Considerações sobre o “Manifesto Convivialista” e o Brasil – por Josué Pereira da Silva

Considerações sobre o “Manifesto Convivialista” e o Brasil

Josué Pereira da Silva

Introdução

O manifesto faz um diagnóstico de nossa época no qual ressalta as potencialidades do presente, conforme enuncia a seguinte frase já no início da introdução: “Jamais a humanidade teve à sua disposição tantos recursos materiais e competências técnicas e científicas para assegurar seu bem-estar como agora” (p.11). Mas essas potencialidades se contrapõem a um conjunto de “ameaças presentes”, tanto entrópicas (material, técnica, ecológica, econômica), quanto antrópicas (de ordem moral e política). E esta situação paradoxal nos coloca diante do que seria o desafio central de como enfrentar “a mãe de todas as ameaças”:

A humanidade soube realizar progressos técnicos e científicos fulminantes, mas ela permanece incapaz de resolver seu problema essencial: Como gerir a rivalidade e a violência entre os seres humanos? Como incitá-los a cooperar para que se desenvolvam e deem o melhor de si, permitindo-lhes ao mesmo tempo se opor sem se massacrar? Como criar obstáculos à acumulação de poder, a partir de agora ilimitada e potencialmente autodestrutiva, sobre os homens e sobre a natureza? Se não souber rapidamente responder a essas questões, a humanidade desaparecerá, muito embora todas as condições materiais estejam reunidas para que ela prospere, contanto que tomemos definitivamente consciência de suas finitudes (p.25-6).

Depois de alertar para a incapacidade das respostas até aqui existentes, ele anuncia a busca do convivialismo, “arte de viver juntos”, como caminho para lidar com o que considera, no capítulo 2, as questões de base: moral, política, ecológica, econômica e mesmo a questão espiritual ou religiosa. Depois de registrar que as ideologias políticas modernas – liberalismo, socialismo, comunismo ou anarquismo – trataram de forma insatisfatória essas questões, o manifesto apresenta, no capítulo 3, o convivialismo como “aquilo que nas doutrinas existentes, laicas ou religiosas, concorre para a busca de princípios que permitem aos seres humanos ao mesmo tempo rivalizar e cooperar, na plena consciência da finitude dos recursos naturais e na preocupação quanto ao cuidado com o mundo – e de nosso pertencimento ao mundo” (p.51). Sem pretender ser uma nova doutrina que substitua as outras, o convivialismo procura “reter, exatamente, de cada doutrina a não ser o que permite compreender como controlar o conflito, para evitar que se degenere em violência, e cooperar condicionados pela limitação dos recursos” (p.53). A partir desses contornos gerais, o convivialismo defende que “a única política legítima é aquela que se inspira em um princípio de comum humanidade, de comum socialidade, de individuação e de oposição controlada” (p.54). O capítulo 4 trata das “considerações morais, políticas, ecológicas e econômicas”, dizendo o que, em cada uma dessas dimensões, é permitido e o que proibido:

– O que é permitido a cada indivíduo é esperar reconhecimento de sua igual dignidade para com todos os outros seres humanos, é ter acesso a condições materiais suficientes para levar a cabo sua concepção de boa vida, com respeito às concepções dos outros, e buscar dessa forma gozar do reconhecimento pelos outros, participando efetivamente, se o deseja, na vida política e na tomada de decisões que implicam seu futuro e o da comunidade (p.57-8).

– O que lhe é proibido é cair em desmedida, i.e. violar o princípio de comum humanidade e por em perigo a comum socialidade, na intenção de pertencer a uma espécie superior ou açambarcar e monopolizar uma quantidade tal de bens ou poderes que a existência social de todos fica comprometida (p.58).

Além disso, o manifesto acrescenta, “que é dever de cada um lutar contra a corrupção”, passivamente e ativamente, “na proporção dos meios e da coragem de que dispomos” (p.58-9).

Por fim, no capítulo 5, o manifesto propõe algumas medidas concretas sobre o “que fazer”, a partir do que considera as três armas principais de que dispomos: 1) a indignação “em face da desmedida e da corrupção e a vergonha que se faz necessária de ser sentida por aqueles que diretamente ou indiretamente, ativamente ou passivamente, violam os princípios de comum humanidade e de comum socialidade”; 2) “o sentimento de pertencimento a uma comunidade humana mundial”; 3) “muito além das escolhas racionais de uns e de outros”, realça a necessidade de “mobilização dos afetos e das paixões” (p.72-3). De tudo isso, propõe um conjunto de medidas políticas, econômicas, sociais e ecológicas, guiadas pelo imperativo da justiça e da comum socialidade.

Apreciação do manifesto: três considerações

Dito isto, inicio minha primeira consideração com a expressão-chave, ou palavra de ordem, que guia o manifesto e lhe dá sentido: “s’opposer sans se massacrer” [se opor sem se massacrar]. Como expressão geral da necessidade de “vivermos juntos” ou como forma política para guiar a solução de conflitos entre e intra grupos humanos, o manifesto é muito sábio e muito bem vindo; no âmbito teórico também ele é relevante por expressar uma perspectiva intersubjetivista que recusa tanto o reducionismo individualista quanto o holista, e vai além deles.

No todo, o manifesto me permite tirar as três consequências descritas a seguir:

  1. Uma concepção, ou modelo, de democracia fundada nas ideias de associação e cooperação (reflexiva) como contraponto a noções de democracia que priorizam o mercado ou o Estado como ponto de apoio principal;
  2. Uma concepção de desenvolvimento estacionário que prioriza a dimensão qualitativa em relação à quantitativa, e no qual seja possível pensar uma relação mais amigável com a natureza (preocupação ecológica com o futuro do planeta) e também uma perspectiva de autolimitação a respeito do consumo, que precisa ser refreado por estar intrinsecamente ligado tanto ao crescimento que destrói, sem repor, os recursos naturais quanto à poluição ambiental;
  3. Democracia associativa e desenvolvimento estacionário se completam com uma concepção de riqueza que priorize o “ser” em relação ao “ter”; para isso, é necessário fixar limites tanto para pobreza extrema quanto para a riqueza extrema: primeiro com estabelecimento de uma renda mínima (de base) que permita aos mais pobres viver com dignidade; segundo, que também se estabeleça limites para a renda máxima, de forma a não permitir que algumas pessoas acumulem riqueza além de um patamar razoável.

Entende-se que essas são condições que permitiriam “vivermos juntos” de forma mais digna e melhor, democraticamente, respeitando e valorizando a diversidade, e abrindo caminho para um novo universalismo ou, mais propriamente, pluriversalismo.

Minha segunda consideração diz respeito à plausibilidade do manifesto, ou como colocar em prática as ideias nele contidas.

Duas questões, a meu ver, merecem mais reflexão:

  1. Como estabelecer relações entre as concepções do manifesto e os movimentos sociais? Claro que a orientação geral do “se opor sem se massacrar” pode funcionar como uma espécie de guarda-chuva unificador dos diversos movimentos sociais, mas ainda resta a tarefa de como convencer os diferentes movimentos da pertinência e da plausibilidade das proposições contidas no manifesto.
  1. A noção de sociedade civil mundial, embora interessante, parece-me muito vaga e abstrata para servir como principal referência unificadora e como instância capaz de animar e mobilizar os movimentos sociais e as pessoas em torno dos objetivos propostos.

Talvez caiba aqui fazer referência à noção gramsciana de hegemonia, ainda que retrabalhada nos termos do manifesto e do contexto atual, como um interessante recurso nesta direção. A menção à noção de hegemonia abre a porta para minha terceira consideração, que procura vincular o manifesto ao Brasil.

  1. Para que a sociedade civil em geral e os diversos movimentos sociais assumam como suas determinadas bandeiras de luta é preciso que efetivamente alguns valores profundamente enraizados na cultura, não só do Brasil, sejam desafiados e deslocados por novos valores mais democráticos e afeitos à realidade do presente. Daí, a importância da noção de hegemonia. Para ilustrar o que estou dizendo, aponto dois temas presentes na agenda brasileira, mas não só nela.
  2. O primeiro diz respeito à questão ecológica, que ultimamente ganhou relevância no Brasil, mas ainda enfrenta duas fortes oposições, ambas associadas com o crescimento ou desenvolvimento econômico, ou seja, o agronegócio (em grande medida, cego à questão ambiental) e o próprio desenvolvimentismo governamental e sua obsessão pelo petróleo e pela fabricação de represas. Neste contexto, a despeito da crescente penetração do discurso ecológico em diversos setores da sociedade, os ecologistas brasileiros, cuja conformação ideológica é variada e contraditória, enfrentam oposição tanto proveniente da direita quanto da esquerda; aliás, não é incomum encontrarmos, em ambos os casos, adjetivos que procuram desqualificar temas relacionados com a ecologia.
  3. O segundo tema pode ser grosso modo definido como transferência direta de renda, incluindo-se aí tanto programas como bolsa família quanto os debates mais teóricos sobre renda básica. Aqui, embora a adesão a esse tipo de política tenha crescido muito nas últimas décadas, ela também ainda encontra forte resistência, de direita e de esquerda; uns porque, pelos mais diversos motivos, são contra distribuir dinheiro aos pobres; os outros, sobretudo em suas versões mais tradicionais, porque só acreditam em emancipação ou cidadania pela via do mercado de empregos e, portanto, do crescimento econômico. Os debates no Brasil são muito claros a esse respeito, sobretudo quando tratam da questão condicionalidade/incondicionalidade da transferência de renda. Ainda assim, esse é, entre nós, um campo promissor. Mas o mesmo não se pode dizer em relação ao limite máximo de riqueza, com o tema da taxação das grandes fortunas permanecendo na periferia dos debates políticos, mesmo em épocas de campanhas eleitorais.

Para concluir, quero dizer que além da questão de “o que fazer”, a qual é bem contemplada pelo manifesto, precisa-se considerar também a questão de “como fazer”, que ainda carece de mais elaboração para tornar mais visíveis os caminhos para se viabilizar as propostas do manifesto.

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por Anders Noren

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