Aumentando o poder de uma comunidade, ela não mais atribui tanta importância aos desvios do indivíduo, porque eles já não podem ser considerados tão subversivos e perigosos para a existência do todo: o malfeitor não é mais “privado da paz” e expulso, a ira coletiva já não pode se descarregar livremente sobre ele – pelo contrário, a partir de então ele é cuidadosamente defendido e abrigado pelo todo, protegido em especial da cólera dos que prejudicou diretamente. O acerto com as vítimas imediatas da ofensa; o esforço de circunscrever o caso e evitar maior participação e inquietação; as tentativas de achar equivalentes e acomodar a questão (compositio); sobretudo a vontade cada vez mais firme de considerar toda infração resgatável de algum modo, e assim isolar, ao menos em certa medida, o criminoso de seu ato – estes são os traços que marcaram cada vez mais nitidamente a evolução posterior do direito penal.
Se crescem o poder e a consciência de si de uma comunidade, torna-se mais suave o direito penal; se há enfraquecimento dessa comunidade, e ela corre grave perigo, formas mais duras desse direito voltam a se manifestar. O “credor” se torna sempre mais humano, na medida em que se torna mais rico; e o quanto de injúria ele pode suportar sem sofrer é, por fim, a própria medida de sua riqueza. Não é inconcebível uma sociedade com tal consciência de poder que se permitisse o seu mais nobre luxo: deixar impunes os seus ofensores. “Que me importam meus parasitas?” , diria ela. “Eles podem viver e prosperar – sou forte o bastante para isso!”… A justiça, que iniciou com “tudo é resgatável, tudo tem que ser pago”, termina por fazer vista grossa e deixar escapar os insolventes – termina como toda coisa boa sobre a terra, suprimindo a si mesma. A autosupressão da justiça: sabemos com que belo nome ela se apresenta – graça; ela permanece, como é óbvio, privilégio do poderoso, ou melhor, o seu “além do direito” .
F. Nietzsche. Genealogia da Moral, Segunda dissertação: “Culpa”, “Má consciência” e coisas afins”, 10, p. 56-57 (Editora Companhia de Bolso).
Imagem: Escultura do dinamarquês Jens Galschiot.
Achado de Marco Aurélio de Carvalho Silva
Deixe uma resposta