Publicamos hoje no Fios do tempo um artigo de Maria das Graças Siqueira da Rocha que parte de uma indagação provocativa: terá a experiência de Sócrates, ocorrida há quase 2500 anos, algo a nos dizer ainda hoje? Sendo um pequeno ensaio resultante de sua livre-pesquisa no Ateliê de Humanidades, a autora se propõe a apresentar a atualidade do Sócrates presente na Apologia escrita por Platão e nas memórias relatadas por Xenofonte.
Mas, muito longe de pretender ser mais uma exegese sobre textos clássicos, Graça Rocha aproxima a missão e os ideais de Sócrates de nossa contemporaneidade, comparando-os com a experiência de Carlos Palma e o nascimento do movimento Living Peace. Com isso, ela nos faz vislumbrar um Sócrates inspirador de uma cultura para a paz, que seja pautada por uma educação capaz de reconectar os saberes com as virtudes, combinando as dialéticas com os testemunhos e as palavras com as ações vividas.
Mas como alertar àqueles que seguem uma racionalidade onde o instrumental aparece como um fim em si mesmo, minando, com isso, a possibilidade de uma educação voltada para as virtudes? Pelos vários contextos históricos, poderíamos arriscar a dizer que, em combinação com a dialética de Sócrates, os tempos atuais reclamam por testemunhos de vivências fundamentadas em valores fortes, que relatem a possibilidade de uma outra racionalidade orientadora de nossas escolhas e ações. Ambos são meios preciosos de formação humana. Melhor ainda, os testemunhos parecem ser ainda mais importantes do que o método dialético, pois é a partir deless que se torna possível uma dialética substantiva.
A experiência de Sócrates tem algo ainda a nos dizer?
Rio de Janeiro, 05 de dezembro de 2019
O contato com a figura de Sócrates ocorre a partir dos relatos de outrem e não do próprio. Existiu ou não? Essa é uma pergunta sem resposta, ou melhor, podendo ter respostas positivas ou negativas. Mas as mensagens que se depreende das narrativas sobre Sócrates chegam neste tempo atual e provocam reflexões. Interessante foi perceber que o tempo não retirou, a meu ver, a validade de uma determinada “missão” de Sócrates na busca de despertar os homens de seu tempo, cidadãos atenienses, para o que teria realmente valor e que conduziria ao Bem, à Verdade, ao Belo e ao Justo. Foi importante reconhecer, também, que o conhecimento do homem, do universo e do cosmos não estaria totalmente ao alcance da razão, que haveria outra via de acesso somente possível por meio da prática da virtude, uma palavra no singular, mas que se expressaria de múltiplas formas, como a justiça, a temperança, a sabedoria, a prudência, a benevolência.
A sabedoria divina: uma vida de virtudes vale a pena ser vivida
Na Apologia de Sócrates de Platão, Sócrates é apresentado como um cidadão cujas ações eram consideradas fora do comum e que se tornaram a causa das denúncias que o levariam à condenação: “(…) se não tivesses uma ocupação fora do comum, não haveria esse falatório (…)”.1 Mas Sócrates agia segundo uma motivação particular: confirmar ou não a afirmação do oráculo de que ele era o mais sábio entre todos. Encontrava-se entre duas constatações: de que o oráculo não mentiria e de que não acreditava ser o mais sábio. Sua decisão foi submeter a exame tal afirmativa, buscando encontrar alguém mais sábio do que ele: “Cumpria-me, portanto, averiguar o sentido do oráculo, ir ter com todos os que passavam por senhores de algum saber”.2
Mas o método utilizado revelou que os que se supunham sábios naquela época – poetas, artesãos, políticos e sofistas -, na realidade não o eram. A sabedoria que possuíam não revelava o domínio do próprio conhecimento. A conclusão de Sócrates foi a de que sábio era o deus e queria dizer no seu oráculo que pouco valor ou nenhum teria a sabedoria humana.3 Na realidade, acreditava-se que o conhecimento humano, de um ponto de vista de uma arte (technè), seria inerente ao próprio ofício, e definiria o sábio como o que teria a destreza técnica de um determinado ofício, que, em consequência, assim se reconhecia e se fazia reconhecer. Mas haveria uma sabedoria de outra ordem, somente acessada pela virtude.
Como levar essa mensagem à sociedade? Como sair do engano? Não por uma mágica, certamente. Mas por uma reflexão ajudada por outro homem, por um homem virtuoso, capaz de falar do que já vivia e tinha como norma de vida. Poderia se depreender aqui que a busca da sabedoria tem uma dinâmica relacional, sendo necessárias duas ou mais pessoas: às vezes, em situação de igual troca de experiências e reflexões, outras vezes, sobretudo quando se trata de uma diferença de maturidade, por meio de uma relação entre um mestre e um discípulo. Ainda que a presença de um mestre detentor de uma experiência exemplar ou de um modelo de virtude se faça presente, não se trata de uma relação “autoritária” ou de “poder”, pois o ponto de partida é o reconhecimento socrático de que o mestre só sabe que nada sabe. Seu papel é então de incitar no interlocutor um amor pelo saber (philosophia) e um desejo de virtude, fazendo com que ele queira se engajar em um diálogo entre iguais em uma busca em comum.
O alerta de Sócrates consiste em despertar as pessoas para o cuidado com a virtude e para a relação da virtude com a dignidade humana; e nessa tarefa socrática, ele age como um pai ou irmão mais velho, e não como um juiz. Ao colocar-se nesse lugar, com um amor fraterno e filial, sem uma posição de autoridade legal ou inquestionável, ele leva a uma compreensão própria da responsabilidade perante o outro, mas com o risco de certas perdas, como afirma:
(…) É conforme a natureza do homem que eu tenha negligenciado todos os meus interesses, sofrendo, há tantos anos, as consequências desse abandono do que é meu, para me ocupar do que diz respeito a vós, dirigindo-me sem cessar a cada um em particular, como um pai ou irmão mais velho, para o persuadir a cuidar da virtude (…).4
Em seu percurso investigativo, Sócrates encontrou, nos seus interlocutores, outro modo de conceber a sabedoria, distante da sabedoria a que o deus se referia. O seu método proporcionava o desnudar dessa realidade e o anúncio do valor da virtude como verdadeira fonte de toda sabedoria, a virtude constitutiva da essência do homem. Mas esse trabalho maiêutico necessitaria de um passo anterior, o de reconhecer que nada sabia, colocando-se assim a partir de outra perspectiva: a sabedoria estava em reconhecer-se como um ser não sábio.
Todavia, esse se mostrou um momento difícil. Ocorreu que a posse adquirida do conhecimento técnico, principalmente no domínio da persuasão, arte dos sofistas, levou a uma atitude de fechamento frente a questões que colocavam em dúvida o próprio conhecimento e, como consequência, impunha uma dificuldade para aqueles que, se reconhecessem que nadam sabiam, poderiam perder a fama ou a glória adquirida. Para manter-se nesse lugar de detentor da verdade, expressão de falta da virtude da humildade, eles buscaram eliminar aquele que fala à sua consciência e que colocavam às claras a ilusão sobre a qual se sustentava sua sabedoria.
Mas a atitude de Sócrates fundamentava-se na fidelidade a uma voz, em vista do bem do homem e da sociedade: “faço-o por uma determinação divina, vinda não só através do oráculo, mas também de sonhos e de todas as vias pelas quais o homem recebe ordens dos deuses”.5 Esta voz era o que ele chamava de seu daimon. Diante da reação de condenação, deixa a pergunta:
Eu que entreguei à procura de cada um de vós em particular, a fim de proporcionar-lhe o que declaro o maior dos benefícios, tentando persuadir cada um de vós a cuidar menos do que é seu que de si próprio para vir a ser quanto melhor e mais sensato, menos dos interesses do povo que do próprio povo, adotado o mesmo princípio nos demais cuidados?6
Trazia, de certa forma, o alerta de que não se teria o controle de tudo, de que não se sabia de tudo, que também deveria se considerar uma participação dos deuses. E ainda, que o exercício da virtude abriria a possibilidade de acessar o limite do conhecimento humano.
A voz de Sócrates perturba a consciência, que se encontra estabilizada no seu saber. Poderia, talvez, dizer que haveria uma visão de humanidade presente no que o deus dissera em relação a Sócrates. E se encontra na sua afirmação:
se vos disser que para o homem nenhum bem supera o discorrer cada dia sobre a virtude e outros temas de que me ouvistes praticar quando examinava a mim mesmo e a outros, e que a vida sem exame não é vida digna de um ser humano (…) .7
Sócrates não se vê como imbecil ou impostor, por não predizer coisas reveladas por um deus e em seguida as desmentir: “Evidente, portanto, é que se absteria de predizer caso não estivesse certo da verdade. Ora, o que lhe inspiraria esta certeza senão um deus?”.8
Sócrates reconhecia que algumas coisas estavam no domínio da sabedoria humana, ou seja, as coisas de resultados certos, confirmados pelo conhecimento técnico do ofício; mas existiriam as que seriam de resultados duvidosos, que a técnica não alcançaria, e nesses casos, a orientação que dava era a consulta aos oráculos. Com esses exemplos mostrava que nem tudo estava no domínio do homem: “Com efeito, ignora aquele que plantou um vergel, quem lhe colherá os frutos. Quem a capricho construiu uma casa não sabe quem a habitará.”.9
Os “sábios” da época, escravos da própria fama ou glória, desconsideravam a virtude como princípio gerador de conhecimento metafísico, que poderia ser revelada tanto pelos deuses quanto, sobretudo, pela razão (logos) através da dialética socrática. Sócrates quer dizer que o conhecimento técnico não é toda a razão, e que existem questões de sabedoria que não podem ser reduzidas à técnica; com isso ele está antevendo o risco de uma concepção moderna de racionalidade que fosse reduzida à técnica. Esta última não reconheceria o conhecimento como busca de sabedoria, nem as virtudes como base da experiência humana. Esse modo de ser se apresentava entre os atenienses, como Aristodemo, quando entendiam que os deuses seriam alheios às ações humanas e que nelas não interfeririam, e quando pensavam que suas vidas individuais poderiam ser indiferentes à pólis e ao destino de seus concidadãos. Esse entendimento resultava no descuido com a virtude. Já para outros, como Sócrates, os deuses teriam “olhos fitos nas ações humanas” e tudo que concernia aos concidadãos importava também para os demais.
Virtudes para a paz: dialéticas e testemunhos
A experiência atribuída a Sócrates fundamentada na virtude em vista do Bem, da Verdade, do Belo e do Justo traz certa compreensão do homem e da sociedade por ser uma experiência que busca recuperar a dignidade da vida e do homem. Vivemos um momento em que se pode colocar em questão se a sociedade e seus cidadãos têm uma compreensão comum sobre a dignidade humana capaz de orientar a relação entre os indivíduos em vista daqueles valores.
Quando se reconhece que uma sociedade não garante a dignidade humana, e não abre espaço a seu desenvolvimento pleno, esse fato poderá indicar que as relações ou ações estão baseadas numa racionalidade que não levaria em consideração tais valores. Com uma chave de leitura da experiência socrática, poderíamos dizer que, para haver uma mudança na sociedade, seria preciso que o próprio cidadão examinasse frequentemente sua vida à luz do Bem, da Verdade, do Belo e do Justo, valores presentes no interior do homem e que falam pela consciência. E ainda, deveriam ter o cuidado de mantê-los como referenciais, pois são os que podem dar sentido à própria existência. O meu objetivo é mostrar que somente por meio de um saber que se dedica a examinar tais valores é possível construir hoje uma cultura de virtudes para a paz, que seja, ao mesmo tempo, uma cultura de justiça e de amor.
Mas como alertar àqueles que seguem uma racionalidade onde o instrumental aparece como um fim em si mesmo, minando, com isso, a possibilidade de uma educação voltada para as virtudes? Pelos vários contextos históricos, poderíamos arriscar a dizer que, em combinação com a dialética de Sócrates, os tempos atuais reclamam por testemunhos de vivências fundamentadas em valores fortes, que relatem a possibilidade de uma outra racionalidade orientadora de nossas escolhas e ações. Ambos são meios preciosos de formação humana. Melhor ainda, os testemunhos parecem ser ainda mais importantes do que o método dialético, pois é a partir deless que se torna possível uma dialética substantiva.
Nesse ponto visito a experiência do projeto Living Peace. Tudo começou quando o uruguaio Carlos Palma foi para um trabalho no Médio Oriente, onde viveu por 30 anos uma “aventura marcada pela guerra” em países como Israel, Palestina, Líbano, Turquia, Iraque e Egito. Pela primeira vez se vê interrogado por jovens sobre o que seria a paz.

Ele próprio foi vítima de violência por discriminação religiosa, como relata: “um grupo de palestinos, pensando que eu era judeu, começou a apedrejar-me. Ao perceber a chegada de policiais judeus eles fugiram, mas um caiu no chão; vi sangue na sua perna e dei-lhe o meu lenço para se limpar. Poucos dias depois foi à minha casa para me devolver o lenço e um pão grande feito pela sua mãe”.
Este gesto porta um significado a ser interpretado. Diante da violência sofrida, a reação de Palma é de não-violência, uma reação que revela princípios e valores de fraternidade que estão incorporados no seu estilo de vida. Sua atitude ilustra aquilo que mencionei em um texto anterior aqui no site do Ateliê de Humanidades, a saber, que as palavras ou atitudes baseadas em virtudes, ou no amor, têm a potência de chegar à essência humana e ser fonte de transformação. É o que constatamos na atitude posterior do agressor, no seu gesto de reciprocidade. A atitude de Palma, assim como aquela de Sócrates, adquire a força de um testemunho capaz de levar o homem ao encontro consigo mesmo e de se reconhecer capaz das mesmas virtudes, e agir em consequência.
Isso provoca-me algumas perguntas: existiria um elo comum entre a experiência de Sócrates e a de Carlos Palma, certamente cada uma no seu contexto? O ser humano teria em sua essência algo constitutivo de sua natureza, que é atemporal e o torna capaz de agir segundo o Bem, a Verdade, o Belo, o Justo, ou o Amor?
Palma experimentou que o caminho para a paz e para uma humanidade mais fraterna passa pelo resgate das virtudes, que podem ser resumidas numa palavra: Amor. Com base nessa experiência, interroga-se: como contribuir para a paz? Para dar uma resposta concreta em vista de reinserir o amor no agir social, fez nascer o projeto Living Peace, que é uma proposta em direção a um percurso de educação para a Paz.
Gratuidades que educam: uma inspiração socrática por princípios esquecidos?
Caminhando com esses dois companheiros de viagem, que possuem ideais de felicidade e justiça, para si e para o outro, num alcance a toda cidade ou à humanidade, vemos que é possível ter ações sociais que escapam do cálculo e das comparações, ou seja, do pensamento instrumental. Tanto o agir socrático como o agir no Living Peace trazem, para o social, ações de gratuidade, podendo ser entendidas como puro dom, sem intencionalidade de reciprocidade.
Numa leitura a partir do sociólogo francês Luc Boltanski, essas ações seriam justificadas por um amor em sua dimensão agápica. Esta dimensão agápica do amor analisada por Boltanski está presente em um artigo do sociólogo italiano Gennaro Iorio, Professor do Departamento de Ciências Políticas, Sociais e Comunicação da Universidade de Salerno (Itália), onde lemos:
A ágape se mostra na sua práxis. Portanto, não é um agir utilitário, de troca de mercadorias, porque ninguém oferece ou procura, de acordo com o princípio de cálculo das ‘utilidades marginais’ para si mesmo, nem é fundamentada no princípio de justiça, do dar ou retribuir, de acordo com um critério de distribuição. Nem tão pouco é aferente à lógica da solidariedade, que implica tornar-se participante de uma condição que não é a própria, ou de na própria posição social ter a adesão ou a estima dos outros. Geralmente, a ágape nem sequer tem como especificidade a reciprocidade (o que não quer dizer que lhe seja negada) enquanto que quem ama, frequentemente, se encontra a quebrar o circuito da restituição.10
Algumas realidades podem ofuscar esses valores, mas não podem anulá-los, e a voz da consciência continuará a falar, e aquele que se conecta com essa voz e que já coloca em prática tais valores sente-se impulsionado a agir, pela força de sua verdade e por um sentimento que o faz se comprometer com as mudanças necessárias para restabelecer os princípios esquecidos ou perdidos.
Deixo uma pergunta: a ideia do Ateliê de Humanidades e sua criação poderiam ser lidas por essa mesma chave de leitura?
Maria das Graças Siqueira da Rocha
Presidente da Associação Civitas
Livre Pesquisadora do Ateliê de Humanidades
Integrante da Comissão de Economia de Comunhão do Rio de Janeiro
Notas
1 Platão, Defesa de Sócrates. in: Sócrates. Col. Pensadores. São Paulo. Abril Cultural, 1972. pág. 14.
2 ibid., p. 15.
3 ibid., p. 16.
4 Ibid., p. 22.
5 Ibid., 24.
6 Ibid., p. 27.
7 Ibid., p. 28 (grifo nosso).
8 Xenofonte, Ditos e Memoráveis de Sócrates, livro I. In: Sócrates. Col. Pensadores. São Paulo. Abril Cultural, 1972. p. 39.
9 Ibid., p. 40.
10 Ver REALIS, v. 6, n. 01, Jan-Jul. 2016.
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