Falando de solidariedade e de necessidade – por Renata Reis

Falando de solidariedade e de necessidade

Renata Reis

Uma breve reflexão sobre o Manifesto convivialista é em si um desafio de síntese. Cada parágrafo ou “eixo” pode trazer páginas e páginas de debates e perspectivas. Provocada a escrever as minhas “cinco páginas” opto por dividir aqui as minhas duas primeiras sensações originais ao terminar de ler o manifesto pela primeira vez. As elaborações e inquietudes da segunda leitura me pareceram até um pouco mais sofisticadas, mas fico com a pedra bruta da primeira.

A primeira sensação foi a de ser uma ideia fundadora atualíssima, necessária, mas de alguma maneira não original. Queria entender de onde vinha a percepção. Claramente o mote conhecido dos movimentos anti-Davos me assaltaram, “um outro mundo é possível”. Mas sim, todas as manifestações populares de enfrentamento ideológico às máximas neo-liberais estavam presentes no manifesto, sendo chamadas então de altermundialistas e, ao meu ver, o manifesto busca extrair o mais profundo e unificador sentimento de todas as mais diversas manifestações de oposição ou questionamentos dos últimos anos, destacando a convivência, a cooperação e a rivalidade, nomeadamente a rivalidade positiva.

A sensação de familiaridade se mantinha e se aprofundava enquanto lia o manifesto e me lembrei de uma frase que ouvi há anos, cunhada pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, a respeito da epidemia de AIDS e das pessoas que sofriam toda a sorte de estigma e discriminação nos anos 1980\19901: ‘a AIDS não é mortal, mortais somos todos nós. A AIDS terá cura, e o seu remédio hoje é a solidariedade’. Num jargão simples e inteligível com o potencial efeito de estancar a paranoia e o desespero do fatalismo, Betinho já dizia que a solução para o discurso da iminência da morte era a valorização da vida e a vivência pragmática da solidariedade, do acolhimento, da comunhão, do cuidar do outro, do viver a vida apesar da AIDS. Os grupos, organizados a partir da disseminação da AIDS nos anos 90, passaram a se chamar grupos de pessoas vivendo e convivendo com a AIDS. Convivendo, partilhando experiências, administrando a rivalidade e o medo e opondo-se à morte.

De lá pra cá muitos fatos se sucederam em relação à epidemia de AIDS que, se ainda não resultou na cura clínica, conseguiu a partir de mobilização e solidariedade, trazer para a opinião pública a face vergonhosa do descompasso entre os progressos técnicos e científicos da humanidade e seu próprio bem estar. Pode-se dizer que o movimento extraordinário em torno da AIDS foi capaz de ser decisivo para pautar temas que transcendiam a própria AIDS. A despeito de todos os avanços sobre a compreensão sobre patologias, formas de prevenção, diagnóstico e tratamento, o respeito ao direito basilar de manter-se vivo continua negado sistematicamente a populações inteiras. A visão e a aceitação do mundo a partir da economia é a que permite que aceitemos que tecnologias conhecidas, que salvam vidas, sejam privativas àqueles que podem pagar por elas. O mundo, tal como o conhecemos, aceita que seres humanos pereçam por doenças evitáveis ou tratáveis porque não podem pagar. Além disso, o mercado comanda e faz escolhas fundamentais sobre que tipo de inovação científica e tecnológica é desenvolvida, a partir do conhecimento e das ferramentas já existentes, e que ao fim e ao cabo, é dirigida a um consumidor em potencial e não a alguém que realmente sofre nesse momento ou no futuro próximo. Ou seja, há uma corte marcial em alguma sala de reuniões com planilhas e cafés, sem contraditório e sem interlocutores, que de alguma maneira decide os que têm chance e os que não têm.

Assim, o conflito entre os homens e mulheres pode não nascer exclusivamente da escassez material e da dificuldade de satisfazer as necessidades materiais como destaca o manifesto. Fala-se da perspectiva do desejo humano, para além da necessidade. Usando uma ótica não linear da história, perseguir um mundo onde o desejo humano seja o elemento norteador, o motor do futuro, é muito importante, mas é preciso antes superar o quadro inaceitável de que há uma parcela significativa da população global que não vê suas necessidades básicas atendidas. Essa dimensão é inegociável, irrenunciável e deve voltar ao centro do debate.

Avançar pragmaticamente da teoria à prática, num tempo razoável, implica em revisitar aspectos morais que estão flexibilizados atualmente num nível não aceitável. E mais do que isso implica em subverter ou aprofundar as fronteiras do direito positivo cristalizado. A busca por dignidade e justiça social a partir do convivialismo, para usar uma expressão mais clara, deve enfrentar o fato de que há profundas mudanças que devem ser operadas em cada um de nós e também no imaginário coletivo que passa muito mais pelo campo do que se entende por moralmente aceitável do que pelo não juridicamente aceito. Quero aqui dizer que o fato de que milhares de pessoas morram ou sofram inominavelmente por não terem acesso a tratamentos já existentes não esteja arrolado entre os crimes de lesa humanidade ou não caiba no convencional conceito de genocídio, não deveria ser impedimento para que moralmente esse fato já estivesse condenado. Assim, a elasticidade da compreensão da sociedade sobre fatos hoje dados como fatídicos precisa ser alargada. A mudança não vem, a mudança se constrói.

Mas a condenação moral já não existe? Muitos não partilham o entendimento de que os seres humanos têm direitos e o direito à vida é fundamental? A compreensão de que é moralmente inaceitável nem sempre está acompanhado – e na maioria das vezes não está – de uma compreensão de que para que muitos vivam, alguns terão que lucrar menos. Discutir o direito à vida – quando falamos em acesso a tratamentos, por exemplo – é tocar no sensível tema do direito a propriedade (intelectual) e, em larga medida, de sua flexibilização. O que o manifesto traz com uma clareza e simplicidade quase didática é o fato de que a humanidade permanece incapaz de gerir a sua própria rivalidade e a violência, enquanto as forças críticas precisam avançar e se unificar, de maneira a não ser apenas um débil contraponto. A pergunta que se coloca é quanto de mudança estrutural estamos dispostos a reivindicar? Quão profundas inovações estamos abertos a propor? O convivialismo pode ser uma experiência possível quando alguns desçam alguns degraus para que muitos alcancem o primeiro deles.

Por fim, encontro a familiaridade que me assaltava, e que ecoava em mim a “presença” do Betinho em suas reflexões nos anos 90. O manifesto fala que o conflito deve ser uma força de vida e não de morte. Betinho já dizia em um de seus mais emblemáticos textos “de repente me dei conta de que a cura da AIDS sempre havia existido, como possibilidade, antes mesmo de existir como anúncio do fato acontecido, e que o seu nome era vida” (Souza, 1992). Enquanto a cura concreta não vinha, a vacina era a solidariedade. Eu acho que o Betinho ia gostar desse manifesto, mas é possível que no fundo, diria, “acho que eu já li isso em algum lugar”.

Nota

1 O pensamento do Betinho é essencial para aqueles que buscam compreender melhor o Brasil. A militância de Betinho começou na adolescência, na Ação Católica, em Belo Horizonte. Na UFMG, foi um dos fundadores da Ação Popular (AP), uma organização formada por um grupo católico pró-socialismo. Formou-se em Sociologia em 1962 e engajou-se na luta pelas reformas de base do governo João Goulart. Após o golpe de 1964 Betinho partiu para o exílio em 1971. Morou no Chile, no Canadá e no México. Betinho retornou ao Brasil em 79 e, dois anos depois, criou o Ibase (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas). Em 1986 ajudou a fundar a Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia). Ambas as organizações seguem atuantes e realizando um importante trabalho para a sociedade brasileira até os dias de hoje. Na década de 1990, tornou-se símbolo de cidadania no Brasil ao liderar a campanha contra a fome. Betinho mobilizou a sociedade brasileira para enfrentar a pobreza e as desigualdades. Hemofílico, morreu de Aids em 9 de agosto de 1997, deixando um exemplo de solidariedade e de luta pela transformação social.

Referência

Souza, H. (1992): “O dia da cura”, in Jornal do Brasil, 30 de janeiro.

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