Neste final de semana pré-pascoal, revisitamos dois Pontos de Leitura do Ateliê de Humanidades, retirados do livro A arte dos ociosos, do escritor e pintor alemão Herman Hesse. “Fome de amor e alegria” (1907) e “A riqueza Interior” (1915). Eles são uma preciosa leitura em tempos de confinamento!
Publicamos agora “A riqueza interior” e convidamos que já leiam o primeiro: “Fome de amor e alegria” (1907). Ambos estão em áudio leitura e, também, em vídeo com leitura e comentários por André Magnelli.
Bom achado!
A riqueza interior
Só em situações difíceis na vida revela-se abertamente o caráter de uma pessoa. Assim, também, mostra-se o relacionamento de cada um com o plano espiritual ou ideal, com tudo que não se pode provar ou tocar, só em sua pureza e no seu verdadeiro valor, quando o amparo habitual de nossa vida exterior se desmorona ou se encontra abalado. Pode-se, em tempos de grandes provações, viver a estranha experiência de que, realmente, um número maior de pessoas é capaz de morrer pelos bens ideais do que o das que sabem vivê-los e gozá-los.
A cultura, ao contrário da natureza, resume o que o ser humano, para além das necessidades e do momento e da vida pura e simples, encontrou e criou em valores espirituais, nas religiões, nas artes e nas filosofias. Também a canção popular, do homem do povo, a alegria que o viajante sente pela floresta e as nuvens, o amor à pátria e aos ideais de partido – tudo isso é “cultura”, é um bem espiritual, é humanismo. Por sobre todas as oscilações da história universal e da evolução dos povos, tem esse bem ideal da humanidade podido conservar-se, afirmar-se e multiplicar-se. Quem tiver participação nesse bem fará parte da indestrutível comunidade do espírito, possuirá algo que não lhe poderão roubar. Podemos perder o dinheiro, a saúde, a liberdade, a vida. Mas somente junto com a vida pode ser-nos tomado o que conquistamos e possuímos de bens espirituais.
Nos tempos de dificuldades e sofrimentos é que se revela o que realmente possuímos, o que não nos trai e que não nos pode ser tomado. Muitos há para quem um belo provérbio do Velho Testamento ou um pensamento em verso de Goethe mereciam em outros tempos toda estima e valor, que gostavam de ouvir um bom discurso e boa música, mas que chegam a perder esses bens, quando as sombras da pobreza, da fome, do desassossego lhes anuviaram a vida. A quem isso acontece, a quem soube gozar os bens culturais e que, nos momentos de perigo e necessidade, se sente abandonado por esses valores, quem, com sua biblioteca, perde o seu mundo espiritual, com a sua assinatura de concertos, a sua conivência com a música, é uma pessoa infeliz, que, não há dúvida, nunca soube manter com o mundo espiritual o relacionamento certo e verdadeiro.
O relacionamento justo com esse mundo não é, decerto, o mantido pelo gozador, não importa o grau de sua cultura, o vulto de suas leituras, a amplitude de suas experiências profissionais. Possui cultura tal como um rico ocioso possui dinheiro – no dia, em que a perde, será mais pobre que um mendigo, que, apesar da sua pobreza, poderá sentir-se feliz.
Os bens culturais não são, pois, bens impessoais, que se pode, à vontade, adquirir, comprar e utilizar. A música, que um grande artista criou, sob conflitos e profundos estremecimentos, em sua vida interior, não pode, facilmente, ser apropriada por um espectador, comodamente sentado em uma poltrona de sala de concerto. A palavra profunda de um pensador ou de um mártir, nascida da urgência e necessidade, também não pode ser dominada por um preguiçoso leitor esticado numa poltrona.
Em nossa vida diária, costumamos fazer a experiência de que nossas relações, amizades, sentimentos só não nos traem, só merecem a nossa confiança, quando lhes dedicamos o sangue de nosso sangue, o nosso amor e a nossa convivência, nossas lutas e nossos sacrifícios. Todos sabemos, por experiência, como é facil enamorar-se e como o verdadeiro amor é raro e belo. O amor, como todos os valores eternos, não pode ser conquistado com o dinheiro. O prazer pode ser comprado, mas não o verdadeiro amor.
A lição que a vida nos ensina exige, para que da criança possamos desenvolver para o adulto, a nossa disposição ao sacrifício e à obediência e o conhecimento das relações, cuja manutenção e cultivo nos obriga a sacrificar os nossos apetites e cobiças.

Intimamente, chegamos a ser disciplinados e adultos no momento em que reconhecemos a validade dessas conexões e estivermos dispostos, não forçosa mas espontaneamente, a obedecer-lhe. […] Da mesma forma como a sociedade humana só apóia o indivíduo quando ele a reconhece e se sacrifica por ela, assim também exige a nossa cultura, como patrimônio comum a todos os homens e todos os povos, o nosso reconhecimento e nossa obediência e não, apenas, as relações de conhecimento, uso e desfrute. No momento em que, em nosso íntimo, prestamos esse reconhecimento, chegamos realmente a participar dos bens culturais da humanidade. Quem, mesmo que seja uma só vez, houvesse deixado uma elevada ideia sua concretizar-se, se tivesse feito um sacrifício pelo conhecimento, já deixou o círculo dos gozadores e figura entre os que, em qualquer situação, não sofrerão a perda dos bens espirituais.
Ninguém é tão pobre espiritualmente que não possa, pelo menos uma vez ao dia, olhar para o céu e ter uma ideia viva e boa, elevada e construtiva. O prisioneiro, que no caminho para o trabalho, repete, mentalmente, um verso estimulante, cantarola uma bela melodia, pode estar mais intimamente de posse desses bens consoladores que muitas pessoas animadas, que já há muito se cansaram de suas belezas e doces encantos.
Você, que está triste e longe dos seus, leia, sempre que puder, um belo provérbio, uma poesia. Lembre-se de uma bela música, uma bela paisagem, de um momento puro e feliz de sua vida! E, se você for sincero com seus ideais, verá o milagre acontecer, verá que as suas horas serão mais luminosas, o seu futuro mais confortador e sua vida mais terna e afável!
Herman Hesse. A Riqueza Interior (1915)
In: A arte dos ociosos, p. 175-177 (Editora Record)
Achado de André Magnelli
Fonte da imagem: Hermann Hesse com sua neta Sibylle (1946)
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