Fios do tempo. Cenários do pós-coronavírus: das possibilidades existentes à luminosidade da dádiva – por Paulo Henrique Martins

Dando continuidade ao debate em torno da crise desencadeada pela pandemia de coronavírus, publicamos mais um texto de Paulo Henrique Martins. Após ter lançado o debate no Fios do tempo com o ensaio “Coronavírus: da crise do capitalismo neoliberal às vias de uma democracia convivial”, Paulo Henrique Martins avança ainda mais agora em seu esforço de diagnóstico do tempo presente. Para tanto, ele sai do imediato da crise atual e nos situa na esteira das transformações históricas dos finais do século XX e início do XXI. Ao fazer isso, nos propicia não apenas uma análise ampla e realista dos cenários possíveis de um mundo pós-coronavírus (os autoritários, social-democratas, populistas e democráticos), como também a proposição de um cenário potencial e desejável de futuro, que seja propiciado pela luminosidade da dádiva e realizado em uma democracia convivial.

Como arte ilustrativa (e talvez premonitória) deste artigo, trazemos as pinturas do artista Sérgio Bello, feitas em 2018, às quais acrescentemos suas considerações atuais sobre a crise, com lembranças da velha sabedoria indígena de um chefe Sioux.

A.M.
Fios do tempo, 06 de abril de 2020




Cenários do pós-coronavírus:
das possibilidades existentes à luminosidade da dádiva

Recife, 03 de abril de 2020

Os acontecimentos que estamos vivendo eram de certa forma previstos devido aos crescentes desequilíbrios sistêmicos, sociais, ecológicos, políticos e econômicos, como já vinha sendo previsto por autores críticos do antropocentrismo como Chakrabarty, Déborah Danowski, Eduardo Viveiros de Castro e Isabelle Stengers. Mas não se tinha ideia clara a respeito de como e quando os eventos iriam se precipitar, abrindo as perspectivas de uma mudança civilizatória. 

As mentes mais visionárias não imaginavam a possibilidade de uma pandemia como o coronavírus se espalhando tão velozmente, atingindo e assustando ricos e pobres. As críticas teóricas valorizavam a contestação política do neoliberalismo pelas mobilizações transnacionais de movimentos mais audaciosos como os feministas, juvenis e ambientalistas, mas não contemplavam compreensivelmente uma ruptura imediata pelo bio-humano. Não se imaginava o cenário de uma pandemia virando o jogo, deslocando as agendas neoliberais e o mito do mercado, tornando visível o papel estratégico do Estado e das políticas públicas na regulação institucional nos níveis nacional, regional e global, reacendendo as perspectivas de pactos sociais e comunitários solidários. 

Naturalmente, a urgência do momento desloca as atenções para as ações em saúde, em geral, e para a saúde pública em particular, com impactos tanto sobre a economia real como sobre a economia especulativa. Essas são reações visíveis e divulgadas pela mídia. Mas, em paralelo, é possível observar mudanças de rotinas e hábitos, ações de ajuda mútua e de acolhimento, gestos solidários com os mais humildes, enfim, é possível perceber os sinais luminosos da dádiva, da livre obrigação de dar, receber e retribuir, que vinha sendo fragmentada pela lógica utilitarista e egoísta própria da economia de mercado.

É inconveniente fazer muitos exercícios de futurologia considerando que estamos no olho do furacão. Mas é importante que as ciências sociais comecem a analisar os rumos dos acontecimentos para vislumbrar as tendências do jogo de poder. Vários analistas famosos já estão avançando na crítica teórica do evento quando vemos as intervenções de autores como Slavoj Zizek, Byung-Chul Han, Judith Butler, Boaventura Santos, entre vários outros. Mas muitos desses comentários se voltam para exercícios acadêmicos de padrões analíticos já desenvolvidos antes da crise, sem apontarem claramente os pontos de ruptura e as brechas que se abrem tanto para as reações conservadoras como para as inovações democráticas que podem acontecer numa nova esfera civilizacional. Logo, parece-me que, mesmo correndo os riscos de excessos, devemos fazer alguns exercícios das tendências dos eventos de modo a compreender os cenários possíveis no pós-crise com o esgotamento do neoliberalismo. 

Para tanto, farei uso da teoria dos cenários, que foi muito usada nos anos 80 e 90 em contextos onde se valorizava o planejamento estratégico de grandes empresas públicas. Aos poucos, com o avanço do imediatismo do mercado especulativo, os governos foram perdendo suas capacidades de antecipar ações futuras planejadas e os usos conceituais dos cenários foram deixados de lado, pelo menos nas sociedades que foram muito marcadas pelo neoliberalismo. Porém, no momento, parece-me útil voltarmos a usar os cenários nas ciências sociais de modo a se entender os níveis de continuidades e descontinuidades nos planos das mentalidades, dos sonhos, dos valores, das crenças e das instituições. 

No caso atual, consideramos que estes cenários devem considerar como ponto de partida três aspectos que vêm sendo destacados pelas evidências: 

(a) a perda de legitimidade do mercado como regulador central da vida econômica e social. Esta crença na primazia de um  mercado auto-regulador capaz de gerenciar as instituições em geral se funda numa lenda: a de que o mercado substituiria por sua eficácia instrumental a regulação estatal, tanto nas sociedades nacionais como na esfera internacional. Esta é uma evidência demonstrada pelo modo como o mercado financeiro vem se retraindo, por um lado, e como vem se ampliando a intervenção estatal, por outro.

(b) o retorno do Estado como agente central nas ações de enfrentamento do coronavírus e de reativação da vida econômica, política, e social. Tal retorno se verifica na medida em que somente o aparelho estatal dispõe da capacidade de regular conflitos diversos, de emitir moeda no seu território e de gerar políticas de proteção social ampliadas. Estas são condições necessárias para se planejar ações estratégicas a curto, médio e longo prazo e que não podem ser atendidas pela lógica imediatista do mercado;

(c) revalorização de ações solidárias espontâneas nos planos da sociedade civil e das comunidades presenciais e virtuais nos planos local, nacional e internacional, reativando o paradigma do dom como regulador político, cultural, social e institucional. Trata-se da possibilidade de recriar os mecanismos tradicionais de organização dos pactos sociais e comunitários fundados nas associações solidárias entre pessoas nos centros urbanos e rurais, estimulando o empoderamento moral de indivíduos na organização de suas instituições e nas práticas do cotidiano.

Em quaisquer destes cenários há um fator imponderável, a saber, o impacto no tempo e no espaço da crise virótica sobre as sociedades e populações nacionais e sobre os migrantes, exilados e refugiados. Tal impacto vem exigindo ações políticas públicas e sociais organizadoras da vida das comunidades nos territórios locais, nacionais e transnacionais. As reações políticas e institucionais acompanham as mudanças mais gerais no nível global, por um lado, e os estímulos às práticas de solidariedades horizontais envolvendo indivíduos, famílias, grupos sociais e instituições de cooperação e apoio social, por outro. Há também que se considerar as particularidades dos casos. A China conseguiu controlar o processo pandêmico porque tem uma estrutura política centralizada e uma cultura confucionista de valorização das hierarquias de autoridades que são muito particulares. Alguns outros países com tradições autoritárias como a Rússia se aproximam deste modelo. Este modo de gestão vertical da vida social funciona em estados autoritários consolidados mas sua efetivação em sociedades de traços democratizantes pode gerar ações repressivas e politicamente desestabilizadoras. 

A maioria dos países ocidentais, por não possuírem esta cultura de poder asiática, precisa adotar iniciativas mais dialógicas para obtenção do consentimento dos cidadãos e para implementação de ações sanitárias. Considerando os investimentos científicos e tecnológicos que vêm sendo realizados, é previsível que dentro de algumas semanas ou meses a onda da pandemia se dissolva, embora deixando um rastro de importantes perdas humanas e econômicas. A perspectiva de superação da crise virótica no curto prazo não significa necessariamente a superação do potencial catastrófico contido no modelo neoliberal da acumulação ilimitada de riquezas. De todo modo, se nos detemos no atual contexto da crise virótica,  devemos considerar que esta experiência coletiva que envolve a humanidade, em geral, também abre novas possibilidades de reorganização dos sistemas de poder e das estruturas políticas, econômicas, culturais e morais. A descontinuidade temporal impacta nos entendimentos psicológicos e morais dos humanos sobre a vida e sobre a morte, tanto reforçando tendências patológicas e autodestrutivas como abrindo a sensibilidade coletiva para o entendimento de que a força da ação grupal pode gerar processos coletivos mais importantes que as saídas individualistas.

Aqui, temos um horizonte de possibilidades interessantes para explorar o potencial dos pactos morais, afetivos e políticos solidários  como fundamentos de novas experiências associativas.

Entre cenários autoritários e democráticos

Em linhas gerais, guardando os devidos cuidados com os limites das prospecções, podemos supor dois grandes cenários: um mais pessimista e outro mais otimista. Caso as estratégias de superação da crise gerada pelo coronavírus não tenham sucesso em poucas semanas, certamente teremos um cenário mais pessimista, apontando para processos de recessão crônicos com impactos nas vidas das organizações e das pessoas. Este cenário pode ser péssimo para as lutas democráticas e favorável a regimes autoritários na medida em que os líderes da direita se aproveitam do medo e da desesperança para impor estruturas de poder verticalizadas. A saída ditatorial é um fantasma que se apresenta no horizonte de sociedades enfraquecidas por experiências repressivas, como vemos, agora, no caso da Hungria. Lá, Orbán aproveitou a urgência de centralizar ações de enfrentamento contra o coronavírus para assumir poderes ditatoriais e enfraquecer as lutas democráticas.

Diferentemente, podemos considerar saídas mais favoráveis à democracia se as estratégias sanitárias tiverem sucesso em poucas semanas e se as mobilizações cívicas e comunitárias contribuírem para fortalecer os laços de pertencimentos locais que tinham sido fragmentados pela mercantilização do mundo. Parece-me um bom exercício visualizarmos alguns cenários de médio prazo na medida em que eles permitem potencializar ações políticas e civis de resistência e de demolição dos dogmas do neoliberalismo e, também, possibilitam organizar as novas agendas de movimentos sociais e comunitários para se anteciparem criando dispositivos de resistências contra as tendências autoritárias e ditatoriais.

O caso brasileiro é interessante pois demonstra que o coronavírus deslocou a agenda da extrema direita que estava preparando um golpe ditatorial tendo à frente Bolsonaro e seu grupo político. Isto não significa que os perigos golpistas tenham desaparecido (este cenário ainda está presente), mas o deslocamento de agendas permite visualizar a recomposição de forças democráticas num outro plano organizacional que estava ficando difícil no cenário populista de direita com apoio do fanatismo religioso. A reflexão sobre os cenários podem então permitir fortalecer os projetos democráticos evitando o centralismo autoritário e as aventuras ditatoriais. O exercício da solidariedade é um bom caminho para motivar a opinião pública a se posicionar na sua diversidade classista, corporativista, identitária, étnica e religiosa, permitindo novo patamar de organização de experiências plurais, participativas e representativas. Estamos observando este fato em algumas sociedades europeias como a Dinamarca, que já começa a relaxar as medidas contencionistas.

De modo geral, seja no cenário mais otimista seja no mais pessimista é possível, desde já, imaginar alguns desdobramentos. A curto prazo, eles apontam para três direções: (a) ampliação do protagonismo do Estado na organização de políticas públicas assistencialistas e protetoras do emprego e das empresas; (b) resistência das forças do mercado, com os grandes bancos e instituições financeiras apostando na superação rápida da pandemia para não abrir mão de seus privilégios financeiros e rentistas; (c) mobilizações diversas dos grupos sociais e de indivíduos para organização de reações cívicas que fortalecem o espírito comunitário e as práticas de doações espontâneas entre indivíduos e comunidades. 

Aqui vemos o surgimento de diferentes modalidades de organização do poder na gestão da vida institucional, econômica, política, cultural e comunitária. O ressurgimento de iniciativas espontâneas e solidárias, aquelas do dom, que estavam se fragmentando pelo consumismo, é um sinal alentador que pode contribuir para tirar as pessoas da letargia e dos surtos hipnóticos alimentados pelo fanatismo político e religioso. Somente assim podemos antever uma reorganização da sociedade civil e das comunidades e que expressam práticas voltadas para um novo humanismo. Esta é uma discussão que está bem desenvolvida pelos dois manifestos convivialistas lançados na França em 2013 e em 2020, com adesão de muitos intelectuais renomados e com ampla  divulgação em outros países.

Deslocamentos e aprendizados históricos

Há aprendizados que precisamos tirar rapidamente do surto patológico, na medida em que os cenários do futuro dependem das capacidades dos setores mais progressistas de se anteciparem aos desdobramentos da crise vital. Somente assim é possível repensar a relação entre esquerda e direita e visualizar o futuro a partir de novas mobilizações cívicas e comunitárias, permitindo reinstituir a democracia como projeto coletivo ampliado que integra as diversidades decorrentes da individualização social. 

Nesta perspectiva, gostaria de relembrar alguns deslocamentos históricos ocorridos no nível global desde os anos 90 do século vinte e que oferecem elementos relevantes para analisar os desdobramentos do presente na projeção dos cenários políticos:

1. Um deles tem a ver com a queda do muro de Berlim, em 1989, que teve dois efeitos importantes para o entendimento dos modos de organização do sistema político mundial. Por um lado, houve o esvaziamento do embate ideológico entre capitalismo liberal e socialismo burocrático, fundado nas antinomias entre Mercado e Estado, revelando as limitações das abordagens utilitaristas e totalitárias na organização do poder em sociedades complexas. Este embate contribuía para fixar a ideia de que, no lado ocidental, a democracia se afirmaria pelo voto e pela representação, com primazia da liberdade individual sobre as igualdades coletivas. No lado oriental, os modelos de repúblicas democráticas se viabilizariam pelo reconhecimento da omnisciência do Estado burocrático, administrando os mecanismos de reprodução da vida social com predominância dos valores da igualdade coletiva sobre as liberdades individuais. 

Se estas fórmulas já eram demasiadamente simplificadas para explicar o funcionamento político das sociedades complexas, depois dos anos 90 elas se mostraram mais confusas. Elas se revelaram insuficientes para descrever as tensões crescentes entre as práticas democráticas nas sociedades nacionais nos planos internos e mundial. A utopia socialista foi abandonada e os grandes países herdeiros do socialismo burocrático procuraram se modernizar seguindo os caminhos abertos pelo mercado capitalista, mas guardando o controle estatal da vida social (Cuba continua sendo uma exceção interessante a ser estudada com mais profundidade, sobretudo pelo modo como vem enfrentando o coronavírus).

2. Numa outra perspectiva, vale lembrar Francis Fukuyama quando proclamou o fim da história com a queda do muro de Berlim e a afirmação do capitalismo e da democracia burguesa. As esquerdas protestaram mas não conseguiram viabilizar saídas para a democracia ampliada. De fato, a partir dos anos 90 os embates sobre democracia passaram a ficar limitados pelo imaginário da democracia liberal, abandonando-se largamente as utopias socialistas e anticapitalistas. 

Desde o final do século passado, observamos, progressivamente, o declínio dos partidos de esquerda tradicionais, como os comunistas, e o crescimento de lutas liberais voltadas para a formação de tribos urbanas e para a individualização de estilos e formação de novos papéis sociais e culturais sem, entretanto, conseguir romper o padrão da democracia liberal. Vários setores das esquerdas nas sociedades ocidentais passaram a jogar todas suas fichas no fortalecimento da sociedade civil: movimentos feministas, sexualistas, ambientalistas, juvenis etc. e o próprio movimento sindical entrou igualmente nesta via única liberal. Sendo o individualismo o fundamento espiritual e moral desta doutrina, todos estes movimentos passaram a se multiplicar internamente, com exigências crescentes com relação à ampliação das políticas públicas nacionais para atender à diversidade de pleitos identitários. Isto levou ao aumento da tensão entre elites dirigentes e movimentos sociais. Estes querendo ampliar a democracia participativa liberal, aqueles tentando fortalecer a democracia representativa oligárquica. Todas as lutas democráticas nas últimas décadas retratam estas tensões que se realizaram, vale registrar, dentro da utopia liberal de mais liberdade (mesmo que a igualdade universalista tenha ficado em plano secundário).

3. Em paralelo, o neoliberalismo avançou rápido nas últimas três décadas a partir de um acordo de poder transnacional com três grandes estratégias: (a) desmantelar as políticas públicas e sociais; (b) capturar o aparelho estatal para acelerar os mecanismos de apropriação e de acumulação de riquezas e (c) desenvolver dispositivos midiáticos para neutralizar as contestações políticas e domesticar emocionalmente os indivíduos preparando-os para participarem da vida como cidadão-consumidores despolitizados. Neste contexto, o ideal liberal de sociedade civil formada por indivíduos conscientes de seus direitos pessoais foi se fragilizando com o desmantelamento das políticas de proteção social, com o desemprego em massa, com a precarização e a formação de multidões desamparadas. Este é o contexto em que prosperam os discursos populistas de direita e a expansão de movimentos evangélicos conservadores, assumindo com o salvacionismo o vácuo deixado pela retração da sociedade civil liberal.

Claro, havia uma tragédia anunciada pois o espetáculo da cultura elitista voltada para a especulação, o enriquecimento predatório e o consumismo ostensivo no mundo dos negócios e da vida cotidiana tinha um limite dado pela violência sistêmica gerada pelo desmanche das instituições sociais, políticas e econômicas tradicionais e pela deterioração da qualidade de vida. Os intelectuais e dirigentes neoliberais buscaram contornar a crise latente com políticas fiscais e monetárias restritivas. Eles acreditavam que o equilíbrio das contas públicas reativaria a confiança do investidor, e, como consequência, haveria a geração de mais emprego e renda. Estas políticas também fracassaram mas vinham sendo camufladas pelas mobilizações populistas de direita, pela grande mídia e pelas operações de fake news.

Cenários pós-coronavírus

O coronavírus é um mistério visto que já era conhecido desde os anos 60. Mas ele encontrou um ambiente muito favorável para sua expansão nos corpos de indivíduos estressados, emocionalmente afetados e com baixa imunidade física. Então, o efeito viral tem duas faces, a patológica e a emocional. Ele se espalhou sobretudo pelos viajantes e indivíduos mais abastados, gerando um pânico inevitável entre as classes médias e ricas que se consideravam, até aqui, protegidas dos pobres, dos desempregados, dos excluídos e dos injustiçados. Elas acreditavam que poderiam continuar a usufruir de modo ilimitado da sociedade de consumo mesmo que às custas da miséria social. O coronavírus está atuando, então, como acontecimento político extraordinário nos espaços das multidões que se multiplicam no vácuo da sociedade civil desorganizada. Ele está realizando aquilo que os movimentos sociais liberais radicais, sobretudo os pela diversidade, e os juvenis e os ambientalistas não conseguiram realizar. E não poderiam. Pois não havia como construir utopias libertárias dentro de um modelo de base mercantil e hierarquizado.

Que cenários pós-coronavírus podemos imaginar para a política, para a sociedade e para a cultura? As respostas estão sendo dadas na prática e a curto prazo com o fortalecimento da ação estatal para conter a pandemia e pelas mobilizações espontâneas de grupos sociais, organizações governamentais e não governamentais nacionais e transnacionais. Aqui podemos imaginar quatro variáveis: 

(a) fortalecimento dos Estados autoritários que têm grande capacidade de planificação e populações relativamente acomodadas como China e Rússia; 

(b) fortalecimento dos Estados do Bem Estar Social naquelas sociedades, como as europeias, que têm uma tradição forte de participação social e política; 

(c) fortalecimento dos Estados periféricos assistencialistas, seja na versão autoritária e ditatorial, seja na versão de oligarquias esclarecidas desenvolvendo populismos de esquerda. Neste cenário de especulações, é possível imaginar que a catástrofe social testemunhada por mortes em massa de indivíduos leve a médio prazo ao fortalecimento nas sociedades periféricas de regimes oligárquicos mais esclarecidos desejosos em restaurar práticas populistas com apoio no fundamentalismo religioso e no poder político tradicional; 

(d) o aprofundamento da ruptura sistêmica com a liberação de novos modos de governança mundial e nacionais, abertos para a intensificação das práticas democráticas, solidárias e voltadas para a inclusão em massa dos indivíduos até aqui excluídos do modelo neoliberal. Aqui, podemos visualizar as perspectivas liberatórias geradas pela emergência de novas solidariedades afetivas e morais com as populações vulneráveis, por um lado, e pela criação de novas instituições políticas e sociais voltadas para gerir a liberação do dom nas esferas comunitárias, por outro.

Luminosidade da dádiva e democracia convivialista

As esquerdas, logo, no meu entendimento, precisam reavaliar rapidamente os erros gerados pela renúncia de um projeto democrático mais abrangente no final do século XX. A crença de ruptura do neoliberalismo por dentro nos limites utópicos do liberalismo tradicional se mostrou ingênua e impossível. Nesta direção, pode ser iluminadora a proposta de se explorar o potencial de uma democracia de base convivial fundada em dádivas horizontais implicando trocas de bens e serviços solidárias e gentilezas recíprocas fundadas no compartilhamento de novos valores morais e de novas disposições afetivas. Ela pode emergir como a condição de emancipação de economias solidárias e de novas políticas de cuidados que reinstituam o valor do humano integral na base de uma nova cultura política. 

Trata-se de deslocar o foco da atenção, ainda direcionado no presente momento da crise para as políticas públicas meramente assistencialistas ou voltadas para preservar empregadores e empregados e interesses das grandes firmas, em direção ao favorecimento de um outro entendimento do humano. Um novo paradigma civilizacional que permita reinventar a economia e a vida social a partir de um projeto ético, ecológico e político legitimado pelas experiências comunitárias e convivialistas. Há um fato novo que emerge com as falências do Mercado e do Estado centralizador: a da força dos sistemas de dádivas, de solidariedades espontâneas ocupando os espaços da regulação da vida social. Aqui temos um cenário bem interessante a ser observado. Trata-se de uma nova agenda que se abre com o pós-neoliberalismo e que deve contemplar as condições de estruturação de uma nova economia, de uma nova sociedade e de um novo humano. Ou seja, abrem-se as perspectivas de outro mundo possível edificado não como jogo de competição destrutiva e desleal, mas como competição solidária, convivial, ecológica e voltada para práticas comunitárias dadivosas mais saudáveis. Estas já existem, na verdade, como vemos nas experiências agroecológicas, nos cuidados em saúde e nas economias plurais alternativas. Mas tais experiências ainda estão dispersas necessitando de um fator agregador extraordinário. Este fator político pode ser o coronavírus.


PAULO HENRIQUE MARTINS é sociólogo, professor titular de Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Foi presidente da Associação Latino-Americana de Sociologia (ALAS) e vice-presidente da Associação Mouvement Anti-utilitariste en Sciences Sociales (MAUSS). É membro do conselho editorial da Revue du MAUSS e co-fundador e co-editor da Revista de Estudos AntiUtilitaristas e PósColoniais (Realis). Publicou pelo Ateliê de Humanidades Editorial: Itinerários do dom: teoria e sentimento (2019) e Teoria crítica da colonialidade (2019). Esse último livro foi traduzido para o inglês e publicado em nova edição: Critical Theory of Coloniality (Routledge, 2022).


Como citar este artigo:
MARTINS, Paulo Henrique (2020), Cenários do pós-coronavírus: das possibilidades existentes à luminosidade da dádiva, Fios do Tempo (Ateliê de Humanidades), 06 de abril. Disponível em: https://ateliedehumanidades.com/2020/04/06/fios-do-tempo-cenarios-do-pos-coronavirus-das-possibilidades-existentes-a-luminosidade-da-dadiva-por-paulo-henrique-martins/


As pinturas utilizadas na imagem principal e na terceira imagem de citação são de autoria do artista Sérgio Bello, pertencentes a uma série de desenhos pintados e inscritos feitos em 2018 voltados à crítica da sociedade neoliberal. Reproduzimos as mesmas em formato integral abaixo:

Estão inscritos nestas pinturas os seguintes dizeres do artista:

Financeirização global. Desigualdade global. Precariedade global. As oligarquias são insensíveis. As explosões serão globais” (Paris, 08-12-2018).

Diante da pandemia de coronavírus que faz explodir a crise financeira e econômica atual, o artista propõe a seguinte frase para completar o ciclo:

E um só vírus coroará uma Sociedade Pós-Liberal?” (Paris, 19-03-2020).

E lembra os seguintes dizeres de um Cacique Sioux:

Quando a última árvore for derrubada,
quando o último rio for envenenado,
quando o último peixe for pescado
então eles descobrirão que dinheiro não se come!”
(Tatanka Yatanka, 1855)

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por Anders Noren

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