O Fios do Tempo publica hoje um artigo da antropóloga Danielle Araújo, professora da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), que reflete, antropológica e poeticamente, sobre cultura, contato e contágio a partir da pandemia. Entre fatos, fotos e canções, Danielle traz uma reflexão inspirada não apenas em sua vida e conhecimento, mas também em sua experiência de campo nos Andes peruanos.
Se o vírus é uma realidade biológica, ele também diz respeito à nossa experiência antropossocial, fato que transfigura o modo de entender as medidas de isolamento social no contexto humano e, sobretudo, no horizonte latino-americano, tanto no tocante às diferenças de formas culturais de vida, quanto também no que diz respeito aos problemas de desigualdade social.
Desejamos uma excelente leitura, ou escuta!
A. M.
Fios do Tempo, 16 de junho de 2020
Cultura, Contato e Contágio
reflexões em tempo de pandemia
“Navio lançado ao mar das futuras combinações”
Roberto Piva
O Coronavírus alterou rapidamente o cotidiano do planeta. Somente para as pessoas que não conseguem entender a gravidade do momento e para os negacionistas ensandecidos, é possível pensar a vida nos moldes de antes. No mais, estamos amedrontados. Rosto coberto, nossas mãos tornaram-se suspeitas. Na verdade, tudo parece suspeito: os toques espontâneos ao rosto, as compras do supermercado, os sapatos que tocam a rua, o ar que respiramos, a maçaneta da porta. Interditamos gestos e atos corriqueiros, como apertos de mãos, abraços e beijos. Algumas ações tornaram-se um delito – um espirro é algo tão letal quanto uma rajada de metralhadora e a tosse, a pior de todas as sirenes. Exageros à parte, sabemos que sensações de medo e angústia, nesse momento de pandemia, têm nos visitado com frequência. Esses sentimentos, em maior ou menor proporção, estão presentes na vida de todos. Enfim, parece que somos uno, e grande parte da humanidade trocou ou pensou em trocar uma parte valiosa da vida, chamada liberdade, pela garantia da existência.
O estilo de vida habitual é possível apenas nas grandes propriedades privadas com quadras de esporte, piscinas, saunas, salas de cinema, salão de jogos, espaços fechados, coisas que sabemos que existem para o número restrito de pessoas.
O fato é que a maioria da população está amontoada em casas compartilhadas com cômodos pequenos em bairros superlotados. Em meio ao futuro de incertezas provocadas pela pandemia, cabe questionar: qual o destino do contato? Como a cultura reage ao interdito do toque?
Apesar de ainda estar seguindo o movimento do redemoinho que impacta a todos, pois ainda estamos em pleno processo de ataque viral, não faltam posições e suposições de como será a vida pós-pandêmica. Como diz a letra de uma música: como será o amanhã? / Responda quem puder / O que irá nos acontecer? / O meu destino será como Deus quiser. Certamente cartas e búzios, dentre inúmeras outras técnicas que podem ajudar na previsão do futuro, estão sendo lançadas no ar.
O Coronavírus apresenta-se como o desafio sem precedente cuja duração é indeterminada. Não sabemos para onde iremos, mas é possível saber em que ponto estamos. O Coronavírus, desde a sua gradual chegada, vai tirando vidas e degenerando relações reais de contato, nos levando a crer que a segurança está em espaços virtuais. O vírus também dissemina contradições, nos faz sentir aprisionados, como se antes, agarrados à verve do consumo, fôssemos livres. Aproxima extremidades do planeta em diálogos, procedimentos e temores, contudo, nos afasta de pessoas do outro lado da rua. O riso tapado nos leva a tentar sorrir com os olhos. Ternas relações entre avós e seus netos estão ameaçadas, as crianças passam a ser vistas como uma armadilha que incuba a morte.
A febre planetária provocada pelo vírus em alguns momentos gerou convulsões e vertigens. Alguns pensadores chegaram a afirmar que se tratava de um vírus democrático, posto que está disposto a aproximar-se de todos. Lideranças mundialmente conhecidas foram atacadas pelo Sars-Cov-2, porém não podemos esquecer que, caso o vírus seja democrático, nosso direito à vida não é ou, pelo menos, não os meios que garantem a vida diante do coronavírus. Se a regra é promover isolamento social e evitar multidões, o mesmo não pode ser dito para as pessoas que terminam suas vidas em hospitais lotados, cemitérios cheios, com covas rasas e coletivas, cheias de dor, sem flor, sem velório, sem vela, sem nada. Tendo, assim, quase que a morte negada, a covid19 os condena ao desaparecimento.
Aos espaços públicos, o vírus impõe solidão. Foram cenas nunca vistas: ruas vazias, comércios paralisados, voos cancelados, aeroportos fechados, os maiores centros turísticos do mundo vazios, e tudo que nos cabia era(é) ficar em casa inculcando que o bem coletivo depende da ação individual.
Não resta dúvidas que o vírus pode nos levar a muitas reflexões. Ele é uma coisa boa para pensar, como nos diria o antropólogo Claude Lévi-Strauss. Afirmar isso em nada significa desconsiderar o potencial biológico do vírus, sua capacidade de ser letal e de colocar em risco a existência da humanidade no planeta. As dúvidas pós-pandêmicas, que apostam que a humanidade superará mais uma pandemia, ao mesmo tempo, somam-se às dúvidas sobre o vírus e sua capacidade de regresso mais potente. Cabe também questionar se o vírus seria os anticorpos do planeta, nascido para atacar o humanusvírus, o mais poluidor e destruidor de todos os seres.
Voltando para a nossa realidade, o fato é que, ao ameaçar a vida dos trabalhadores – sustentáculo das grandes empresas –, o vírus põe em xeque o capitalismo mundial. Como diria o sociólogo Slavoj Zizek, “a epidemia do coronavírus é uma espécie de ataque da técnica do coração explosivo da palma de cinco pontos contra o sistema capitalista global”.
O coronavírus tem levado economias ao colapso, reduzido a produtividade e compelido até mesmo empresas à falência. O Estado neoliberal apresenta-se desnudo e não tem nada a oferecer à população. No caso do Brasil, não há dúvida de que a presença do Sistema Único de Saúde evitou a morte de milhares de brasileiros e de que muitos dos que morrem se foram pela falta da eficiência do serviço.
O vírus nos tira o rosto, mas permite a queda de outras máscaras. Deixa evidente a insanidade de muitos mandatários psicopatas que, em pleno século XXI, propagam o darwinismo social como política de Estado. Também desmascara grupos fascistas. No Brasil, carreatas em carros de luxo pediam a volta da dita normalidade/produção, orquestradas pela insanidade do presidente Jair Bolsonaro, que tem no vírus seu maior aliado para varrer ruas e lucrar com o corte/morte de milhares de aposentados e bolsas família.
A face do horror se estampa. A face da vida se desfaz. Não temos rostividade para apresentar, apenas máscaras.
“Que cérebro eletrônico nenhum me dá socorro
No meu caminho inevitável para a morte”
Gilberto Gil
Segundo o filósofo sul coreano Byung-Chul Han, o coronavírus pode significar o triunfo dos países asiáticos sobre os países europeus e os Estados Unidos. Antes mesmo do registro dos números de casos e dos possíveis picos, Chul Han já havia apontado para o colapso da Europa. Na China, além dos profissionais de saúde que trabalharam incansavelmente no combate à pandemia, o país contou com o trabalho imprescindível de tecnólogos e da vigilância digital. O cruzamento de dados dos celulares e das milhões de câmeras digitais de identificação facial espalhadas pela cidade tornou possível aferir temperatura corporal e rastrear pessoas infectadas, ordenando o isolamento social de forma mais eficaz.
Na China, a vida cotidiana é marcada pela permanente vigilância digital. Um sistema de crédito social pontua e bonifica a conduta diária das pessoas na vida pública. Como a vida privada está cada vez mais em processo de exibição, ela sofre o mesmo processo de creditação, o que significa que, mesmo no interior das casas, a vida está sendo monitorada pelas autoridades governamentais.
Para Byung-Chul Han, o sistema de vigilância digital facilmente empregado na China, o que poderíamos denominar de uma biopolítica digital, tornou-se possível graças ao motivo cultural. A China é um país onde impera a tradição confucionista que preconiza o bem coletivo acima da liberdade individual. O autoritarismo do Estado em nome do bem comum da população, não é questionado pela sociedade, como seria em outros países. Neste período de pandemia, estes traços da sociedade, junto à tecnologia de ponta, foram decisivos para conter a propagação do vírus.
É o próprio Chul Han que aponta para a impossibilidade desse modelo em países europeus, onde as medidas de controle excessivo e monitoramento da vida privada seriam algo impensável.
As escritas mais recentes sobre a pandemia do novo coronavírus, dentre elas a de Byung-Chul Han, mostraram que, embora estejamos diante de um vírus/realidade biológica incontornável com alta letalidade, o que muitas vezes chamamos de cultura, essa capacidade de produzir significado na ação diária, como nos diria Marshall Sahlins, também tem o seu lugar de reflexão.
Maria Galindo, filósofa e ativista boliviana foi enfática ao defender que o coronavírus parece mais uma ditadura mundial, multigovernamental, policial e militar. Que o coronavírus é o medo do contágio, a supressão de todas as liberdades. A autora nos diz: “talvez pode ser o holocausto do século XXI para gerar extermínio massivo de pessoas que, por não terem utilidade, têm que morrer”. Na sequência do seu artigo Desobediência, por tu culpa voy a sobreviver, Galindo ainda questiona: “o que faremos quando o coronavírus chegar a países como a Bolívia?”. Será possível copiar as estratégias de higiene e de isolamento social para evitar o contágio? Ou, como professou Galindo, teremos que assumir a necessidade do contágio que se dá não somente por questões econômicas, mas pelo nosso modo de ser? Se assim for, quando o vírus nos pegar, que nos pegue em contato fazendo amor, e não guerra, como afirmou Galindo.
Desde que a Organização Mundial de Saúde (OMS) anunciou a pandemia, as orientações caminham no sentido do autocuidado – a higiene das mãos, o uso de máscaras e o isolamento social. O fato é que uma parcela muito significativa da população mundial não dispõe de água para limpeza das mãos. Isolar-se em casa mostrou-se impossível diante do grande número de desabrigados. Ter casa e condições de habitá-la com dignidade é um luxo reservado a poucos. Para as mulheres, a casa pode proteger da transmissão viral, mas não as protege no machismo virulento e violento dos ditos companheiros. Lamentavelmente, o índice de violência em muitas cidades mais do que dobrou durante a quarentena.
O isolamento social debilita o capitalismo, que não vai muito longe sem a força de trabalho que o alimenta. Todos os argumentos mostram o quanto, por diversos motivos, isolar-se é difícil. Dentre eles está a composição cultural, que nos faz ser o que somos. O tecido social que une e dá sentido à vida dos países na América Latina é marcado pela cultura do contato, pela necessidade do contágio. Nossas casas amontoadas, pessoas pelas ruas num frenético vai e vem, nossa sociabilidade, bem precioso nas comunidades, permitem a propagação do vírus. E isso acontece entre abraços e gargalhadas. Em muitos bairros, a casa é a extensão da rua e vice-versa, de modo que não é preciso sair para misturar-se e contagiar. Se o beijo pode carregar o vírus, não podemos deixar de considerar o inverso. Lo siento! Mas o vírus não conseguirá impedir de nos transmitirmos. Nossa música e nossa dança refletem o contato, estimulam e pedem o contágio, insinuam, em cada som e em cada toque, um toque. Nesta linha de pensamento, o combate a uma doença de caráter infeccioso como a covid-19 nos leva a crer que a cultura não nos favorece. Será?
No momento, as campanhas e orientações quanto à higiene e ao isolamento social não se mostram eficazes como deveriam, mas não podemos ser culpabilizados pelo contágio, por ser o que somos. É preciso ter em mente que as recomendações e as obrigações de ficar em casa deveriam ser a última medida e não a primeira. Embora as orientações de isolamento social façam parte da história da humanidade no trato de pandemias, sabemos que dispomos de condições precárias para cumprir essas orientações.
Com o isolamento social, os governos tentam frear uma grande tragédia mundial. A realidade é que os Estados são ineficazes não só para tratar os doentes, mas até mesmo para enterrar os mortos. Não há políticas de saúde para a população em caso de urgência, não há nem mesmo condições dignas de sepultamento. A vida humana transfigura-se em montanhas de corpos cravados em covas cavadas e preenchidas por terra, pelas mãos mecânicas do trator. Os abismos que sempre separaram alguns muito ricos de uma maioria extremamente pobre ficam mais evidentes. O aconselhamento para ficar em casa, e a punição pelo descumprimento, seja com a morte ou com a multa, é uma forma de transferir um conjunto de competências coletivas e públicas para punir existências culturais e individuais. O transcurso da pandemia vai nos mostrando cada vez mais os abismo sociais. Todas podem contrair o vírus, porém são os mais pobres que morrem enfileirados nos hospitais. Também são eles os mais encorajados para a exposição ao vírus. No Brasil, milhares de anônimos que fazem a estrutura social funcionar passaram a ser chamados de trabalhadores essenciais.
Não resta dúvida de que, diante do colapso que estamos vivendo, da rápida propagação do vírus e do número crescente de contaminados, situação agravada pela falta de condições dignas de vida, o isolamento social é a medida no estilo “salve-se quem puder”, e não temos outra saída a não ser tentar cumpri-la. Não temos outra saída a não ser cumprir!
O conhecimento biológico nos diz que os vírus são seres acelulares formados por cápsula proteica e material genético. Esquecem de dizer que esses seres microscópicos e simples ganham força e letalidade em sociedades onde imperam as desigualdades. A realidade do vírus é biológica, mas a força da letalidade é acentuada na desigualdade social das nossas sociedades.
Não morremos pela cultura do contato, do contágio, morremos porque nos isolaram de condições dignas de existência. Porque sugam nossos corpos com o trabalho. Porque alguns têm pouco ou quase nada, enquanto uma minoria tem muito. Muitas casas, muitas mansões, muitos carros, terra a perder de vista, aviões, banquetes e mais banquetes. Enquanto a maioria segue disputando migalhas no poço.1 A produção diária de automóveis é superior à de respiradores mecânicos, o luxo dos poderosos poderia manter inúmeras UTIs. Apesar da contaminação e da alta letalidade do vírus é a concentração de riqueza que impossibilita medidas de isolamento e o tratamento dos adoecidos. Se desconcentrássemos a propriedade privada, todos poderiam ter uma moradia digna. Nos ditos países de Primeiro Mundo, há mais arsenal de armas e de tanques de guerra do que condições hospitalares para tratar a covid-19. Assim como nas grandes guerras, continua a realidade de que matar é mais fácil do que cuidar. A covid19 escancara as desigualdades sociais.
O retorno à dita normalidade será gradual, mas, diante de tantas dores, dos sonhos sepultados, que fique algo. É preciso que nasça em nós uma indignação profunda. Precisamos alterar esse curso da vida que alguns chamam de normalidade e semear a metamorfose criativa e rebelde. Não podemos cair tão facilmente nas garras do Estado ciberautoritário, a estilo chino. Não podemos deixar que o medo impeça nossos contágios. Nos nutriremos de indignação, de fúria controlada, de desejo de ação, do poder da transformação coletiva. Precisamos entender que nada é mais letal que a curva assimétrica da desigualdade social. Mais do que doações, precisamos de ações, de luta por melhores salários, empregos e desconcentração de renda. E precisamos repudiar com veemência qualquer intenção de soberba que tente subjugar nossas origens, nossas cores, nosso sexo, nossas opções e vontade de ser.
Precisamos construir um sistema de pensamento que reflita a construção de uma sociedade onde haja a consciência de que a casa é mais do que uma estrutura de concreto. A casa somos nós e só poderemos estar seguros em casa se estivermos em harmonia com o que chamamos de natureza numa relação indissociável e equilibrada.

Nota
1 Para complementar o entendimento, indico o filme O Poço, do diretor Espanhol Galder Gaztelu-Urrutia.

Como citar este ensaio
ARAÚJO, Danielle. Cultura, contato e contário: reflexões em tempo de pandemia. Fios do Tempo (Ateliê de Humanidades), 16 de junho de 2020. Disponível em: https://ateliedehumanidades.com/2020/06/16/cultura-contato-e-contagio-reflexoes-em-tempo-de-pandemia-por-por-danielle-araujo
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