, brigando nos EUA, entre republicanos e democratas, são tão mal concebidos. São agregações de ficção completa do que é um território. Com oposições sobre máscaras que não têm nenhuma espécie de sentido prático. Então há um verdadeiro problema.
Há 9 bilhões de pessoas tentando definir em que Terra elas moram. É uma questão muito simples. E, ainda por cima, devem se desfazer do recorte que foi feito no “hemisfério” durante o período das grandes descobertas. É um termo que não é mais usado, mas o foi na minha juventude, a fim de definir a grade sobre a Terra. Terra, planeta. Mas se pensamos em Terra, Gaia, ninguém sabe exatamente como se delineiam as associações. Está claro. O caso de antes é um bom exemplo. Então, estamos numa situação em que a estética, no sentido amplo do termo, isto é, a capacidade de dar sensibilidade à situação, tem um papel vital. Eu trabalho muito com artistas.
Na próxima semana vou abrir uma exposição, à distância, em Taiwan, sobre a questão da formulação exata do que você diz. A exposição se chama “Vous et Moi n’habitons pas sur la Même Planète” [Você e eu não habitamos o mesmo planeta]. É uma maneira bem clara de dizer que não sabemos onde estamos e não sabemos qual é a possibilidade de fazer diplomacia com seres e planetas tão distantes uns dos outros.
O que é fazer diplomacia entre planetas se antes pensávamos fazer diplomacia entre Nações? É isso. É um problema de redefinição das fronteiras, mas também uma redefinição dos alvos, dos terrenos nos quais se pratica a vida política. Então nós percebemos que não fomos ajudados pelo século XX, temos que reformular totalmente o que é o direito, o que é um solo, qual a atitude em relação ao não humano. E ninguém tem uma solução. Há muitas iniciativas de pavor e de pesquisas científicas e artísticas, militantes em todos os países do mundo, mas não temos uma cena pública internacional que corresponda a esses esforços. Em cada nação, há muitas iniciativas que criticam a relação internacional, mas não há o equivalente ao que foram as relações internacionais no século XX, por causa das duas guerras mundiais e dos inúmeros conflitos locais. O século XXI, que vai trabalhar a questão do clima, talvez também trabalhe – e tenho medo de dizer – inúmeras situações de guerra. E é algo assustador a considerar.
Em todo caso, hoje é um dia em que não dá para sermos otimistas. Pois é o dia do impossível… Não sei se será hoje, não sei se teremos o resultado das eleições [norte-americanas, cujo resultado não havia saído ainda]. Em todo caso, seja qual for o resultado, mostra a gravidade da nossa incapacidade de definir os campos que estão disputando.
É isso. Muito obrigado, sr. Magnelli.
[A.M.] Muito obrigado.
[B.L.] Suas perguntas foram muito precisas e é agradável ser entrevistado por alguém que leu as coisas e eu perdi esse hábito. Prova a qualidade da inteligência brasileira, que é muito grande. Mas eu já sabia, pois tenho uma relação com o Brasil desde minha infância.
Notas
[1] Latour, Bruno (2015) Face à Gaïa: Huit conférences sur le nouveau régime climatique. Paris: La Découverte. Em português: Latour, Bruno (2020) Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza no Antropoceno. São Paulo: UBU / Rio de Janeiro: Ateliê de Humanidades Editorial. Tradução de Maryalua Meyer, revisão técnica de André Magnelli.
[2] Latour, Bruno (1991) Nous n’avons jamais été modernes. Essai d’anthropologie symétrique. Paris, La Découverte Em português: Latour, Bruno (2013) Jamais fomos modernos. São Paulo: Editora 34.
[3] Latour, Bruno (1994) Politiques de la nature. Comment faire entrer les sciences en démocratie. Paris: La Découverte. Em português: Latour, Bruno (2019) Políticas da natureza: como associar a ciência à democracia. São Paulo: Editora UNESP. Publicado anteriormente em português como: (2004) Políticas da natureza: como fazer ciência na democracia. Bauru, SP: EDUSC.
[4] Latour se refere a James Lovelock (1919-2022), autor da hipótese de Gaia, elaborada no célebre livro “Gaia: um novo olhar sobre a vida na Terra”, de 1979.
[5] Latour se refere a: Latour, Bruno; Weibel, Peter (orgs.) (2020) Critical Zones: The Science and Politics of Landing on Earth. Cambridge, Massachusetts: MIT Press. Ele tratará dele com mais detalhes na resposta à última pergunta desta entrevista.
[6] Latour, Bruno (2004) Why Has Critique Run out of Steam? From Matters of Fact to Matters of Concern, Critical Inquiry, v. 30, n. 2, p. 225-248. Em português: Latour, Bruno (2020) Por que a crítica perdeu a força? De questões de fato a questões de interesse. O que nos faz pensar, [S.l.], v. 29, n. 46, p. 173-204, july.
[7] Ver acima, nota 5, bem como a resposta à última pergunta.
[8] Latour está se referindo ao livro: Latour, Bruno (2021) Où suis-je ?: Leçons du confinement à l’usage des terrestres. Paris: La Découverte. Em português: Latour, Bruno (2021) Onde estou? Lições do confinamento para uso dos terrestres. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo.
[9] Latour se refere ao: Stengers, Isabelle (2020) Réactiver le sens commun. Lecture de Whitehead en temps de débâcle. Paris: La Découverte/Les Empêcheurs de tourner en rond.
[10] Latour está falando de sua tese de doutorado: Latour, Bruno (1975) Exégèse et ontologie: a propos de la ressurection. Sous la direction de Claude Bruaire.
[11] Illich, Ivan (2007) La corruption du meilleur engendre le pire, entretiens avec David Cayley. Paris: Actes Sud.
[12] A tese da religião como o contrário de negligência, como relegere, é exposta por Michel Serres em: Serres, Michel (1990) O contrato natural. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
[13] Entre outros, refiro-me sobretudo a: Latour, Bruno (1984) Les Microbes. Guerre et paix, suivi de Irréductions. Paris: Métailié. Em português:
[14] Refiro-me a: Latour, Bruno Pandora’s (1999) Hope: An Essay on the Reality of Science Studies. Cambridge, Mass.: Harvard University Press. Em português: Latour, Bruno (2017) A esperança de Pandora: Ensaios sobre a realidade dos estudos científicos. São Paulo: Editora UNESP.
[15] Isto é, de Carl Schmitt e seus discípulos.
[16] Latour, Bruno (2017) Où atterrir ?: Comment s’orienter en politique. Paris: La Découverte. Latour, Bruno (2020) Onde aterrar? Como se orientar politicamente no Antropoceno. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo.
[17] A entrevista foi feita às 10-11h da manhã no Brasil, no dia seguinte às votações das eleições presidenciais norte-americanas. No momento em que conversávamos, a contagem dos votos ainda estava em curso sem que fosse possível saber quem ganharia, Trump ou Biden.
[18] Refiro-me à simulação teatral feita com estudantes que foi relatada por Latour no capítulo final de Diante de Gaia.
[19] Livro já referido anteriormente. Ver nota 5.
Deixe uma resposta