Pontos de leitura. Quando o hiperindividualismo leva ao autoritarismo

Publicamos hoje um Pontos de leitura que reflete sobre a dialética do hiperindividualismo contemporâneo. Neste Pontos de Leitura, que é o primeiro acompanhado de um vídeo de leitura e reflexão, André Magnelli selecionou um texto para refletir sobre as tendências atuais do utilitarismo e do “autenticismo” recairem em visões autoritárias de mundo. Este Pontos de Leitura teve como mote o recente vídeo do ex-secretário nacional de cultura Roberto Alvim. A partir deste fato, refletimos sobre os ideias de autonomia do mundo moderno e passeamos um pouco pelos séculos XVIII ao XXI. Desejamos um excelente achado!


Parece-nos, hoje, que o pensamento contemporâneo ainda lida com as tensões legadas pela filosofia moderna. Como já dissemos e repisaremos mais à frente, a teoria crítica está associada, histórica e sistematicamente, a ideais normativos. Normalmente, a palavra que sintetiza o horizonte é a de emancipação. Todavia, em torno dela existe um complexo semântico mais amplo. Na tradição alemã, a crítica aparece como o caminho para a maturidade, do homem individual e da humanidade genérica, entendida como autonomia moral e política. É assim que, a partir de Kant, a ideia de emancipação está orientada por um ideal moral de autonomia de um indivíduo orientando-se racionalmente na vida privada e na esfera pública; por sua vez, tanto Hegel quanto Marx desenvolve (no caso de Marx, na esteira de Rousseau) a ideia de uma liberdade efetiva, ou emancipação humana, somente realizável em um Estado racional capaz de superar as antinomias modernas pela síntese entre autonomia individual e autodeterminação coletiva.

De forma paralela às duas vias, e às vezes se confundindo com uma ou outra, constituiu-se, desde Herder e da geração de 1780 (Goethe, Schiller, Hegel, Schelling, Hölderlin etc.) até meados do século XIX (Kierkegaard e, em certa medida, Nietzsche), toda uma concepção de mundo fundada em outro ideal: o de autenticidade. Inspirado, normalmente, na Antiguidade clássica, em Spinoza, no protestantismo e/ou em Rousseau, ele teve como momento determinante o expressivismo alemão (do qual a estética de Schiller ofereceu um modelo clássico de crítica filosófica da modernidade).

Após o refluxo do romantismo, desde meados do século XIX, tendem a predominar as vias da autonomia moral e da emancipação humana, muito embora os ideais expressivistas jamais deixaram de estar presentes nas reivindicações individuais e nos movimentos políticos e culturais. Contudo, a partir do último quarto do século XX até este início do XXI, o ideal de autenticidade teve forte ascendência, sobretudo a partir da revolução cultural de 1968, ao passo que entraram em declínio quase inevitável, com o esvaziamento da tradição revolucionária, o ideal de emancipação humana, e com o declínio do público, o ideal de autonomia republicana. Com isso, temos, de um lado, uma forte posição, comum na esquerda, em prol da autenticidade dos indivíduos, que é dificilmente compatibilizada com a tradição kantiana, ou para falar em geral, com um universalismo para além da negatividade de uma crítica social contra as formas de heteronomias socialmente impostas; de outro lado, há uma posição, igualmente individualista, centrada em uma autodeterminação negativa de um indivíduo reduzido aos interesses e gozos, bem ao molde do que o marxismo clássico chamaria de “individualidade burguesa”, incapaz que o é de pensar para além da racionalidade instrumental. Este tipo de liberdade utilitarista perde de vista a dimensão da autenticidade das formas de vida, curto-circuitando a reflexão ética, estética e existencial sobre a vida boa e as formas comunitárias de vida compartilhada. Não por acaso ele recai facilmente em um ultra-liberalismo ou anarquismo libertário de direita, que não deixa de ter cumplicidades com o desconstrutivismo de esquerda. 

Ambos dependem e fomentam um processo de fragmentação social em curso, ao mesmo tempo individual, social e intelectual, desfazendo-se laços morais e políticos e desencadeando um conflito (senão guerra) de todos contra todos; por isso, longe de excluir, o hiperindividualismo contemporâneo, utilitarista ou autenticista, tende a conduzir ao seu oposto, a saber, uma fuga de si mesmo e uma entrega desesperada a formas autoritárias de identidade coletiva, com o que surgem tradicionalismos e seitas místicas e religiosas dos mais diversos tipos, assim como uma expectativa de Estado policial e de controle permanente por parte de indivíduos temorosos e impotentes. Portanto, formulamos aqui mais um aparente paradoxo, a saber, o de que o ideal de autodeterminação individual, quando amplamente difundido, possível e desejado, acaba por entrar em uma destruição de sua própria condição de realização. Caso sigamos os pensamentos de Arendt e Gauchet, podemos identificar aí uma diferença essencial entre a liberdade individual e a organização política da liberdade; de tal modo que a liberação (positiva e desejada) dos indivíduos não se confunde com a organização de uma sociedade política, podendo chegar, até mesmo, à dissolução (subjetiva e objetiva) de uma experiência de liberdade individual.

Alberto L. C. de Farias & André Magnelli. Cartografias da crítica: balanços: entre crítica, crise e reconstrução.
In: Cartografias da crítica (Ateliê de Humanidades, 2019, p. 62-64.



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por Anders Noren

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