O problema redistributivo da riqueza
Leopoldo Waizbort
A realidade concreta e dura das condições materiais de vida exige uma atenção especial aos possíveis meios de sua reestruturação em termos planetários.
Isso diz respeito, em meu juízo, a um problema, ou questão, basilar, sem o qual a busca de um convivialismo está fadada ao fracasso. Essa questão é a redistribuição da riqueza, de novo, e necessariamente, pensada em termos planetários.
Quanta desigualde econômica, ou, se preferirem, de disponibilidade e acesso a recursos materiais, os habitantes do planeta podem suportar, tendo em vista os enunciados do manifesto convivialista, é uma questão central em termos de sua concretização, ou seja, da implementação dos seus princípios e enunciados.
Certamente, alguma desigualdade é suportável, e os seus limites indefinidos, e talvez mesmo indefiníveis, exigem, contudo, o reconhecimento de uma margem, de um gradiente divisório, que permita fixar algum parâmetro à diferença de riqueza e de acesso a bens materiais.
Entendo que não é possível convivialismo em um planeta no qual uns dispõem de alimentos em excesso, moradias super-confortáveis, aparelhos para múltiplas funções, saúde e acesso à tecnologia da saúde mais avançada, e educação extensa, múltipla e variada, enquanto a outros tudo isso, ou quase tudo isso, falta, e vivem em condições mais ou menos precárias e insatisfatórias (ou indignas, para utilizar um termo do manifesto convivialista) de moradia, saúde e educação.
Saúde, moradia e educação, creio, são três bens inalienáveis, de universalização indispensável, a todos os seres humanos. Implicam, contudo, forte redistribuição.
O manifesto convivialista não deixa de tocar nessas questões, em especial no seguinte trecho: “os Estados legítimos garantem a todos os seus cidadãos mais pobres um mínimo de recursos, uma renda básica, seja qual for sua forma, que os mantém a salvo da abjeção da miséria e proíbe progressivamente aos mais ricos, via instauração de uma renda máxima, cair na abjeção da extrema riqueza, ultrapassando um nível que tornaria inoperantes os princípios de comum humanidade e de comum socialidade.”
Dois aspectos, entretanto, parecem-me merecer comentário.
Em primeiro lugar, o papel conferido aos estados. Não tenho dúvida de que se trata de um problema a ser enfrentado, gerido e quiçá solucionado no domínio da política, mas não estou convicto de que os estados estejam condições de efetivá-los. Isso toca em uma aporia da situação dos estados contemporâneos, que é a sua autonomia e dependência simultâneas. Mesmo supondo-se que um estado qualquer conseguisse resolver, no âmbito de suas fronteiras, o problema redistributivo da riqueza, o nexo supra-nacional, no qual ele atua e do qual depende em inúmeras relações de interdependência, oferece uma barreira insuperável, ao menos na configuração contemporânea dos estados nacionais. Afinal, que estado, e que população nacional, estaria disposta a abdicar de seu bem estar em favor de outros? Não consigo sequer imaginar isso.
Em segundo lugar, embora a ideia da renda básica seja importante e não deva ser negligenciada ou minimizada, ela não me parece ser capaz de contemplar os problemas centrais, mencionados, que são de caráter, por assim dizer, infra-estrutural: moradia, educação e saúde dificilmente podem ser garantidos e otimizados via uma renda mínima, senão que exigem investimentos coletivos – estatais – direcionados. Evidentemente que podem ser resolvidos, em um número considerável dos estados nacionais atualmente existentes, com a redistribuição intra-estatal da riqueza. Mas não em todos, com o que tocamos no ponto indicado anteriormente.
Entendo que a renda mínima é um excelente procedimento, uma vez que educação, saúde e moradia encontram-se garantidos e universalizados em regime consistente. Por outro lado, embora simpatize com a imposição de limites à renda máxima, não julgo que esse ponto seja essencial, pois a garantia do restante, via redistribuição da riqueza, já implicaria, por si só, uma reconfiguração da grande riqueza.
Olhemos para a África, que é a imagem mais concentrada e dramática do nosso desafio. Podemos imaginar um bem-estar geral como o, digamos, alemão para a África? O manifesto convivialista deixa claro que isso não seria possível, dados os custos ecológicos, para não falar nos outros. O que significa, por outro lado, que precisaríamos reduzir o nível de bem-estar – ou, se preferirem, de acesso e disponibilidade do excesso – onde ele ultrapasse uma média planatária sustentável, em favor de uma elevação do mesmo nível onde ele encontra-se abaixo da mesma média. Essa redistribuição planetária de riqueza, sem o que não se pode falar em convivialismo, no sentido enfático do termo, parece-me inexequível nas condições atuais e nas condições vislumbradas a partir do nosso presente. Populações nacionais com elevado nível de bem-estar tem se mostrado recorrentemente bastante refratárias a qualquer tipo de “encolhimento” de um bem-estar adquirido. O ponto de vista, assim como o objeto observado, é sempre o estado nacional. Daí a aporia mencionada acima.
Historicamente, a humanidade tem se mostrado incapaz de criar mecanismos supra-nacionais capazes de ação efetiva em plano global. Essa é uma realidade recente; até o século XX, não se colocava como questão. Ao longo do mesmo século, variados mecanismos foram criados, mas nenhum deles efetivou uma capacidade de gerenciamento redistributivo da riqueza. Saberá o século atual criar tal mecanismo ou instituição?
O manifesto convivialista, que subscrevo com convicção de sua oportunidade e satisfação, parece por vezes depositar demasiadas esperanças nos sujeitos individuais, como átomos últimos, portadores de boa-vontade e livre-arbítrio, quando não demonstrando uma antropologia positiva. Mas o reconhecimento do conflito, que o manifesto não deixa de mencionar, e mesmo destacar, sugere que a diferença pode estar radicada em uma antropologia negativa, com o que as suas bases (do manifesto) ficam abaladas. Afinal, ele parece pressupor um nível de desenvolvimento moral – que comporta uma capacidade de altruísmo e abnegação, de dedicação desinteressada ao próximo, ao distante e ao desconhecido -, que, historicamente, parece-me não se concretizar no presente da humanidade.
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