Recontar o passado pela ética do care para construir uma “ética do futuro” – por Carolina Pombo

Recontar o passado pela
ética do care para
construir uma “ética do futuro”

Carolina Pombo de Barros

Ao reagir ao Manifesto Convivialista, visitei o passado. Ao falar de um “novo humanismo” o manifesto nos convida à reapropriação do passado, um que nos ajude a olhar a humanidade em sua diversidade. Ele nos orienta mais precisamente à uma “ética do futuro”, mas nos dá algumas dicas sobre o peso do passado, que eu gostaria de aprofundar e de certa forma usar como crítica a um “novo humanismo” que temos o risco de fundar.

Minha visita ao passado me leva a crer que uma das tarefas mais urgentes nas ciências sociais e humanas consiste em revisitar conceitos e teorias que conformaram o que entendemos hoje de maneira mais generalizada o que é “humano” e o que é “sujeito humano”. A “mãe de todas as ameaças”, diz o texto, é a nossa tendência a continuar realizando impressionantes progressos técnicos e científicos numa lógica que não resolve (e em certa medida intensifica) os dilemas da violência, da falta de cooperação e da (auto)destruição da natureza (p.25). E, por causa dessa singela pista e dos meus interesses atuais de pesquisa e de ação associativa, vou me referir à “mãe”. A mãe do passado, aquela que foi objetificada em cada uma de quase todas as teorias filosóficas e psicológicas da natureza humana – aquela que serve de alegoria primordial do chamado “desenvolvimento emocional”, do “tornar-se sujeito”, da ética do desejo – essa mesma. Essa que foi observada e convocada diante das observações das ausências de cuidado pelos teóricos do desenvolvimento humano, na verdade, pouco espaço teve para contar sua versão da história. E uma das tarefas mais importantes e difíceis que temos diante de uma ética do futuro é a de revisitar o papel do cuidado na conformação de sujeitos humanos que possam conviver sem contar irrefletidamente com cuidadoras por natureza. A ética que o Manifesto nos exige é também uma que orienta a olhar a história da humanidade pelo prisma de quem foi por muito tempo invisibilizada.

Na história da psicanálise e da psicologia, a condição fundamental para que o bebê humano passe a sujeito de desejo é a estabilidade nas relações primitivas – estabilidade teorizada pela observação de famílias nucleares burguesas e mais ainda pela crítica à institucionalização precoce das crianças. Idealmente, a mãe serviria como espelho, transmitindo seu próprio desejo pela criança, pelas tarefas primordiais do cuidado, que implicariam profundamente seu corpo, seus sentimentos morais e seu tempo. A base da função materna seria sua natureza: o corpo feminino. Enquanto isso, o bebê se perceberia como pessoa única e ao mesmo tempo desejada, vivenciando diferentes estágios de maturação, dependência e independência, até encontrar a “idade da razão” e passar a “sujeito desejante”.

A história do “ser humano” nas ciências humanas é aquela porém que contrapõe gente e bichos, cultura e natureza, razão e emoção, trabalhadores e cuidadoras. Depois que Freud revelou ao projeto da modernidade que “o ego não é senhor de sua casa”, mas que o desejo é constituinte da subjetividade humana, ainda levamos muito tempo para começar a entender que a razão não seria capaz de humanizar o mundo, não sem os afetos morais, o “senso de dever” que também motiva o trabalho (p.44). Porém, hierarquizou-se estágios de desenvolvimento individual e estágios de amadurecimento moral, nas ciências e na política, que hierarquizaram os gêneros humanos (Gilligan, 1985, 2003). Segundo essa escala moral, as mulheres, vistas como naturalmente inclinadas ao cuidado, não seriam tão racionais quanto os homens, e teriam seu papel social numa escala inferior da economia, não produzindo “bens comercializáveis” (Brugère, 2011). Na verdade sempre se supôs que o trabalho doméstico é feito por motivação afetiva, solidária, mas por isso mesmo ele foi economicamente desvalorizado. O dilema que precisa ser encarado definitivamente é que o trabalho humano é dependente em enorme medida do trabalho doméstico e do trabalho do cuidado, ou seja, do cuidar de si e dos outros de maneira interessada, e que esse papel social não pode ser restrito a um gênero e a classes subalternizadas mas precisa ser incorporado na temporalidade do “sujeito humano” – no “princípio de comum humanidade” (p.54) proposto pelo Manifesto. Isso não se dará imediatamente por uma tomada de consciência da natureza da qual somos feitos, mas depende de fazer circular nos espaços públicos com mais frequência e mais poder de fala (também na produção de bens comercializáveis) as mulheres. É nisso que consiste uma epistemologia feminista da ética do care (Paperman, 2013).

A ética do care, por sua vez, não se baseia no desejo como estatuto fundante do sujeito, mas volta-se para as práticas, para o presente das relações entre cuidadores e pessoas dependentes, para as possibilidades reais de negociação e disponibilidade entre elas. Nessa relação, pode haver um consentimento sobre o desejo do outro-dependente, ou pelo menos, sobre o potencial que o sujeito tem de desejar. Mas nem sempre esse consentimento é compreendido ou aceitável. Quem cuida está numa posição instável o tempo todo: entre a necessidade de cuidar, o desejo do outro, o próprio desejo e o não-desejo de se devotar. Não é imperativo que uma mãe deseje cuidar para cuidar bem. Ao mesmo tempo, não podemos supor que toda prática de cuidado ocorrerá satisfatoriamente independente do desejo. O imperativo é reconhecer que essas relações de interdependência são constituintes da natureza humana, e continuarão a existir de forma mais ou menos justa para todos os sujeitos implicados de acordo com a visibilidade que daremos à ética do care na “ética do futuro”.

Para que um sujeito se aplique no cuidado de outro é necessário que ele reconheça sua própria condição de vulnerabilidade e não faça do outro-dependente um contra-exemplo de si (Brugère, 2011). Esse tipo de dinâmica é observável entre pessoas que já desempenham essa função rotineiramente e que encaram a dependência não como espécie de palco para o exercício do poder mas como reflexo mesmo de suas próprias necessidades – o que foi, de certa forma, teorizado pela psicanálise ao observar o concernimento entre mães biológicas e bebês. A diferença é que, a partir de um olhar feminista sobre o cuidado, o sujeito não se constitui da des-naturalização, mas pelo reconhecimento mesmo de sua natureza interdependente. Por isso, as relações de cuidado devem sempre ser múltiplas, atravessadas por diferentes pessoas encarregadas, tendo em vista que nenhuma pode se considerar capaz de originar totalmente a subjetivação do outro – todos precisam de algum nível de reciprocidade, todos precisam de cuidado, independente da anatomia sexual.

Essa anedota da relação mãe-bebê nas teorias e políticas dos séculos passados apenas simplifica a odisséia já explorada e revisitada por tantas feministas. Os anos 1970, marcados pelo Manifesto como o início do aumento exponencial do desgaste da natureza (p.65) e na explosão das “desigualdades vertiginosas” em todos os lugares entre os mais ricos e mais pobres (p.78), foram precisamente anos de fortes reações feministas nas agendas políticas em diversos países, foram anos marcantes para a emergência de um Feminismo de Estado (Bessin & Dorlin, 2005) que se não conseguiu colocar em pauta todas as demandas dos movimentos femininos, conseguiu ampliar gradualmente a participação das mulheres na democracia. A segunda metade do século XX marca, afinal, a conquista do direito ao aborto legalizado e assistido por instituições de saúde em muitos países, depois da criminalização instaurada no século XIX – que, assim como a emancipação do estatuto das mulheres no casamento e nas heranças de família, motiva um enorme e gradual ganho de autonomia, não sem resistências e regressos pontuais, mas sempre como referência fundamental para as mulheres que ainda vivem sob o peso moral do passado.

Dizer isso significa reconhecer que a “crise do cuidado” tão frequentemente datada a partir dos anos 1970 e coincidida com a aceleração do neoliberalismo coincide também com a inserção crescente das mulheres no mercado de trabalho. Sim, sabemos que “a explosão das desigualdades vertiginosas (…) entre os mais ricos e o resto das populações” é de enorme relevância para pensarmos a ética do futuro. Porém, antes, é preciso enfatizar, mais do que a menção que faz o Manifesto na página 19, uma paridade entre homens e mulheres cada vez mais realizada nas esferas públicas que não tem encontrado suporte na socialização do cuidado das crianças. O que intensificou a crise global desde os anos 1970 foi uma retórica de desresponsabilização dos Estados quanto ao cuidado enquanto as cuidadoras por natureza ganhavam mais espaço nos mercados.

Mas esse processo de mercantilização da saúde, da educação das crianças, do cuidado dos idosos etc que vem acontecendo também com a participação da mão de obra feminina, não pode ser interrompido por uma ação heróica das mulheres em prol de uma “economia solidária”, ainda que se reconheça a importância delas na emergência de formas criativas de se articular economia e solidariedade. Esse processo de mercantilização e crise deve ser respondido pela incorporação da ética do cuidado nas políticas públicas, com uma promoção mais enfática da responsabilização dos homens pelo trabalho doméstico. Isso significa defender uma “política de redistribuição dos empregos [que] só poderá ganhar toda amplitude e ter efeitos potencialmente significativos se combinada com medidas de diminuição do tempo de trabalho e com forte incentivo à expansão da economia associacionista (social e solidária) (p.80)” – acrescento: que seja dirigida à todos os trabalhadores, em especial aos homens. Uma proposta como essa precisa ser melhor esclarecida para não resultar em ações nas quais as mulheres, e mais precisamente as mães, continuam a ser focalizadas – ações que vem no bojo de retóricas internacionalizadas, como a do “empreendedorismo”, do “investimento social”, e do “micro-crédito” associados a atividades artesanais e/ou de cuidado tipicamente femininas. Essas ações tem a nobre intenção de combater a feminização da pobreza e de contribuir para que as mulheres conciliem “vida familiar e vida laboral” mas não são eficientes na transformação da divisão sexual do trabalho em longo prazo (Guérin, 2011; Jenson, 2001).

Finalmente, recolocar a ética do care na ciência é também recontar o passado do ponto de vista ontológico de “setores inteiros da realidade que ela negligenciou consciente ou inconscientemente” (p.48). Isso converge com a proposta de combater o “tudo econômico” nas ciências, mas também de combater a visão de que os afetos morais e a interdependência são dimensões antagônicas ou subalternas à economia. Grande desafio a encarar.

Referências:

Bessin, M., & Dorlin, E. (2005). « Les Renouvellements Générationnels du Féminisme: Mais Pour Quel Sujet Politique? » L’Homme et La Societé, 4(58), 11–27.

Brugère, F. (2011). L’éthique du care. Paris: PUF.

Gilligan, C. (1985). In a different voice: Women’s conceptions of self and of morality. New Brunswick: Rutgers University Press.

Gilligan, C. (2003). O nascimento do prazer. São Paulo: Rocco.

Guérin, I. (2013). « L’expérience vécue de la microfinance », Cultures & Conflits [En ligne],

Jenson, J. (2011). « Politiques publiques et investissement social: quelles conséquences pour la citoyenneté sociale des femmes? » Cahiers Du Genre, 3(2), 21–43.

Paperman, P. (2013). Care et Sentiments. Paris: PUF.

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por Anders Noren

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