Criatividade e experiência no convivialismo urbano – por Irlys Barreira

Criatividade e experiência
no convivialismo urbano:
notas sobre um manifesto

Irlys Barreira

Se o manifesto sobre o convivialismo pode suscitar o sentido negativista de mais um escrito que se desfaz, pela fraqueza persuasiva das ideias “contra o mundo que se impõe”, não deixa de sensibilizar-me o coro de vozes de intelectuais que se unem em torno do impulso de aproximar teoria crítica e proposta de ação. Talvez, mais “realista” que o conhecido manifesto de Karl Marx, que anunciava a grande transformação feita por um partido e classe social, pretensamente defensorores de um projeto coletivo, o documento esboçado por Alain Caillé e desenvolvido por um conjunto de cientistas sociais pretende ser pluralista. Almeja traduzir um sentido de mudança baseado na diversidade de opiniões e experiencias históricas, sem desconsiderar as dificuldades, possibilidades e tensões de consensos pactuados.

Li o manifesto sobre o convivialismo como espécie de patrimonio de desejos de um “mundo melhor”: chama acesa a evocar sentimentos de responsabilidade e pertença coletiva. Tambem busca de interferência sobre o curso da história, tendo a critica como um projeto que transcende ao que é vivido como natural e preso ao princípio de um destino inexorável. Este parte significativa da nova ideologia de naturalização dos fatos economicos e sociais (Bourdieu, 1989).

Gostaria de pensar o convivialismo referido no Manifesto de uma maneira contextualizada1, sugerindo dois recortes articulados que me parecem importantes. Inicialmente destaco a ordem urbana, supondo que as cidades impoem-se como principal locus de sociabilidade no mundo contemporâneo. As marcas espaciais dessas referencia pensada para a situação brasileira constituem um segundo ponto a ser considerado. Para países como o Brasil, caracterizado por padrões seculares de desigualdades sociais e politicas, sem a presença do Estado de bem estar, certos dilemas tem expressão nitida no espaço urbano. É sobretudo nas cidades que processos de apartação social, cultural e política são recorrentes, incidindo sobre situações de insegurança que sinalizam o “viver em risco” (Kowarick, 2009).

Mais recentemente, a relação entre valores e interações sociais vem se impondo na ordem do dia, suscitando discussões, a exemplo de estudiosos da sociedade contemporânea que almejaram compreender as manifestações da violência e das desigualdades sociais fundamentadas em um sistema de crenças. Gilberto Velho (1996), com base em reflexões sobre o contexto nacional, afirmava que “uma das variáveis fundamentais para se compreender a crescente violência da sociedade brasileira é não apenas a desigualdade social, mas o fato de esta ser acompanhada de um esvaziamento de conteúdos culturais, particularmente éticos, no sistema de relações sociais” (Velho, p.16). Argumentava o autor, que “à medida que o individualismo foi assumindo formas mais agonísticas e que a impessoalidade foi, gradativamente, ocupando espaços antes caracterizados por contatos face-to-face, a violência física foi se rotinizando, deixando de ser excepcional para se tornar uma marca do cotidiano” (p.17).

Hoje, tornou-se lugar comum falar sobre a crise de valores morais. Lamentamos o desaparecimento da ética na vida pública, a perda dos princípios de autoridade e sentidos capazes de construírem visões de mundo convergentes. A interiorização de normas e o respeito às leis e regras garantiriam, na versão de propostas desencantadas com os rumos da modernidade, a produção de significados comuns, retirando os indivíduos de suas crises provocadas pelo aumento da complexidade social e consequente incapacidade de situar-se no mundo. A chamada lei de Gérson, termo utilizado pelo psicanalista Jurandir da Costa Freire, desde o século passado, para referir-se à predominância de interesses individuais na vida social, independentes de uma ética partilhada, traduziria uma das expressões de conflito mais frequentes no mundo urbano contemporâneo. A não vigência da Lei, no sentido que lhe atribui a psicanálise, traduziria a busca da satisfação individual isolada, baseada no princípio da lógica do prazer e desprezo pelas frustrações ou constrangimentos que fazem parte da vida em sociedade. No contexto da sociedade brasileira, por exemplo, a associação construída entre autoridade e autoritarismo promoveu, em muitas circunstâncias, um desprezo generalizado às interdições, seja no âmbito privado da família, seja no espaço público. Um exemplo extraído da vida cotidiana é significativo. Uma mãe cearense, em visita a uma escola que se pautava por métodos não convencionais de pedagogia e disciplina, ouviu da professora o depoimento de que alguns pais mostravam-se preocupados com filhos educados segundo diretrizes pedagógicas especiais, baseadas na argumentação e solidariedade. “Como meus filhos enfrentarão lá fora o mundo com suas regras competitivas? Indaga um dos pais preocupados em “preparar o filho para a vida”. Trata-se de um exemplo que revela o contraponto entre uma visão de mundo crítica e cooperativa e valores passados como armas simbólicas consideradas necessárias e naturais em um mundo competitivo.

Se a cidade é sentida e percebida como palco fundamental da violência, segregação e injustiça social é também nela que paradoxalmente surgem possibilidades de ações criativas. Os desafios do novo urbanismo supõem levar em consideração experiências concretas e cotidianas de relacionamento “inventadas” no sentido formulado por De Certeau (2003) e vividas não apenas em sua funcionalidade. Para além da planificação, as relações de troca podem reforçar sentidos urbanísticos que prevejam, nos usos do espaço, o privilégio da noção de público e a participação em decisões que dizem respeito ao viver coletivo. No âmbito da arquitetura implica que sejam considerados projetos que valorizem zonas de convivência coletivas e utilização de formas estéticas decididas de maneira democrática.

É na recuperação e reforço de experiências já existentes que se pode pensar sobre o desenvolvimento de formas criativas de convivialismo. O predomínio de um mundo atomizado não pode esquecer o fato da criação de espaços associativos que se fizeram, e ainda hoje se fazem presentes, em muitas esferas da vida social. Penso, por exemplo, na experiência rica de movimentos sociais urbanos, vigentes na década de 1980, na sociedade brasileira, que aglutinou valores e consciência de direitos sociais. Outras formas de solidariedade construídas através de grupo de jovens, de mulheres e coletivos estigmatizados pontilharam o Brasil pós-autoritário, recompondo tecidos que fizeram germinar, não só formas utópicas de pensamento, mas práticas institucionalizadas de participação social. Mais recentemente, experiências de ocupação de praças para atividades de lazer e as demandas de ampliação da participação política em muitas cidades brasileiras podem ser vistas como tentativas de acionamento de fluxos de sociabilidade que vem se constituindo gradativamente.

Aprendizagens de convivialismo podem ser praticadas desde a escola associadas a noções de cidadania e supostos de reconhecimento das diferenças. No âmbito da investigação, o pesquisador e cientista social pode colaborar para conhecer e entender as formas menos aparentes de dominação, os requisitos hegemônicos de inclusão e classificação que se reproduzem permanentemente na vida cotidiana, incluindo o próprio campo acadêmico.

Os múltiplos protestos contra as especializações do conhecimento trazem a constatação de que o desenvolvimento tecnológico não se traduziu, de fato, em possibilidades de melhoria das condições de vida. Não por acaso, o acúmulo de dificuldades referentes ao meio ambiente e ao consumo de alimentos demandam a necessidade de uma revisão da segmentação do conhecimento e busca de recuperação da totalidade perdida. Essas reflexões remetem a uma compreensão da ecologia, não como costumeiramente se diz, baseada no sentido de preservação da natureza. A esta última assertiva poderia ser acrescentada a necessidade de incorporar valores relativos à cidadania e à sociabilidade em uma ligação estreita com aquilo que hoje denominamos “problemas ecológicos”. Uma retomada do sentido normativo da vida social (Habermas, 2014) poderia apontar significados criativos das noções de tempo, espaço e natureza. Nessa perspectiva, o sentimento ecológico estaria associado a uma visão sistêmica. Trata-se de uma articulação capaz de perceber um mundo não segmentado ou dividido entre o que se convencionou chamar cultura e natureza2, mas pensado como totalidade orgânica.

Na perspectiva de recuperar sentidos criativos de experiencia urbana por meio de pesquisas recorro ao pensamento de Henry Lefebvre ( 1981 ) que analisa o ritmo das ações sociais que se apresenta no corpo, nos ciclos da natureza, nas ciencias humanas e exatas, música e poesia, associando-o tanto ao cíclico como ao que é repetitivo, descontínuo e inovador. A ritmoanálise pode contribuir para mudar a percepção construída de meio ambiente submetido à pressa da produtividade, cedendo prioridade ao sensível, aos vários movimentos lentos ou fortes que permeiam as relações sociais.

O ritmoanalista escuta rumores e silencios e cuida de evitar as interpretações apressadas, na medida em que é um pesquisador sensivel a mudanças que se processam nos tempos e espaços diferenciados. Tentará assim, na percepção criativa de Lefebvre, “ouvir” uma casa, uma rua, uma cidade, uma praça ou mercado, identificando sinais de mudança, como um auditor que escuta uma sinfonia. O ritmoanalista transformaria a presença em presente, aproximando-se da poesia e preocupando-se com a temporalidade composta na cidade por jovens, turistas, carros e objetos, sinalizando interações e alternancias de silencio e barulho com movimentos policentricos ou sinfonicos. Seria ele um personagem enigmático nem puramente sociologo, antropologo ou psicologo que se serviria das matérias de seu conhecimento para escutar palavras, barulhos e sons, observando as atitudes humanas dentro de uma temporalidade. Saberia assim, eu acrescentaria, captar o emergir lento de formas criativas de convivialidade citadina também formulado por Anne Marie Fixot ( 2014) quando pensa no projeto urbano nascendo de saberes, práticas e olhares cruzados, induzindo capacidade de agir e relacionar grupos e territórios. No espaço urbano, é importante ressaltar, o registro em cidades brasileiras de práticas de sociabilidade que alteram rotinas tais como o fechamento de ruas para caminhadas a pé, circuitos de bilicleta, apresentação de músicas e teatros infantis. Essa transformação dos espaços, que ocupam atualmente a condição de passagem, em locais de convivencia poderia explicitar a criação de ritmos em contrafluxo.

Os movimentos policêntricos e sinfônicos da ritmoanalise também estão presentes na amplitude de questões tratadas no Manifesto de forma articulada: o meio ambiente, a política, a tolerancia e o reconhecimento da diversidade. Teorizações sobre a democracia e o poder, advindas tanto do pensamento liberal como da abordagem histórico-estrutural marxiana, emprestam ao escrito um teor amplo a partir do qual se torna possivel estabelecer pressupostos comuns, acionados sob o sentido de totalidade.

Qual seria finalmente o contributo da sociologia para o Manifesto? Penso na possibilidade de registrar experiências dispersas de convivialidade urbana que se inauguram de forma mais silenciosa: a escuta e a visibilidade de ações criativas cotidianas que não aparecem nos noticiários. Estes eivados de repetição da tragédia que reforça a noção banalizada da inexorabilidade da destruição presente nas interações sociais. Cidades europeias que tem forte sentido de convivência urbana e cidades com grande apreço ao sentido de espaço público, a exemplo de Tóquio, podem servir de exemplos sobre as possibilidades dispersas de criação feitas de notas dissonantes. Atravessado por fronteiras agonísticas, o Brasil revela-se como lugar bom para se pensar sobre as dificuldades de ampliação de um convivialismo urbano a ser materializado como lugar de interações sociais, com vistas a ampliação de uma esfera pública.

O Manifesto sobre o convivialismo, em sintese, pode ser lido como orquestração de sentidos e os intelectuais podem sim colaborar em suas pesquisas com o registro de experiencias criativas. Mesmo que a utopia seja um vir-a ser que se processa no amago do não realizavel é importante perseguir seu ritmo, resgatando formas emergentes de convivialismo que se processam em diferentes cidades.

Notas

1 É importante salientar, de saída, que os efeitos de um mundo globalizado deixaram de ser específicos a um determinado territorio para se tornarem gerais e concernentes à toda humanidade.

2 As sugestões de Boa Ventura de Souza Santos sobre a necessidade de superar o que ele chama de razão indolente apontam a percepção de que cultura é natureza e natureza é cultura (Santos, 2000 p.88). Segundo as palavras do autor, “a transformação da natureza num artefacto global, graças à imprudente produção-destruição tecnológica, e a crítica epistemológica do etnocentrismo e androcentrismo da ciência moderna, convergem na conclusão de que a natureza é a Segunda natureza da sociedade e que, inversamente, não há uma natureza humana porque toda natureza é humana” (p.89).

Referências

ARENDT, Hanna (1980). A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária.

BOURDIEU, Pierre (1989). O poder simbólico. Lisboa: Difel.

CERTEAU, Michel de (2003). A Invenção do Cotidiano Morar Cozinhar, vol. 2, Rio de Janeiro: Vozes.

FIXOT, Anne Marie Fixot ( 2014). “Vers une ville convivialiste”. Introduction de la maitrise d´usage” in Du convivialisme comme volonté et comme esperance, Revue de Mauss 43, Paris: La Découverte.

HABERMAS Jurgen (2014). Mudança estrutural da esfera pública. Investigações sobre uma categoria da sociedade burguesa. São Paulo: Unesp

KOWARICK, Lúcio (2009). Viver em risco, sobre a vulnerabilidade socioeconomica e civil, São Paulo: Editora 34.

LEFEBVRE, Henri (1992). Éléments de rythmanalyse, introduction a la connaissance des rythmes, Paris: Éditions Syllepse.

MAUSS, Marcel (2013). Ensaio sobre a dádiva, São Paulo: Cosac Naify.

SANTOS, Boa Ventura de Souza (2000). A crítica da razão indolente, contra o desperdício da experiência, São Paulo: Cortez.

VELHO, Gilberto (1996) e ALVITO, Marcos (1996) – Cidadania e violência, UFRJ, Rio de Janeiro.

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