Convivialismo, pensamento crítico
e o ativismo contemporâneo
Breno Bringel
O Manifesto Convivialista (doravante, Manifesto) é uma boa expressão das contradições do presente e dos desafios do futuro, bem como da urgência da ação coletiva em tempos de profunda transformação global. Devemos, no entanto, ser cautos enquanto à sedução do discurso da urgência da ação (“o agir a qualquer preço”), pois nele, muitas vezes, acaba primando a agência neoliberal e uma lógica instrumental de ação localizada nas consequências dos problemas sociais e não em suas raízes; o imediato diante da perspectiva; e o curto prazo diante de tempo- ralidades de médio e longo alcance. Deste modo, embora o agir seja um imperativo ético e moral, não se pode agir de qualquer maneira. A indignação e os eventos de protesto, que constituem uma forte marca de nosso tempo, devem estar concatenados com processos sociopolíticos mais amplos e com o acúmulo de experiências sociais e intelectuais. Portanto, é mister entender as condições de possibilidade da ação transformadora em nos- sa conjuntura histórica específica, de forma a encarar desafios centrais para nossa humanidade como os apontados no Mani- festo. Reflexionarei brevemente aqui sobre dois elementos ful- crais: por um lado, as vicissitudes de nosso momento histórico e as possibilidades de convergência entre movimentos sociais e movimentos intelectuais na atualidade; e, por outro, as trans- formações do ativismo contemporâneo e suas interfaces com a proposta convivialista.
Momento histórico e articulação entre movimentos sociais e movimentos intelectuais
Vivemos tempos de transições globais e de profunda recon-figuração societária. Condicionados pela iminência de uma crise muito maior do que a vivida nos últimos anos, estamos invaria-velmente marcados pela incerteza e pela dificuldade de articula-ções de ações convergentes de contestação que se projetem em uma temporalidade ampliada. Os imaginários de futuro parecem cada vez mais restringidos – mesmo dentro das coletividades que apostam de alguma maneira pela transformação social –, e as apostas mais radicais (anticapitalistas, anti-imperialistas e anti–patriarcais) foram cedendo lugar a alternativas, em geral, dema-siado pragmáticas. A construção de “um outro mundo possível” ou de um futuro melhor e mais habitável depende assim do es-tabelecimento paulatino de outra historicidade, de outras formas dos sujeitos viverem, imaginarem e transformarem a história.
As ameaças e apostas do presente narradas pelo Manifesto, são, em verdade, promessas históricas da modernidade, atualiza-das – e em alguns casos radicalizadas – a nosso momento histó-rico. Isto pode ser exemplificado com o retorno da retórica (neo) desenvolvimentista e modernizante; com a contínua universali-zação de certos valores e princípios (incluindo os democráticos); com as mutações do capitalismo e das projeções geopolíticas e geoculturais atuais que se reconstroem e, com novas roupagens, seguem mantendo sua capacidade de espoliação dos “condena-dos da terra”, subjugados à dominação dos mesmos atores eco-nômicos e políticos.
As resistências existem e são crescentes em termos globais, mas enquadram-se cada vez menos em esquemas prévios e nas ideologias políticas modernas. Isto não significa que estas já não importem, mas que uma rearticulação está se produzindo, poden-do gerar novas ideologias abrangentes. Obviamente, estas não surgirão somente com um Manifesto e muito menos a partir de um grupo de iluminados, mas sim da convergência entre práticas e forças sociais, filiações político-discursivas diversas e novos enquadramentos da realidade social com potencial de ruptura com os limites sistêmicos. A apropriação criativa e contextual de matrizes político-ideológicas diversas é uma direção interessan-te. Por exemplo, a fusão prática e teórica entre marxismo, india-nismo e comunitarismo rendeu frutos importantes para a esquer-da social e politica na região andina, incluindo a geração de um novo imaginário pós-desenvolvimentista e a constituição de uma relação ímpar entre política, natureza e território.
Destarte, territorializar as propostas do Manifesto, oriundas inicialmente do mundo francófono, em vários contextos geográ-ficos e culturais, seja o brasileiro ou outro qualquer, significa levar em consideração múltiplas tradições e matrizes políticas, as correlações de forças nas diversas escalas (locais/nacionais/re-gionais/globais), os tipos de conflitos, assim como as gramáticas de ação e de interpretação da realidade. Supõe não uma mera “re-cepção” e “transplantação”, mas a criação de dinâmicas, espaços e propostas de inteligibilidade global que permitam a confluên-cia entre atores e forças sociais com propostas semelhantes, mas linguagens e campos de ação distintos. Neste sentido, é crucial reforçar a relação entre os movimentos sociais e os movimentos intelectuais.
Desde a queda do Muro de Berlim, várias foram as pro-postas para reinventar a esquerda e repensar os espaços transna-cionais de intercâmbio dentro do novo cenário aberto. A conflu-ência entre pensamento e ação aparece em muitas delas, desde o zapatismo ao Fórum Social Mundial, passando por experiên-cias mais permanentes cujo foco principal tem sido a formação teórico-política para além dos contextos nacionais, com o caso emblemático da Escola Nacional Florestan Fernandes. De fato, a emergência e visibilidade dos movimentos contrários à globa-lização neoliberal na década de 1990 supôs uma importante rup-tura discursiva com a contrarrevolução intelectual afiançada no lema “There is no Alternative”. Com um “não” e muitos “sins”, fomos caminhando rumo a um “movimento de movimentos” ou a uma “rede de redes” que, no entanto, não conseguiu se rearti-cular globalmente quando a crise financeira começou a se tornar mais visível a partir de 2008.
Nos atuais mo(vi)mentos de indignação a relação entre a in-telectualidade e a ação aparece de forma mais fragmentada, pois os elos de mediação entre sociedade e política e entre universida-de e sociedade foram se fragilizando. Por um lado, o trabalho de base que busca fortalecer a conscientização política nos bairros e nas comunidades foi diminuindo significativamente, com con-sequências notórias nos ecos das vozes subalternizadas para a política e a sociedade. Por outro lado, a “extensão” universitária converteu-se em algo mais procedimental e protocolar que subs-tantivo e muitas vezes se restringe a “estender” o conhecimento produzido nas universidades ao resto da sociedade em vez de travar um projeto conjunto e de mão dupla com fronteiras mais tênues o objeto e o sujeito, a teoria e a prática.
A confluência entre movimentos sociais e intelectuais é central para a revitalização do pensamento crítico. Por um lado, torna-se fundamental abrir as universidades centrais para os pró-prios movimentos e outros atores e setores da sociedade, demo-cratizando-a e oxigenando seus debates, como tem sido feito, com maior ou menor êxito, em alguns país da América Latina e da (semi)periferia mundial. Por outro lado, é importante trans-cender as fronteiras das universidades que, embora continuem sendo o principal lócus da produção intelectual, não possuem ne-nhum tipo de exclusividade. O campo intelectual é mais amplo que o campo acadêmico e a revitalização do pensamento críti-co passa, necessariamente, pela retroalimentação entre espaços, perspectivas e atores diversos.
O Manifesto baseia-se nesta vontade de convergência e isto é um mérito indiscutível. No entanto, é preciso dar os passos para sua construção, o que envolve enormes dificuldades, pois cada campo de ação e cada espaço de produção de conhecimen-to rege-se por uma lógica própria, um perfil predominante de intelectual, uma temporalidade específica, e normas e objetivos determinados que condicionam seu modus operandi. Sem captar e respeitar esta diversidade a confluência torna-se impossível e abre-se o cenário da fragmentação, da oposição e, inclusive, do conflito. Ainda assim, o Manifesto é fruto fundamentalmente de um setor crítico dentro do campo das ciências sociais e da filosofia moral e política. Para alcançar seus objetivos deveria ser confrontado, em termos práticos e teóricos, com as experiências e sujeitos aos quais apela, pois a vitalidade do pensamento crítico e transformador hoje depende, em grande medida, da capacidade das sinergias entre teoria e prática, entre compromisso político e rigor intelectual.
Transformações do ativismo contemporâneo: práticas conviviais e a transformação social como mudança subjetiva
Entendo o convivialismo mais como uma prática para a construção de um novo horizonte ideológico pós-crescentista que como uma nova ideologia acabada. Isto é: haveria que dis-tinguir entre o Manifesto como uma bússola propositiva de um horizonte comum e o convivialismo, base sobre a qual este se assenta, como a “arte de viver juntos”. Neste sentido, o Ma-nifesto consegue captar bem uma das principais dimensões da reconfiguração do ativismo contemporâneo: a ênfase na socia-bilidade e na transformação subjetiva, presente crescentemente em um ativismo prefigurativo imbuído de uma nova concepção de mudança social que passa não pela conquista do poder e do Estado, mas pela transformação dos próprios sujeitos, de nossas relações e entornos de proximidade.
Poder-se-ia localizar germens do convivialismo em prá-ticas de solidariedade tribais, nos diferentes tipos e manifes-tações históricas do cooperativismo, na lógica de apoio mútuo que orienta a ação libertária e em uma infinidade de experiên-cias. No entanto, é interessante observar como estas práticas conviviais foram se estendendo dentro dos movimentos sociais contemporâneos até o ponto de, em alguns casos, serem um fim em si mesmo. Isto ocorre, de fato, em muitas coletividades e movimentos preocupados em incidir mais na sociedade e na cultura que na política institucional. Em outra chave, o convi-vialismo pode ser entendido, a meu ver, como uma radicali-zação dos valores e princípios já presentes nos denominados “novos movimentos sociais”, principalmente aqueles relativos à politização do cotidiano (tão caros também ao feminismo) e às solidariedades entre indivíduos e coletivos.
Por outro lado, “mudar o mundo sem tomar o poder” é um lema que se estendeu desde o levante zapatista em 1994 e que, de alguma maneira, contribuiu a irradiar visões e práticas, con-vergentes com o convivialismo, que já estavam presentes nos movimentos autônomos e libertários. Afinidade, contra-poder, coerência, comuns, cuidado, emoções e horizontalidade são palavras chave.
A prática convivialista é uma das principais formas de en-frentar a mercantilização de todas as esferas de vida, porém in-suficiente para gerar uma contra-hegemonia caso se restrinja ao plano estritamente individual ou de pequenos grupos de afini-dade isolados. Parece haver, ademais, uma clivagem geracional importante que repercute nos sentidos atribuídos ao convivia-lismo. De fato, o próprio sentido do que significa a militância política ou o ativismo social hoje tem se reconfigurado profun-damente e isso varia de acordo com os contextos e imaginários.
Seja como for, faz-se necessário estar atentos às traduções das propostas conviviais às realidades locais ou nacionais. In-clusive a construção do que tenho denominado como “deman-das aglutinadoras” com capacidade de interpelação global a partir da identificação de problemas comuns da humanidade ou de coletividades deve ser sensível às diferentes apropriações culturalmente e localmente orientadas. É o caso da soberania alimentar, por exemplo. Uma demanda que parte dos movimen-tos rurais do Sul a partir do diagnóstico global compartilhado de problemas, soluções, interlocutores e inimigos políticos, mas que constrói-se localmente de acordo com as especificidades de cada ator, lugar e conjuntura.
Outra característica interessante da reconfiguração do ati-vismo contemporâneo é o aprofundamento da transversalização da ação coletiva. Neste caso, o ecologismo é um bom exemplo. A despeito da existência do movimento ambientalista, o debate ecologista hoje foi se transversalizando em vários movimentos sociais, inclusive em muitos que antes se resistiam a realizar uma “transição agroecológica”. Algo similar ocorre, felizmente, com o gênero que transcende já o movimento feminista. Nessa linha de raciocínio, o ecologismo não deve ser entendido como sinô-nimo do movimento ambientalista, mas como uma força social mais abrangente que penetra, aos poucos, na sociedade A cres-cente importância da agroecologia e da redefinição dos padrões de relação entre cultura e natureza no interior de várias coletivi-dades é uma mostra disso.
No entanto, não podemos deixar de considerar que a centra-lidade da questão ecológica no convivialismo não pode omitir as assimetrias Norte/Sul e a “dívida ecológica” dos países industria-lizados do Norte com os povos do Sul. A convergência das forças motrizes da crítica ao desenvolvimentismo (“buen vivir”, decres-cimento, entre outros), embora frequente discursivamente, nem sempre ocorre na prática, conquanto seja importante também aqui destacar que outra das principais características do ativismo contemporâneo pode contribuir nesta direção: a construção de “múltiplas militâncias” para além de organizações estritamente delimitadas e de identidades mais flexíveis e multi-referenciais.
Em suma, as práticas e propostas conviviais parecem estar bastante sintonizadas com uma importante linha de reestrutu-ração do ativismo emergente na atualidade. Algumas questões, todavia, permanecem abertas, principalmente no tocante à conci-liação entre forças sociais e intelectuais, ao caráter fugaz das mo-bilizações e à dificuldade em gerar um processo cumulativo de resistências que consiga sedimentar as alternativas políticas e o pensamento crítico ao longo do tempo. A onipotência capitalista e suas nefastas consequências civilizatórias, de fato, são uma rea-lidade mais que visível e perversa, mas a construção de sujeitos coletivos continua sendo um enorme desafio. Recuperando uma velha e conhecida tese, estaríamos vivendo novamente “uma si-tuação potencialmente revolucionária sem um sujeito revolucio-nário que a acompanhe”, como sugeriu o querido e recentemente falecido companheiro ecologista Ramón Fernández Durán?

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