Pontos de leitura. Temperança e autodomínio: exercícios de virtude e prazer – por Sócrates (com comentário de Graça Rocha)

além de expor-se muito menos aos sofrimentos, ele acreditava experimentar [com a temperança] tanto prazer em satisfazer-se como os que compram o gozo ao preço de mil tormentos

A narrativa abaixo de Xenofonte sobre Sócrates pode nos levar a reconhecer como se chega a uma vida mais equilibrada e, possivelmente, de maior temperança e menor tormento. Percorrendo sua narrativa proponho pensarmos sobre dois pontos:

1. É preciso saber dar o que é necessário dar no tempo que é necessário ter

Há um tempo próprio para atender à necessidade corporal e é preciso escutar a sua voz. Há também uma medida justa para atendê-la e aí o corpo também informa. Esse autoconhecimento fortalece o espírito. Evitar as demasias requer a temperança, o autodomínio, para não se deixar seduzir pelos sentidos e cair nos excessos. Aquele a mais que dou ao corpo sem necessidade poderá ser causa do nosso desequilíbrio, com reflexos não somente para o corpo, mas para o espírito. Nessa linha, a abundância pode tornar-se um risco.

Fazendo aqui uma parada e olhando ao nosso redor: o que a temperança tem a ver com uma realidade social voltada para a acumulação e a divisão social dos bens? Ela traz alguma pista para como se educar hoje? Talvez ela nos faça aprender a nos autoconhecer, a buscar saber quais são as nossas próprias necessidades. Viver somente com o necessário é um desafio frente às desigualdades, ou melhor, leva a saber como evitá-las. É preciso saber dar o que é necessário dar no tempo que é necessário ter; ou seja, é preciso saber renunciar a um apetite fora da necessidade ou do tempo de si.

2. Para que as palavras tenham a força de quem os vive

Na narrativa pode-se destacar que o sentido da liberdade seria entendido como o que se atinge no exercício das virtudes. É o percurso que desenvolve no homem a sabedoria e a prudência. O destaque aqui estaria no viver o bem e o belo enquanto valores universais, e não particulares, ou como simples qualificadores de algo ou alguém.

No cotidiano podemos estar sujeitos à atração momentânea provocada por aparências que afastam a possibilidade de se tocar a essência da pessoa ou do objeto que atrai. Paramos no belo aparente que não liberta, mas que escraviza a ponto de não termos a razão iluminada pelas virtudes; com isso, perdemos o contato conosco, tornando mais difícil o retorno à virtude e, portanto, à liberdade. É um percurso que pode levar a uma vida de tormentos e sofrimentos.

E aqui se reconhece o valor da vida e da missão de Sócrates. Alguém que testemunhava que era possível ser virtuoso e cujas palavras teriam a força para ajudar àqueles que, se assim se permitissem, voltassem à liberdade. Se as fontes de nossas escolhas e ações estão na essência do nosso ser, iluminadas e conduzidas pela virtude, então os sentidos e o prazer poderão estar a serviço da temperança [e serem alimentados por ela].

Voltando o olhar para o nosso entorno, podemos encontrar tantos vazios existenciais que levam, tantas vezes, à depressão e ao suicídio, inclusive em jovens e adolescentes. Quantos enganos estão sendo produzidos e alimentados socialmente! Há esperança? Talvez precisemos retornar aos valores universais, numa transformação pessoal primeiramente, para que as palavras tenham a força de quem os vive.

Maria das Graças Siqueira da Rocha


[Temperança e autodomínio: exercícios de virtude e prazer]

Como Sócrates me parecia ser útil a seus discípulos, já pelo procedimento, já pela palavra, eis o que passo a relatar, alinhavando o melhor que possa minhas recordações.
[…] Afizera o seu corpo a regime tal que, tirante o caso de intervenção do Alto, quem o seguisse viveria completamente isento de inquietudes e perigos, tendo sempre com que ocorrer a suas modestas necessidades. Era tão frugal que não sei de pessoa que não pudesse trabalhar o bastante para ganhar o que contentava Sócrates. Não comia senão enquanto tivesse prazer, fazendo-o com disposição tal que o apetite lhe servia de condimento. Toda bebida lhe sabia agradavelmente, porque jamais bebia sem ter sede. Se, convidado, ia a um banquete, facílimo lhe era observar o que à maior parte dos homens se antolha tão penoso, o não entregar-se a excessos. Aos que não eram capazes de fazer outro tanto, aconselhava não comer sem apetite nem beber sem sede. São tais demasias — aditava — que fazem mal ao estômago, cabeça e espírito. E ajuntava, brincando, que Circe empregava a abundância de iguarias para transformar os homens em porcos, e que aos conselhos de Hermes, à sua natural temperança e à abstinência dos excessos da mesa, devera Ulisses o haver-se furtado à metamorfose. Assim casava o chistoso ao sério.
No tocante ao amor, aconselhava a fugir resolutamente a sociedade das pessoas belas. Não é fácil — dizia — manter-se prudente em seu comércio. Vindo a saber, certa vez, que Critobulo, filho de Críton, roubara um beijo ao filho de Alcibíades, mancebo de rara formosura, teve com Xenofonte, em presença de Critobulo, esta entrefala:
— Dize-me, Xenofonte, não tinhas Critobulo na conta de jovem sábio antes que de amoroso indiscreto, homem prudente antes que insensato e temerário?
— Certamente — conveio Xenofonte.
— Pois bem, considera-o, doravante como o mais impulsivo e arrojado dos homens, capaz de desafiar o ferro e afrontar o fogo.
— Que o viste fazer — indagou Xenofonte — para acusá-lo dessa maneira?
— Pois não teve a temeridade de furtar um beijo ao filho de Alcibíades, jovem de tamanha beleza e frescor?
— Ora, isso é ato de temerário! — retrucou Xenofonte.
— Estou que eu próprio bem poderia cometer semelhante temeridade.
— Desgraçado! — exclamou Sócrates.
— Imaginas o que te sucederia se beijasses uma pessoa jovem e bela? Ignoras que de livre, num momento te tomarias escravo? Que pagarias caro prazeres perigosos? Que já não terias ânimo de perquirir o que é o belo e o bem? Que haverias de dar cabeçadas como um louco?
— Por Hércules! — retrucou Xenofonte — que terrível poder emprestas a um beijo!
— Admira-te? — perguntou Sócrates.
— Não sabes que as tarântulas, que não são maiores que uma moeda de meio óbolo, com o só tocar os lábios causam ao homem dores tremendas e privam-no da razão?
— Por Júpiter! bem o sei: — replicou Xenofonte — mas é que ao picar a carne as tarântulas insinuaram-lhe um não sei quê.
— Insensato! — bradou Sócrates — não desconfias haver no beijo de uma pessoa jovem e bela algo que teus olhos não vêem? Ignoras que esse monstro que se chama uma pessoa louça e formosa é tanto mais temível que a tarântula, quanto esta fere tocando ao passo que a outra, sem tocar, mas, pelo só aspecto, lança à distância um não sei quê que põe em delírio? Talvez até seja porque os jovens belos firam de longe que se dá o nome de archeiros aos amores. Aconselho-te, pois, Xenofonte, que quando vires uma pessoa bela, fujas, sem sequer te voltares. E a ti, Critobulo, receito-te viajar um ano inteiro: todo este tempo mal dará para curar tua picada.
Era pois de parecer, em amor, que aqueles que não pudessem reprimir seu ardor o mitigassem como a tudo a que o espírito só atende em caso de imperiosa necessidade do corpo, necessidade cuja satisfação não deve, todavia, impor à alma o menor constrangimento. Quanto a ele, estava tão bem armado contra tais delírios, que se afastava das pessoas jovens e bonitas com mais facilidade que outros das pessoas feias e disformes.
Eis como se portava em face do beber, do comer e dos prazeres dos sentidos. E além de expor-se muito menos aos sofrimentos, acreditava experimentar tanto prazer em satisfazer-se como os que compram o gozo ao preço de mil tormentos.

Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates, Livro I capítulo III, por Xenofonte
(“Os pensadores”, Editora Abril Cultural)

Fonte da imagem: Luca Giordano, Allegory of Prudence (1680), The National Gallery, London


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