Quando publiquei este artigo há 2 anos no Jornal do Brasil, um amigo me comentou que era um importante argumento (disse que “paulino”, num sentido elogioso), mas com o qual os eleitores do então candidato à presidência Jair Bolsonaro também se identificariam. Eu respondi que entendia isso, porque a fala do Bolsonaro ia no sentido de exprimir uma crise institucional, uma falta de credibilidade das instituições, mas que “fala franca”, que ele diz ter (uma mentira, claro), não se confunde com “fala veraz”, que é o compromisso que um poder executivo deve ter para tecer os fios invisíveis da legitimidade de uma democracia, os da confiança, da confiabilidade e da credibilidade.
Lido à luz de hoje, depois das séries João no twitter do presidente e sua desconstrução sistemática de qualquer enunciação de verdade, vemos que a essência do bolsonarismo é o populismo e que, sob a forma de desfaçatez, mina qualquer possibilidade de compromisso normativo e tem que jogar o tempo todo atirando lenha numa oposição amigo/inimigo cada vez mais artificial, imaginária, mesmo delirante, gerando confusão, ilegibilidade, psicose social.
Repito: precisamos de um falar verdadeiro na vida democrática, um falar que torne possível uma política veraz, que faça da experiência política algo legível, algo que só é possível numa democracia pela construção de uma narrativa aberta a todos, com aderência à história, coerência interna e capacidade de projetar um futuro comum.
A. M.
Fios do tempo, 10 de maio de 2020
Por um falar verdadeiro
na vida democrática
Jornal do Brasil, 02 de maio de 2018
Em tempos de marqueteiros políticos, fake news robotizadas e políticas de “vale tudo”, soa ingênuo reivindicar a necessidade de uma fala verdadeira na vida democrática. Mas, como mostrou P. Rosanvallon, todo governo democrático tece sua legitimidade sobre os frágeis fios da confiança, entremeados por uma fala pública comprometida com a veracidade. Um bom governante deve falar sempre e fazer um bom uso da fala, pois o discurso público é fundamental para constituir laços de compreensão mútua e uma realidade compartilhada. Isso permite que as ações públicas se tornem legíveis e que se instituam horizontes de significados que enlaçam passado, presente e futuro. Caso contrário, a política se torna nada mais do que puro e simples discurso cínico do poder e exercício vulgar de dominação.
Falar verdadeiramente é crescer o domínio dos cidadãos sobre a sua existência e sobre o governo; falar falsamente é amplificar o hiato existente. Hoje em dia, há um lado esquecido da corrupção, expresso num cinismo generalizado. Nós não estamos corrompidos apenas quando recebemos propina ou fazemos negociatas ilícitas; somos corrompidos, de modo mais radical, quando não temos nada mais de ético quando falamos, agimos e vivemos. As lutas partidárias e as operações policiais acabam por não nos deixar ver o óbvio: o abismo da corrupção existencial da qual nem a polícia nem a Justiça podem nos tirar, somente nossa ação política é capaz de fazer isso. Um bom político deve ser quem estabelece uma relação de confiança, sem dissimular o ato ou mentir por palavras; é quem fala francamente, sem manipulações, maquiagens e cálculos; é quem tem um cuidado de dizer as coisas tais como elas são; e, sobretudo, de viver em conformidade com o que diz. Um político que se fia na bajulação de próximos, na cegueira de seguidores e na ignorância de eleitores é um mau governante, independentemente do sucesso eleitoral e da perenidade de carreira. Sua vitória é uma derrota moral, não apenas individual, mas, principalmente, coletiva: é o fracasso de uma comunidade política em viver democraticamente.
Os iniciados em filosofia já reconhecem minha inspiração: aludo às lições de parresía na Grécia, retomadas pelo filósofo M. Foucault. O “parresiasta” se engaja impulsionado pela mola “do se dar no que diz e do ser no que se fala”, adquirindo, com isso, um poder de convicção irresistível que, em tempos extraordinários, chega a articular o seu destino individual com o da sociedade. Claro, sabemos que há perigos em tal postura: expor-se à detração, à exclusão, à perseguição, ao ostracismo e mesmo à execução. Quem tem compromisso com a fala franca deve ser prudente. É recomendado que não tenha medo paralisante diante de uma maioria tirânica, de uma minoria ativamente autoritária ou de reações calculadas do opositor. No entanto, se o perigo existe, que jamais minta para sobreviver ou seduzir; que opte por se silenciar à espera de oportunidade para falar o que deve ser dito. Nesse sentido, ele é contrário ao demagogo. É franco não quem fala sempre a verdade e nunca erra, mas aquele que, quando se equivoca, sabe reconhecer o erro e se retratar. Ridículo se torna quem persiste errando ou reafirma, de forma compulsiva, a mesma mentira diante de um público que já sabe o que se passou. Dele é exigido apenas um dos mais dignos bens públicos: ser honesto com os outros e consigo mesmo.
Não é preciso ser ingênuo. Não existe uma forma de garantir a verdade absoluta de um falar e a veracidade de quem o diz. Impor isso é criar um regime totalitário. Além disso, o falar é minado pela dualidade: nas eleições, uma linguagem da sedução, da polêmica e das boas intenções; após, a das coerções e da prova pela ação. Assim, os populistas parecem ser francos, mas eles vendem um engodo: falam para agradar, prometem o que não podem. O discurso é negado logo após a tomada de posse. E é comum que persista negando que havia mentido e que nunca quis fazer o que prometeu. A culpa será dos outros.
Como batalhar, então, em prol de um falar verdadeiro? Pelo engajamento-cidadão. Contra as mentiras, desconstruindo-as passando pelo crivo do método (fact checking e word checkers). Contra os monólogos, defendendo debates substantivos, construindo organizações civis que fomentem o discurso franco, argumentado e programático. E contra o moralismo de “cidadãos de bem” ou do “politicamente correto”, assumindo que o falar verdadeiro não é negar a política, mas sim aceitar que ela é uma tentativa – impossível, mas desejada – de conciliar os ideais com o real, jamais podendo ser pautada por meras “boas intenções”.
É chegada a hora da fala franca. Precisamos de mais atores – políticos, intelectuais, jornalistas e cidadãos – que sejam reconhecidos pela franqueza e atitude democrática, que vivam de forma coerente e resgatem o sentido do público. Que eles ocuparão a vida política, isso não é certo; afinal, a política é a arte de viver com o imprevisível, e nada garante que o necessário está porvir.

ANDRÉ MAGNELLI é idealizador, realizador e diretor da instituição de livre estudo, pesquisa, escrita e formação Ateliê de Humanidades (ateliedehumanidades.com).
Sociólogo, professor, pesquisador, editor, tradutor, mediador cultural e empreendedor civil/público. É editor do Ateliê de Humanidades Editorial e do podcast República de Ideias. É editor da tribuna Fios do Tempo: análises do presente. É curador do Ciclo de Humanidades: ideias e debates em filosofia e ciências sociais, co-organizado com o Consulado da França no Rio de Janeiro. Pesquisa na interface de teoria social, tecnociências & sociedade, sociologia histórica do político, teoria antropológica, ética, filosofia política e retórica.
Link para o Jornal do Brasil:
http://www.jb.com.br/artigo/noticias/2018/05/02/por-um-falar-verdadeiro-na-vida-democratica/
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