Na continuidade da série de debates sobre o coronavírus, publicamos o artigo do sociólogo colombiano Hernando Sáenz Acosta que reflete sobre o direito à saúde e a proposta convivialista em face aos desafios oriundos da pandemia em curso, trazendo-nos para tanto uma análise da experiência de privatização ocorrida na Colômbia desde os anos 1990.
Com isso, Hernando gera uma importante reflexão cruzada: aos colombianos (e outros que sofreram um processo de privatização de seus sistemas de saúde) , é dada a oportunidade de refletir sobre a natureza do processo de privatização; e aos brasileiros, é dada a possibilidade de refletir sobre o sistema público de saúde e dos direitos sociais, antevendo quais seriam as consequências de uma privatização avançada.
A. M.
30 de março de 2020
O direito à saúde
em face ao coronavírus:
reflexões a partir da experiência colombiana
Bogotá, Colômbia, 22 de março de 2020
A semana passada li o artigo de Paulo Henrique Martins e fiquei com muita vontade de fazer uma tradução para o castelhano pensando na importância de divulgar a leitura convivialista entre os amigos aqui na Colômbia. Fiquei logo trocando pontos de vista com o André Magnelli sobre a atual situação e, tendo em conta seu convite para participar da conversa, tentei organizar o seguinte texto. O objetivo é apresentar para os amigos de Brasil uma descrição do sistema de saúde colombiano que foi privatizado nos anos noventa do século passado. Começo tentando explicar a lógica geral do sistema e logo enuncio alguns problemas dele, tais como a qualidade do serviço, os problemas de financiamento, a corrupção e finalmente a chegada de grandes multinacionais no setor. São ideias gerais para contextualizar o problema do Coronavírus.
A chegada do coronavírus na Colômbia
Falar da crise provocada por um vírus nos nossos tempos traz a dificuldade de nos demandar respostas rápidas a problemas que precisam de muita atenção para sua compreensão. Hoje, 22 de março de 2020, Bogotá passa pelo terceiro dia de uma medida de distanciamento físico das pessoas (isolamento obrigatório). A mídia colombiana, seguindo os exemplos da mídia internacional, foi criando uma narrativa diante da chegada do coronavírus que contribuiu facilmente para que a mesma população estivesse disposta a se isolar dos outros sob o pretexto de defender a vida dos outros. Ainda assim, os apelos à solidariedade com os idosos, com algumas pessoas que moram na rua ou até mesmo com as trabalhadoras sexuais mostram a capacidade que tem as pessoas para se solidarizar nestas conjunturas.
Uma questão situada como a superlotação dos presídios e as condições nas quais vivem os presos – no dia 21 de março, houve uma rebelião e morreram 23 pessoas que demandavam do Estado uma política clara de prevenção diante do Coronavírus – permite compreender que, assim como eles, a população toda na Colômbia defronta-se com um sistema de saúde precário resultado de 27 anos da reforma pela qual o mercado tornou-se o regulador da vida das pessoas. É sobre isso que vou escrever tentando aportar elementos para os colegas que estão discutindo a importância do SUS no Brasil.
A privatização do Sistema de Saúde colombiano
A Colômbia como outros países da região implementou nos anos noventa reformas profundas nos sistemas financeiros, de saúde, de previdência e de moradia marcados principalmente pelo discurso neoliberal. No campo da saúde foi criada a lei 100 de 1993, na qual promovia-se a criação do que chama Sistema General de Seguridad Social en Salud (SGSS). Criaram-se dois tipos de regime: o contributivo e o subsidiado. A ideia consistia que no primeiro deles participassem os trabalhadores assalariados e seus empregadores assim como trabalhadores independentes com o argumento que eles tinham capacidade para pagar pelos serviços de saúde. Aqueles que não tivessem possibilidade de participar nesse regime participariam do subsidiado, financiado pelo Estado. Segundo os dados para 2019, apontados pelo instituto de estatística da Colômbia, 57,2% da população ocupada estaria no regime contributivo e 23% no subsidiado (DANE, 2020).
Toda a população deve estar vinculada ao SGSS mediante sua inscrição numa Empresa Promotora de Saúde (EPS), que pode ser pública ou privada. Em troca das contribuições monetárias mensais, os usuários podem ter acesso a um plano obrigatório de saúde (POS). No caso do regime subsidiado também existe um POS. Quando a pessoa adoece ela pode utilizar a sua EPS e um profissional de saúde (médico geral) encaminha para o atendimento especializado se precisar, sendo os exames e alguns tipos de serviços oferecidos pelas Instituições Prestadoras de Serviços de Saúde (IPS). Quando trata-se de uma emergência, as pessoas podem ir diretamente às IPS registradas em cada EPS para serem atendidas. Uma alternativa aos problemas de qualidade no atendimento foi a oferta de pacotes de serviços que podiam ser adquiridos realizando contribuições monetárias adicionais. Foi assim como surgiram os planos complementares e os planos voluntários. Foi uma segmentação de mercado na qual aquelas pessoas com maior renda puderam contar com maior qualidade no serviço.
Os problemas oriundos da mercantilização do direito à saúde
1. Como acontece com as coberturas dos serviços básicos (água, energia), no campo da saúde as coberturas são quase universais. Os problemas têm a ver então com a qualidade dos serviços prestados. Em uma notícia publicada em 2018, que apresentou os resultados de uma pesquisa feita pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) sobre a qualidade dos serviços de saúde na Colômbia, mostrou que as coberturas eram altas, mas que 70% dos usuários estavam insatisfeitos com o Sistema. Além disso, só 30% desses usuários podiam se beneficiar da atenção primária do sistema, o que se refletia nos serviços de emergências. O cotidiano de uma pessoa que vai em uma IPS por esse sistema está marcado pela demora na triagem e inclusive na negação do atendimento, chegando a ficar conhecido no imaginário a expressão “Carrossel da morte” (Carrusel de la muerte), uma situação na qual as pessoas sem atendimento morriam sem serem atendidas nas IPS.
O problema de qualidade deve ser posto em discussão tendo em conta também o fato de existirem dívidas não pagas das EPS para as IPS. Segundo outra nota de imprensa de 2017, calculava-se uma dívida de 10 bilhões de pesos mas as EPS só reconheciam a metade. O problema estava na ausência de uma lei que aclarasse esse tipo de preços dos serviços de saúde. As EPS além disso podem atrasar as quantidades a pagar com o que colocam em risco as IPS (hospitais e clínicas). O usuário é finalmente quem deve se defrontar com hospitais e clínicas que não têm a capacidade financeira para responder adequadamente aos serviços de emergência. Quando os recursos são poucos, essas IPS terminam apelando ao sistema de crédito ou utilizando suas poupanças. Neste ponto é importante lembrar que muitas IPS são públicas e que a sua crise financeira passa necessariamente pela demora nos pagamentos dos serviços que prestam às EPS. Na atual conjuntura, o Ministério de Saúde reforçou a obrigação das EPS e IPS de tomarem as amostras daqueles pacientes com suspeita de COVID-19, as quais logo são enviadas ao Instituto Nacional de Saúde, o que implica um custo adicional para as EPS, o que pode levar a uma identificação tardia dos casos.
2. Outras problemáticas estão associadas à corrupção, à informalidade e aos problemas nas áreas de regulação e controle. São conhecidos casos de estafa como o caso Saludcoop, uma EPS que foi administrada por um corretor da bolsa de valores que utilizou os recursos que possuíam para ampliar sua própria rede hospitalar e comprar outras EPS, a fim de ocupar uma posição dominante no mercado ao invés de pagar as dívidas contraídas com outras IPS. Essa situação, que começou nos fins do passado século, ainda hoje é objeto de controvérsia. Esse caso é interessante também porque a EPS começou no regime subsidiado e, após uma acumulação de capital inicial, decidiu passar ao regime contributivo.
3. Finalmente é importante assinalar uma característica própria do capitalismo neoliberal, como o peso das multinacionais no setor da saúde que acarreta piora do atendimento por Coronavírus. Trata-se das aquisições, das fusões empresariais e das integrações. A chegada desses conglomerados internacionais faz pensar numa situação recorrente, como a de promover uma concentração na rede de oferta, levando a situações já conhecidas onde a proliferação de oligopólios e monopólios atenta contra a qualidade no atendimento dos usuários e gera uma saída de capitais da periferia para os países do norte.
Coronavírus, uma oportunidade para se recolocar os direitos sociais
Os tempos de Coronavírus podem facilmente ser usados como oportunidade para falar das falhas estruturais dos nossos sistemas de saúde, sejam públicos ou privados; mas também como pretexto para se avançar na privatização dos direitos sociais.
Nesse sentido, considero importante ter presente a visão do sistema de saúde existente na Colômbia, tanto para nós próprios, colombianos – o que ninguém está discutindo neste momento –, quanto também para nossos amigos sul-americanos, de forma a refletirem, de forma comparada, sobre os eventuais problemas de seus sistemas privatizados de saúde (como no Chile) ou, então, sobre a importância da manutenção e do fortalecimento de seus sistemas públicos (como o SUS no Brasil)
Na Colômbia, fala-se muito de não colapsar os serviços de emergência mas não sabemos como chegamos até esse ponto. Dados apresentados pelo jornal El Espectador mencionam que, se o Sistema de Saúde não seguir as medidas de contenção e mitigação, aproximadamente 750.000 pessoas poderão ficar em estado severo e crítico, mas só teriam capacidade para 100.000 camas nos hospitais e delas somente 10% para cuidados intensivos.
Uma forma de enfrentar o problema passa pelo auto-cuidado, mas vale a pena pensar na importância do Estado na garantia do direito à saúde. É importante observar se essa ameaça de crise pode se apresentar nos outros países que possuem sistemas regulados pelo mercado. Uma lógica de incentivos e sanções próprias desse pensamento utilitarista faz com que sejam mais importantes as expectativas de lucro dos prestadores dos serviços de saúde que um debate sobre uma reforma do sistema.
Situações semelhantes acontecem no plano da Previdência Social, depois que se criaram leis para promover a gestão de fundos de poupança individual que, 25 anos depois, começam a exigir uma reforma, não tanto para os que estão se aposentando, senão para manter os lucros num país onde 47% dos trabalhadores são informais e a pirâmide populacional começa a experimentar mudanças na sua composição. Assim como a questão da moradia, na qual as empreiteiras chegaram a receber inclusive apoio para a construção de grandes operações de moradia social com péssimas condições de localização e de qualidade promovendo novos guetos urbanos. E finalmente, isso aplica também a um sistema financeiro que ganhou um corte neoliberal nos anos noventa, favorecendo altos lucros para um serviço excludente e uma população excluída que tem que recorrer aos sistemas informais igualmente onerosos. O sistema carcerário seria outro ponto para discutir.
Cabe lembrar que nestes momentos de crise é quando os investidores aproveitam para aumentar seus lucros. É o caso da indústria farmacêutica. Se sugere observar não só os mapas da expansão do vírus, como também os caminhos que seguirão os investimentos a nível internacional. Afinal, a crise de 2008 foi um exemplo de como os Estados favoreceram as grandes corporações, e esta crise de 2020 poderá aparecer como uma nova oportunidade de negócios financiados ou oportunizados pelo Estado.
Enfim, para os Convivialistas, tendo em vista a proposta de Paulo Henrique Martins em seu artigo, é importante assinalar estes aspectos na procura por novas políticas públicas ou pela possibilidade de ensaiar outras formas de viver que previnam os processos de adoecimento, passando pelas condições de trabalho até a conquista de uma soberania alimentar que possibilite uma alimentação saudável e sem agrotóxicos. No campo do acesso aos serviços de saúde, penso que a proposta convivialista significa ousar pensar em outros modelos de saúde pública e em outras formas de gestão mais democráticas e completamente universais.
Referências
Departamento Administrativo Nacional de Estadística DANE (2020) Boletin Técnico Gran Encuesta Integrada de Hogares GEIH.
El Espectador (2020) Esta es la situación del coronavirus en Colombia en tiempo real.
Guerrero, R; Gallego, A; Becerril-Montekio, V & Vásquez, J (2011). Sistema de Salud en Colombia. En: Salud Pública 53, Suplemento 2: S144-S155.
Jiménez, G (2017) El carrusel de deudas de la salud. En: Diario El Colombiano.
Jiménez, J & Duran, D (2015). Saludcoop: lo que fue y lo que está por venir. El Espectador.
Ministerio de Salud. Ministro recordó que EPS e IPS deben tomar muestras para COVID-19.
Revista Dinero. ¿Qué pasa con la calidad del sistema de salud en Colombia? 11 de Enero de 2018.

Hernando Sáenz Acosta é economista, professor da Faculdade de Sociologia da Universidade Santo Tomás, Bogotá, Colômbia. Livre-investigador parceiro do Ateliê de Humanidades, é economista e doutor em planejamento urbano e regional, dedicado aos estudos urbanos desde uma perspectiva convivialista.
Como citar este artigo?
SÁENZ ACOSTA, Hernando (2020), O direito à saúde em face ao coronavírus: reflexões a partir da experiência colombiana. Fios do Tempo (Ateliê de Humanidades), 30 de março. Disponível em: https://ateliedehumanidades.com/2020/03/30/fios-do-tempo-o-direito-a-saude-em-face-ao-coronavirus-reflexoes-a-partir-da-experiencia-colombiana-por-hernando-saenz-acosta/
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