A ideia de metamorfose1
Entrevista com Edgar Morin
Você acabou de assinar com dezenas de outros intelectuais, o Manifesto dos convivialistas, que se propõe a tentar definir uma filosofia comum para movimentos tão diversos como são os antiglobalização, os indignados espanhóis, o slow food ou os da economia social e solidária. Você acha que essas iniciativas estão delineando o futuro?
E. M.:
Os movimentos existem, mas eles não têm conseguido uma convergência entre si. Todas estas iniciativas formam uma constelação, mas que ainda não estão organicamente relacionadas umas com as outras. O Manifesto dos convivialistas, que eu efetivamente assinei, faz parte desta perspectiva. Precisamos reintroduzir a convivialidade em nossa sociedade. “Convivialismo” é um bom termo, mas não cobre todo o problema, que é complexo. Eu atribuo grande importância ao pensamento de Ivan Illich, um dos pensadores da nossa civilização que, na década de 1970, fez uma crítica da nossa civilização bastante radical, tanto em termos de industrialização, quanto em termos dos padrões de consumo, educação, etc. Entretanto, estamos em um momento na história em que tudo é problemático: a dominação do capitalismo financeiro, a agricultura e a pecuária industrializadas, cujos consumos levam a efetivas intoxicações. As instituições globais tornaram-se completamente insuficientes, impotentes e arbitrárias, como a ONU, ou desviadas, como o FMI. A política chegou a um nível zero de pensamento.
Diante desta situação, nós deveríamos irradiar mais pessimismo ou mais otimismo?
E. M.:
Devemos procurar um novo caminho. Eu desenvolvi a ideia de uma metamorfose para dizer que, basicamente, tudo deve mudar. Países latino-americanos como Equador e Bolívia têm desenvolvido uma política do “buen vivir”. Esta é uma ideia pra ser levada adiante. “Bem-viver” é uma bela palavra cujo significado foi completamente desvirtuado. O problema não é apenas alcançar um nível de conforto com bens materiais tais como uma televisão, um refrigerador ou um carro. Isto é importante. Mas o que importa, acima de tudo, no sentido do “buen vivir” baseia-se na realização de um desenvolvimento pessoal dentro de um desenvolvimento coletivo, de uma comunidade fraternal. O desejo de uma outra vida através da história. Ele tem sido incorporado ao longo dos tempos na ideia de paraíso. Então, esse desejo desceu para a terra com a Revolução Francesa, com o socialismo e com Karl Marx. Minha ideia é permitir a conexão entre três fontes: a libertária para o indivíduo, a socialista para melhorar a sociedade, a comunista para viver em comunidade, e eu adicionaria a vertente ambientalista. O desejo por uma outra vida através do socialismo tem sido enfraquecido. O comunismo, cujos ideais levantaram a juventude em maio de 68, foi desviado. Tal desejo por uma outra vida agora anima os jovens da Primavera Árabe, os do movimento Occupy Wall Street nos EUA, os Indignados espanhóis, os manifestantes no Brasil. Mas para chegar a uma mudança de rumo, lhes faltam o pensamento político. As pessoas estão frustradas, resignadas, sem esperança. Isso é verdade, mas isso ocorre principalmente porque ainda não houve uma chama digna de confiança.
Basicamente, o que é uma sociedade convivial? Uma sociedade na qual a cooperação entre os homens têm precedência sobre a exploração do homem pelo homem?
E. M.:
O filme de Vittorio De Sica, Milagre em Milão, termina com a ideia de uma sociedade onde todo mundo diz “olá” para o outro. Em uma sociedade convivial, as pessoas não são anônimas, elas se cruzam e se reconhecem. Não se trata apenas de civilidade ou cortesia. O outro existe e ele é reconhecido como diferente de você, mas também como semelhante a você. Essa necessidade de reconhecimento existe em todos os seres humanos. Aqueles que são privados disso porque são humilhados, escravizados ou dominados, sofrem. Nas administrações, nas empresas, em todos os lugares, as pessoas estão separadas umas das outras. Na verdade, poderíamos falar da necessidade de “confiança”.
Estar conectado ao seu vizinho ao nível do indivíduo, vila ou cidade é fácil de imaginar. Mas em um nível mundial, não teria que se partir do conceito de que você colocaria tal conexão na frente da “terra pátria”?
E. M.:
Em todo ser humano, existem dois princípios fundamentais. Primeiro, o “eu” egocêntrico e vital para nos defender diante da adversidade. Mas também o “nós” que floresce através da família, dos amigos, nos partidos políticos, na religião, etc. Nossa civilização supervalorizou o “eu” e menosprezou o “nós”. Precisamos mudar este curso e desenvolver um “nós” novamente. A antiga visão se voltava contra o inimigo, contra o invasor. Em todo o mundo de hoje, a convivialidade é descrita como a percepção de que nós, seres humanos, possuímos um destino comum. Estamos na mesma aventura, vamos para o mesmo abismo, e nós devemos reagir juntos e em uma escala global. A questão é como salvar a nossa terra pátria da destruição. Nós somos produtos de uma evolução biológica, que foi construída ao longo de dois bilhões de anos e que a espécie chamada Homo sapiens usou demasiadamente mal. Essa identidade comum produz diferenças. A palavra “pátria” remete à sensibilidade, ao ato de confraternizar-se. É concebível que, no Respeito de todas as diversidades nacionais e culturais, pudéssemos ter condições, contudo, de insistir na unidade. Porque existem aqueles que percebem a diversidade humana esquecendo a unidade. E há aqueles que veem a noção de unidade como uma concepção abstrata que esqueceria a diversidade humana. A globalização tecno-econômica de hoje ignora a diversidade de culturas e a sensibilidade das pessoas. No entanto, se a “terra pátria” inclui pátrias, então a diversidade humana é o tesouro da unidade humana e a unidade é o tesouro da diversidade.
Há momentos na história da humanidade em que acontecem mudanças de rumo, bifurcações. Que indícios você vê de que nós realmente estaríamos vivendo numa fase deste tipo?
E. M.:
Estamos em uma situação em que as coisas não são formadas a priori, não sabemos nem quando e nem como o momento de mudança chega. O mundo está em efervescência. Nós não sabemos o que pode surgir disso. Os ímpetos de morte e destruição são muito fortes. Mas isso não deveria fazer com que deixássemos de ter esperança. Existem muitos conflitos que podem disseminar uma conflagração geral. Cada um é como uma árvore. O vento espalha as sementes. Quando caem em solo fértil, eles crescem. Na Índia, as reflexões do príncipe Buda Shakyamuni sobre o sofrimento humano e a verdade deram origem a uma religião que une milhões de pessoas. Em outro domínio, Marx e Proudhon foram considerados, pela intelligentsia das suas épocas, como marginais e desviantes antes dos seus pensamentos permitirem o surgimento de consideráveis forças políticas.
Mesmo que o futuro próximo não forneça otimismo, ainda assim você afirma que o improvável benéfico acontece. Em sua opinião, as revoluções árabes são sinais de que o improvável pode se tornar provável?
E. M.:
A Primavera Árabe, especialmente na Tunísia e no Egito, são movimentos muito importantes, pacíficos. Mas, no momento, o que vem se originando dela em termos de processos eleitorais tem sido tanto coisas positivas, quanto coisas negativas. A maioria dos partidos de esquerda era perseguido pelos regimes ditatoriais. Isso fez com que eles muitas vezes perdessem o contato com o povo. Os islamistas então tiveram a opção de votar e eleger a si próprios, e assim ocorreu. Mas isso não diminui a importância do evento. Hoje, as pessoas são capazes de vencer o presidente Morsi. Mas a oposição é muito heterogênea. A Primavera Árabe representa um despertador original que irá fecundar o futuro, mas eu não sei exatamente como.
Os manifestantes responsáveis pela Primavera Árabe descreveram seu movimento de “revolução”. Você optou por abandonar este termo e prefere se referir a este movimento como metamorfose. O que é exatamente esse conceito?
E. M.:
Ele nos permite pensar na metáfora da lagarta ainda presa dentro no casulo e pronta para se tornar uma borboleta. Ela se destrói completamente para se tornar outra. Na história da humanidade, o mundo está repleto de metamorfoses. A próxima metamorfose acontecerá num nível planetário. O conjunto das relações, as organizações, tudo vai mudar e neste momento atual, é impossível prever que forma terá esta nova sociedade mundial. Abandonei a ideia da revolução por duas razões. A primeira diz respeito ao objetivo de não mais dar credibilidade à ideia de que “fazemos do passado uma tábula rasa”. Precisamos de todas as culturas do passado, de todas as conquistas do pensamento passado. A ideia de metamorfose envolve tanto a ruptura, quanto a continuidade. A segunda razão é que eu queria deixar para trás a ideia de que a revolução teria mais aspectos autênticos do que violentos. A violência às vezes é inevitável, mas é um erro pensar que ela é justificável e necessária já que, em seguida, ela acarreta mais violência.
O tratamento imposto à Grécia e os planos de austeridade que levam à recessão alimentam uma rejeição da Europa em grandes segmentos da população. A Europa ainda pode desempenhar um papel significativo na política de civilização que você defende?
E. M.:
A crise econômica revelou uma crise que já havia antes. A Europa se desenvolveu economicamente, mas sem uma unidade fiscal e continuou a ser um anão político, incapaz de conduzir a ideia de sua origem: se unir pela paz e de acordo com as características comuns das civilizações. Diante deste vazio, existe hoje então um perigo real. A Alemanha tornou-se o poder político dominante e impôs aos outros o falso remédio da austeridade. Para mim, atualmente existem dois sinais de alerta. As respostas que estão sendo dadas ao domínio do neoliberalismo econômico produzem o caos na Grécia e conduzem a Hungria a um novo sistema autoritário, que ainda não podemos chamar de fascista, mas que é perigoso.
Na França, você recentemente conclamou o presidente da República (François Hollande) a mudar de rumo. O que você pensa sobre a situação?
E. M.:
Digamos que, neste momento, eu esteja esperando. Eu não estou desesperado ainda. Quero expressar uma crítica construtiva. Trata-se de uma situação que eu chamo de “livro dos sintomas inquietantes”. Nós encontramos as mesmas pessoas em gabinetes ministeriais, que emitem os mesmos relatórios e que pensam a política a partir de ideias já internalizadas acerca de crescimento e competitividade. O presidente da República vai ter que entender que devemos mudar de rumo e que o longo caminho para a verdadeira renovação que se abre é o da economia verde. A falta de reflexão sobre o mundo contemporâneo e a crise atual da humanidade nesta era da globalização são fatores que conduzem a uma visão míope, que frequentemente sugestionam a responsabilizar os partidos políticos.
Você fala de regenerar o pensamento político. O que quer dizer com isso?
E. M.:
Os políticos vivem o seu dia a dia. Eles não têm uma visão global. Obviamente, eles não devem ser condenados a virarem sonâmbulos, mas me parece útil que eles se esforcem e comecem a desenvolver um pensamento político que saiba reunir diversos conhecimentos. Tomemos como exemplo a globalização. Ela é tanto um processo econômico, quanto demográfico, sociológico, psicológico, religioso, etc. Todos os pensamentos interferem uns nos outros. Os eventos também. Em 2001, vimos que um grupo político marginal e minoritário, a Al-Qaeda conseguiu destruir duas torres em uma cidade, Nova Iorque, e a consequência é uma conflagração mundial. As partes estão no todo, assim como o todo está nas partes. O mundo somos nós. E este fato leva a uma maneira muito diferente de pensar: complexa, de longo prazo e não maniqueísta. O mundo necessita da globalização (as culturas, por exemplo) e ao mesmo tempo, de uma desglobalização (o caso da agricultura). Ou seja, o mundo precisa, simultaneamente, de crescimento e de decrescimento. Ele deve se desenvolver, a fim de que todos possam se beneficiar do progresso positivo, e também deve envolver as pessoas de modo contínuo a fim de que elas se sintam como pertencentes a uma comunidade. Esse é o sentido de um pensamento político que poderia nos conduzir a uma metamorfose, a uma mudança de direção.
BIZI versus HSBC2
Antoine Peillon
Edgar Morin assume a liderança de
um coletivo de intelectuais contra a evasão fiscal
O economista e filósofo Patrick Viveret reuniu na quarta-feira, dia 8 de abril, em Paris, o sociólogo Alain Caillé, o financista e antigo resistente Claude Alphandery, o escritor Susan George e o filósofo e antigo resistente Edgar Morin.
Todos se declararam “receptores” potenciais de uma cadeira “apreendida” no início de fevereiro no banco HSBC, e fizeram um apelo pela luta contra a evasão fiscal.
Desde 12 de fevereiro, a investigação preliminar sobre o “furto em reunião” de oito cadeiras da agência do HSBC de Bayonne encontra dificuldades aparentemente insuperáveis. No dia 18 de fevereiro, somente três desses assentos foram reencontrados em uma diligência na sede da associação ecologista não-violenta Bizi3 (“Viver”, em basco).
“Requisição cidadã” de cadeiras
Essa associação havia realizado, em plena luz do dia e com os rostos descobertos, a “requisição cidadã” de bens móveis, a fim de protestar contra a evasão fiscal organizada pelo banco HSBC em um montante de 180 bilhões de euros. O delito financeiro havia sido revelado alguns dias antes pelo dossiê Swissleaks.
Logo após, cinco cadeiras do HSBC tornaram-se impossíveis de ser encontradas, apesar dos esforços da polícia: audições – por três vezes – de militantes do Bizi, pedidos de amostras de DNA tiradas dos mesmos manifestantes, interrogatórios ostensivos…
“Meios incríveis” para reencontrar as cadeiras
No dia 31 de março, Txetx Etcheverry, cofundador da associação basca, passou por uma terceira audição a respeito do seu envolvimento na ocultação dos cinco assentos que faltavam de Thomas Coutrot, copresidente da Attac4, de Florent Compain, presidente do Amis de la Terre5, de Vincent Drezet, secretário geral do sindicato Solidaires Finances Publiques6 (primeiro sindicato da direção geral das finanças públicas) e de Patrick Viveret, presidente do movimento SOL “por uma apropriação cidadã da moeda”.7
O militante basco não-violento disse então: “os meios incríveis postos na busca destas cinco cadeiras evidenciam ainda mais cinicamente a ausência escandalosa de medidas tomadas para encontrar os bilhões de euros que custam, a cada ano, a evasão fiscal das receitas públicas europeias, segundo o antigo comissário Michel Barnier“.
“Cumplicidade” com os ecologistas bascos
A partir desse momento, a causa e a ação da associação Bizi foram compartilhadas por um grande número de associações, dentre as quais o CCFD Terre Solidaire.8 Mas elas atraíram a atenção sobretudo de algumas personalidades de renome, que decidiram declarar publicamente sua “cumplicidade” com os ecologistas bascos. Neste 8 de abril, Patrick Viveret, filósofo, antigo conselheiro referendário da Corte de Contas e antigo conselheiro de Michel Rocard, organizou uma reunião em Paris, na casa de Alain Caillé, sociólogo, que está na origem do Manifesto Convivialista (2013). Responderam ao apelo o financista e antigo resistente Claude Alphandery, o ensaísta franco-americano Susan George e o filósofo e antigo resistente Edgar Morin. Todos se sentaram sobre a cadeira do HSBC, levada por Patrick Viveret, e a trocaram entre si na calçada de uma avenida do 14o distrito, em frente a uma agência do BNP Paribas.
“Resistir contra duas barbáries”
R espondendo às questões de La Croix, Edgar Morin, 93 anos, alegre e em plena forma, inscrevia sua presença e a do seu amigo Claude Alphandery “em uma linha do que foi a Resistência, mas também outras resistências muito menos perigosas, mas que nos implicavam ainda assim”.
Ele declarou, com vivacidade : “Hoje, contra o que é preciso resistir? É preciso resistir a duas barbáries. Uma barbárie que todos nós conhecemos, que se manifesta pelo Daech, pelos atentados, pelos fanatismos os mais diversos. E a outra barbárie, que é fria, glacial, que é a barbárie do cálculo, do dinheiro e do interesse. No fundo, face a essas duas barbáries, todo o mundo deveria, hoje, resistir.“

Qualificando sua solidariedade simbólica com a associação Bizi de “gesto de resistência”, Edgar Morin especificou: “Você sabe, quando estávamos contra a ocupação nazi, estávamos pela liberdade. Hoje, eu estou contra a evasão fiscal e os procedimentos destes bancos como o HSBC, mas eu estou pelo bem da França e o bem-estar dos franceses”.
Notas
1 Esta entrevista foi originalmente publicada em L’humanité, em 19 de Julho de 2013, e republicada em português com tradução de Marcos de Araújo Silva no Jornal do MAUSS iberolatinoamericano (http://www.jornaldomauss.org/periodico/). Agradecemos a Paulo Henrique Martins, editor responsável pela publicação, pela autorização em inserir esta entrevista neste livro.
2 Tradução, feita por André Magnelli, do artigo: PEILLOT, Antoine. “BIZI versus HSBC”. La Croix. 08/04/2015. Disponível em: http://www.la-croix.com/Actualite/Economie-Entreprises/Economie/Edgar-Morin-prend-la-tete-d-un-collectif-d-intellectuels-contre-l-evasion-fiscale-2015-04-08-1300194
3 NT: Bizi! (http://www.bizimugi.eu/)
4 NT: ATTAC France. Un autre monde est possible (ATTAC França. Um outro mundo é possível: https://france.attac.org/)
5 NT: Amigos da Terra (http://www.amisdelaterre.org/)
6 NT: Solidárias Finanças Públicas (http://solidairesfinancespubliques.fr/).
7 NT: Le Mouvement SOL (http://www.taoaproject.org/monnaies-locales/initiative-sol-en-france/)
8 NT: CCFD Terra Solidária (http://ccfd-terresolidaire.org/)
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