Alguns acontecimentos recentes parecem indicar certa perda de base social do governo Bolsonaro entre os grupos econômicos e as classes médias e altas. Seria o caso de voltar a apostar em impeachment? Questão difícil, pois, como analisa Felipe Maia, temos a dificuldade de sincronizar os distintos tempos: o tempo mais lento do impeachment e o tempo de urgência da pandemia. O que fazer então? Como fino pensador do fazer político, Felipe Maia nos propõe outro caminho para recuperar nossas capacidades de coordenação nas políticas de saúde pública: uma CPI da política insanitária.
Desejo uma excelente leitura!
A.M.
Fios do Tempo, 29 de março de 2021

Por uma CPI da política insanitária do governo
Juiz de Fora, 29 de março de 2021
Ao que parece, foi preciso que a pandemia chegasse ao andar de cima para que certa base social se deslocasse do campo de apoio ao inominável presidente. A lotação das UTIs, a ameaça de falta de oxigênio e de medicamentos para intubação em São Paulo e nos hospitais de elite trouxe incerteza e insegurança a quem, por incrível que pareça, não havia tomado consciência delas. É claro que não serão todos, há sempre quem vai ao baile na véspera do naufrágio. Mas a Carta dos banqueiros e o vídeo dos “arrependidos” que começou a circular nas redes sociais mostram que o clima para o inominável piora a cada dia. O andar de cima começa a perceber que seu modo usual de lidar com problemas, o pagamento de serviços caros, já não oferece a proteção necessária contra um problema de saúde coletiva. Não que isso promova muita solidariedade social, pois muitos deles demandam simplesmente poder comprar vacinas por conta própria, sem muito apreço por sua dignidade diante do público. Some-se a isso a percepção de que os efeitos da política “insanitária” do governo sobre a economia serão difusos e deletérios, com o crescimento da inflação e a perspectiva de mais um ano “perdido” para o comércio, o que compõe o cenário que amedronta as camadas médias e o pessoal do “dinheiro grosso”, que aos poucos vão deixando a base governista.
Com isso, o inominável vai perdendo o seguro contra o impeachment que havia comprado nas eleições para a presidência das casas legislativas. Hoje, o presidente depende muito de seu vice e pode contar com uma pequena muleta, o descompasso entre o tempo da política e o da pandemia. Explico: é improvável que o sistema político se mova em direção ao impeachment sem que Mourão se apresente para formar um novo governo. Sem esse horizonte não há o incentivo político básico para o afastamento, que requer organização, ação coletiva e coordenada de interesses distintos. Não se deve esperar do Congresso julgamento moral, é a política, e apenas ela, que produz decisões numa casa legislativa. Ainda que considerações de outra natureza possam entrar na formação de convicções individuais, decisões coletivas requerem um tipo de coordenação que não se produz de outra forma. Sem isso, o mais provável é a continuidade ruinosa, as defecções graduais, o butim dos cargos públicos – e muito rearranjo de alianças nos estados.
Outro grande obstáculo ao impeachment é o descompasso entre o tempo da pandemia, que é urgente e imediato, e o de um processo de impeachment, que é mais longo. A pandemia requer ação hoje para que seus efeitos ocorram em 15 ou 30 dias, enquanto um impeachment levaria dois a três meses, no mínimo, correndo rápido. Assim, o impeachment dificilmente pode ser oferecido como o tipo de solução de curto prazo que demandam os problemas de saúde pública. O presidente do Senado já disse que não vê como o julgamento dos responsáveis poderia ajudar a conter a pandemia, declaração que é também sempre prisioneira de seu tempo, pois houvesse sido o processo desencadeado no momento em que já estava claro que o governo não faria o mínimo, estaríamos talvez em condições melhores. Na pandemia, o tempo joga contra o impeachment.
Como então escapar às armadilhas e compatibilizar duas temporalidades distintas? Não é simples, mas é preciso avançar na produção de soluções políticas que permitam recuperar as capacidades de coordenação de ação do sistema público de saúde brasileiro, o que não se fará sem a devida responsabilização das autoridades, as que ocupam posições de autoridade e as que concorreram para a tragédia humanitária que vivemos. Por isso, seria importante, para além do reforço das ações que vem sendo produzidas por estados e municípios no combate à pandemia, que a oposição no Congresso se empenhasse pela implantação de uma CPI da Pandemia. Esse poderia ser um recurso institucional para os congressistas acompanharem de perto a política “insanitária” do governo, exercendo as funções de fiscalização que lhes competem na legislação. Não cabe tutela ao governo, mas o efeito político do inquérito pode ser favorável a uma redução do espaço de manobra do negacionismo que povoa o Planalto. E poderia ser o caminho para iniciar o julgamento político das responsabilidades do inominável na condução da política que produziu a morte de 300 mil brasileiros, até o momento.
Sem um horizonte político claro, iniciativas como o belo texto articulado na semana passada por congressistas de amplo espectro político no Congresso tendem a evanescer e oferecer ao grupo palaciano o tempo que precisa para continuar sua ampla, gradual e irrestrita política de erosão da democracia brasileira. Por isso, as articulações políticas precisam dar passos mais firmes na contenção do arbítrio e na proteção da saúde pública.


Felipe Maia é Professor e pesquisador da Universidade Federal de Juiz de Fora. É doutor em Sociologia pelo IESP – UERJ (2014), com pós-doutorado no CPDOC-FGV (2015). É coordenador do projeto de pesquisa “Crises e críticas: intelectuais, teoria e processos sociais” e do Grupo de Estudos em Teoria Social (UFJF) e integração a coordenação do Grupo de Pesquisa do CNPQ “Crise e Metamorfoses da sociologia”. Organizador do livro Uma democracia (in)acabada (2019), publicado pelo Ateliê de Humanidades Editorial.
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