Da Independência para a Interdependência:É a hora de descer do muro – por Julia Stadler

Da Independência para a
Interdependência:
É a hora de descer do muro

Julia Stadler

Um manifesto, por mais que seja voltado para o mundo, é a reflexão de uma postura interna de quem assina. É uma declaração pessoal de um sujeito para a massa incógnita dos demais. Portanto ofereço aqui um recorte do meu discurso interno sobre o tal dilema da interdependência. Convido vocês para me acompanharem ao pensar e repensar as estruturas nas quais vivemos, nossos hábitos e as dificuldades que enfrentamos quando decidimos desertar.

Quando li o Manifesto Convivialista pela primeira vez eu me senti contemplada. Mais. Me senti acolhida. Reconhecida. Em casa. Muito do que venho pensando e praticando, muitos objetivos que aceitei como desafios para minha vida, estão ali. Sou militante em várias causas, que para mim, são todas conectadas. A luta pelo campo é inseparável da luta pela cidade, é inseparável da luta por direitos civis. Todas elas são lutas por uma única dignidade. Mas voltando, senti um sopro de energia e uma vontade absoluta de escrever este comentário. Coincidiu com a minha participação como ouvinte no seminário „Ciências Abertas“ no Ibict. Fiquei maravilhada com essa perspectiva de fazer parte de um coletivo, de ter tantos exemplos a seguir e deixei a minha criatividade correndo solta. Mas passado esse primeiro momento de alegria, recuei, fiquei em dúvida e por último, fiquei sem saber o que escrever. Pois o nosso senso crítico – quando alguém nos fala da utopia – nos faz procurar o lado sombrio dela. E aí começou a análise de falhas. Mergulhei no fundo do baú das minhas experiências dolorosas. E não estou falando da vida lá fora, estou falando das experiências dentro dos movimentos, aqueles que prometem fazer melhor e nem sempre conseguem. E a vida lá fora também não está tão bem. Chegando no auge da campanha eleitoral, fica claro que a sociedade brasileira não está vivendo o momento mais feliz do ponto de vista da interação humana. Estamos divididos e parecemos ter perdido a mínima capacidade de abstrair. De repente parece ter um certo e um errado absoluto, combinado com uma decadência total de argumentação. „Não estou aqui para te convencer“ em vez de uma resposta com argumento. Excluímos aquele cuja fala não cai no nosso gosto. Quem está a favor de x, saia do meu círculo de contatos. Ou seja, não estamos convivendo. Não aceitamos a energia do outro e assim ficamos cada vez mais tensos e cada vez menos conectados. Mas vendo esse momento pelo outro lado, este livretto veio pra mim na hora certa. As turbulências dentro dos grupos de militância que eu convivo e o impasse social em torno das eleições, tenho a forte impressão que quase tudo isso se deve às dificuldades de superarmos as estruturas herdadas e de reconhecermos a necessidade humana de convivermos como os interdependentes que somos. Aí o manifesto é um lembrete de não se desesperar. Pois se tudo fosse tranquilo, não precisaríamos de um manifesto, certo? Estamos no meio de um caminho e não no final. Como montanhista, esse momento me parece muito parecido com a escalada de uma via que nunca escalei antes. Não sabemos ainda por onde vamos, mas nos une a fé de que algum caminho já existe. Temos suficientes parâmetros, ferramentas e técnicas diferentes para descobri-lo e não vou me deprimir com as experiências dolorosas e sim analisá-las. Ao final, para que sou cientista social?

Pois bem, antes de mais nada. Experiências pessoais a princípio são experiências de uma pessoa e como tal não representativas. Mas tenho certeza que muitos de nós vivemos o mesmo dilema cotidiano: como controlar o fluxo das nossas experiências sociais particulares de forma metódica para que não caiamos na tentação indutiva de fazer do nosso mundo o mundo? As experiências que eu vivo na sua singularidade não podem significar – automaticamente – que isso seja uma realidade generalizada. Eu não sou o centro do universo. Porém. Quando as nossas experiências voltam a aparecer sistematicamente e em diversos contextos e ambientes, elas podem indicar um padrão. A nossa responsabilidade, então, é de evoluir a nossa consciência e de ficar ligado ao mundo. É de algumas observações minhas que quero falar aqui.

Muros

Sou alemã e nasci no início da década dos 80. Nunca toquei, nem sequer vi o tão famoso muro. Não lembro do dia que ele caiu. O meu pai estava internado e acredito que isso possa ter desviado a minha percepção das coisas. Mas eu lembrei como hoje das visitas da minha família do outro lado e as duas vezes que eu mesma atravessei a fronteira. Lembro que eu estranhava demais como eles adoravam comer frutas exóticas, chocolate e café, pois não tinham acesso do lado de lá. Lembro que na minha infância os do lado de lá e nós tínhamos apelidos um pro outro, fizemos piadas (muitas sobre bananas, chocolate e café) e passado este momento de euforia de 1989, lembro de muito constrangimento na tentativa de se tornar um país. Hoje só tem um país e o meu sobrinho de 10 anos não tem uma associação direta com os apelidos que a geração dos seus avôs ainda usa de vez em quando. Eu não os uso ou escuto há tanto tempo que da última vez que alguém os falou, estranhei. Eu conto tudo isso, pois tem um ditado brasileiro que muitas vezes vem na minha cabeça e do qual eu não conheço uma tradução para o alemão: ficar em cima do muro. Escuto ele com muita freqüência e para mim, no início, foi uma imagem bastante estranha. A minha criação não permitia ficar em cima do muro. Mas para ser sincera, ela também não permitia escolher lados. O ditado brasileiro, por mais que na maioria das vezes seja usado para te tirar do muro, me abriu essa liberdade. Você pode estar em cima do muro e tem dois lado para você pular.

Mas assinando o manifesto convivialista agradeço essa liberdade e abdico dela no mesmo instante. Pois não tem como conviver ficando em cima do muro. O nosso desafio por hora é desconstruir os muros. E não falo só dos muros econômicos e sociais – olhando um mapa socio-econômico da Alemanha vocês vão achar num instante a fronteira. Penso aqui sobre tudo nos muros habituais. Aqueles grandes e pequenos gestos de manter o outro do lado de lá, sejam estes outros nordestinos, gaúchos, gays, héteros, ateus ou adeptos de uma crença diferente da minha. A minha empregada é uma das falas mais representativas para estes muros. Ela é a outra, do lado de lá, não tem nome e muitas vezes fica invisível. É minha, e só. O cargo dela nem merece especificação. Tem muros que se tornam a nossa zona de conforto. Muros tão altos ou largos que não enxergamos os dois (ou mais?) lados dele e que parece mais seguro ficar andando em cima dele. O famoso deixa quieto, isso não se discute, melhor pagar um café do que uma multa.Mas naturalmente há os muros físicos com cacos ou arame farpado que mostram o nosso medo dos outros, muros para conter o crescimento das favelas na Zona Sul do Rio de Janeiro e os muros entre bairros de classes sociais diferentes em São Paulo. Há tantos muros por aí…enfim, vocês entenderam.

Sobre a Liberdade

Fiquei encantada com o jogo de palavras da declaração de interdependência. Como alguém que estuda e trabalha com história e política comparada, eu li tantas declarações de independência que perdi a conta. Em todas elas, alguém se liberta de um outro, muitas vezes de um algoz. Com isso a independência virou um objetivo de todos, quase um direito natural. E uma declaração é um sinal que existe um processo de empoderamento. Desse ponto de vista eu acho isso fenomenal. Precisamos de uma certa independência para ser livres. Mas eu observo que essa nova independência pode ter se tornado contra nós mesmos ao levar-nos a acreditar que ela significa não precisar mais conviver com os demais e consequentemente não mais enfrentar todas as dificuldades da convivência humana. Agora todo mundo que não vai na nossa linha pode ser um possível algoz. Lembro que uma vez dentro de um movimento do qual faço parte tiramos satisfação com um grupo que na visão da maior parte do nosso coletivo cultivava estruturas que violavam o código de conduta e os nossos objetivos como coletivo. Alguns saíram e fundaram uma rede independente. Mas independente de que ou de quem? Do compromisso ou das pessoas que questionam a sua coerência? O poeta Sergio Vaz resumiu essa delicada diferença entre independência e interdependência de forma muito bonita quando escreve que Ser livre te da o direito de ficar preso a quem você quiser. Só anotaria que a liberdade não tira de você a responsabilidade da escolha.

O dilema da independência argumentativa

Quem não gosta muito da analogia do muro talvez se identifique mais com a escada da argumentação. Essa escada tem me dado muita dor de cabeça. Mas cada um de nós a conhece. Vou dar um exemplo: A diz: isso deveria constar no site como informação. B diz: Está no site. A diz: Pois deveria estar mais destacado. Todos entenderam que A culpou a plataforma sem ter verificado se ela continha a informação. Todos, menos ele. Pois ao perceber que o argumento não convenceu, ele tirou outro da cartola. Só faltava dizer nem é por mim, é pelos outros. E essa escada pode se tornar eterna: A diz: A linha está piscando. B diz: O pisca-pisca deixa o leitor confuso. É como uma teoria de conspiração, ela sempre se auto-justifica e sempre se auto-alimenta. Eis a grande diferença entre independência e interdependência. Nesta conversa um dos dois lados não se alimenta do outro argumento. Ele se entende como auto-suficiente, como independente. Mas uma discussão saudável é de posições interdependentes. Numa dessas, a fala de B guiaria a resposta de A. A precisaria da colocação de B. Esse habito dificulta tanto a nossa convivência por não deixar abertura para ceder, por nunca ouvir ou outro de verdade. Esse reflexo tem me dado dor de cabeça porque ele é tão difícil de ser arrancado. Uma vez que criamos este habito, ele cola. É aquele instinto de auto-defesa, auto-justificativa potencializado ao máximo.

Entre Pares

Refletindo sobre o manifesto, lembrei de uma história em qual um historiador falou para uma colega mais jovem “você não sabe, você não estava lá“. Parece piada, pois certamente a maior parte dos historiadores não estava lá, mas não é. É um exemplo vivo do grande desafio da nova geração Y, das iniciativas horizontais, do mundo peer to peer: desapegar da necessidade de ter mais peso, mais experiência, mais cultura, mais poder. Primeiro, um historiador que exige do outro presença física deslegitimiza a casta toda e consequentemente ele mesmo. Ou seja, a falta de reconhecimento para a nossa interdependência pode ser o famoso tiro no próprio pé. Pois em alguma esfera estamos conectados. Neste caso os dois são da mesma profissão, fato que o historiador mais velho simplesmente ignorou quando argumentou pela idade. Segundo, o questionamento do outro, independente (agora sim!) de honras, títulos, anos de vida ou outras variáveis clássicos do poder, é mais uma ferramenta que nos leve juntos ao objetivo do conhecimento maior. Com os artistas do funk carioca aprendi a seguinte frase „quem é de somar, cola“. Cada um tem o seu valor, cabe a nós valoriza-lo.

Isso tudo me leva ao maior desafio da interdependência, da educação inter-pares. Do reconhecimento que cada um de nós é naturalmente aluno e professor, e da responsabilidade de preencher essa função com vontade e energia. Tenho a impressão que há um padrão de declínio. Vejo cada vez menos pessoas assumirem a responsabilidade do papel de educador. Pais que delegam a educação dos filhos, estados que não legalizam e burocratizam a educação mas não valorizam os professores. Regras classistas que não valorizam o aluno, mas sim a meta. O conhecimento é interdependente. O pensamento pode ser livre, mas se não compartilhado com outros, ele nunca se transformará em conhecimento vivo.

Resumindo. Todo dia encontro um desafio para a minha consciência, para mostrar que reconheço que sou apenas um par entre outros. Ao ler e reler o manifesto mergulhei nas minhas próprias experiências peer to peer e percebi que o maior desafio em quebrar as estruturas sociais, econômicas e ambientais é o reconhecimento da interdependência. As causas em comum podem nos conduzir e juntar, mas a convivência, fazemos e cultivamos nós. Antes de regras, ela é um estado de espírito. É um desapego e ao mesmo tempo a responsabilidade de ter firmeza. Desapego não significa estar inconsciente ou desatento. É justamente o contrário. Precisamos oferecer algo para o outro. Precisamos ser fortes sem força. Precisamos nos fortalecer.

Conviver não é preciso, mas é necessário.

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por Anders Noren

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