Não cessamos de perder a memória dos atos estranhos a que se entregavam os sacerdotes em redutos sombrios e secretos, onde sozinhos, vestiam a estátua de um deus, a ornamentavam, limpavam-na, erguiam-na ou mostravam-na, preparavam-lhe uma refeição e lhe falavam indefinidamente, e isto todos os dias, todas as noites, na aurora, no crepúsculo, quando o sol e a sombra atingiam seu ápice. Temiam eles que uma única interrupção nesse cuidado contínuo e infinito ocasionasse formidáveis consequências?
Amnésicos, acreditamos que eles adorassem o deus ou a deusa esculpidos em pedra ou madeira; não: eles davam a palavra à própria coisa, mármore ou bronze, conferindo-lhe a aparência de um corpo humano dotado de voz. Comemoravam seu pacto com o mundo.
Chegamos a esquecer quais razões os monges beneditinos se levantam antes do dia para cantar matinas e laudas, as pequenas horas de prima, tércia, sexta ou adiam o seu descanso para a tarde na noite a fim de salmodiar mais uma vez, nas completas. Não guardamos a lembrança das preces necessárias nem desses ritos perpétuos. Contudo, não muito longe de nós, trapistas e carmelitas desfiam sem trégua o ofício divino.
Não acompanham o tempo, mas o sustentam. Seus ombros e suas vozes, de versículos em orações, carregam os minutos em minutos ao longo da frágil duração que, sem eles, se quebraria. Quem, ao contrário, nos convence da ausência de lacuna nos fios ou nos tecidos crônicos? Penélope, dia e noite, não abandonava o trabalho de tapeçaria. Assim a religião passa, fia, ata, reúne, recolhe, liga, religa, lê ou canta os elementos do tempo. A palavra religião conta exatamente este percurso, este exame ou este prolongamento cujo inverso se chama negligência, aquela que não cessa de perder a lembrança dessas palavras e desses comportamentos estranhos.
Os doutos dizem que a palavra religião poderia ter duas fontes ou origens. Segundo a primeira, significaria, por um verbo latino: religar. Ela nos liga entre nós, garante a ligação deste mundo com um outro? Pela segunda, a mais provável, não certa, mas vizinha do precedente, quereria dizer reunir, recolher, elevar, percorrer, reler.
Mas eles jamais dizem qual palavra sublime a língua coloca diante do religioso, para negá-lo: a negligência. Quem não tem religião, não deve dizer-se ateu ou incréu, mas negligente.
A noção de negligência faz compreender nosso tempo.
Nos templos do Egito, da Grécia ou da Palestina, os ancestrais, digo eu, sustentavam o tempo, como se ansiosos de lacunas possíveis. Hoje, estamos perturbados com as catástrofes no tecido aéreo de proteção que garante não mais o tempo que escoa, mas o tempo que faz. Ligavam, reuniam, recohiam, realçavam, jamais cessavam, como os monges no correr de todo o dia. E se, por acaso, existissem uma história e uma tradição humanas simplesmente porque homens dedicados ao prazo mais longo concebível não cessaram de recoser o tempo?
A modernidade negligencia, falando-se em termos absolutos. Ela não sabe, nem pode e nem quer pensar nem agir em direção ao global, temporal ou espacial.
Pelos contratos exclusivamente sociais, nós deixamos o elo que nos prende ao mundo, aquele que liga o tempo que passa e escoa ao tempo que faz, o que relaciona as ciências sociais e as do universo, a história e a geografia, o direito e a natureza, a política e a física, o elo que dirige a nossa língua para as coisas mudas, passivas, obscuras que, em função dos nossos excessos, retomam voz, presença, atividade, luz. Não podemos negligenciá-lo.
Podemos praticar, na expectativa inquieta de um segundo dilúvio, uma religião diligente do mundo?
Alguns organismos desapareceram da superfície da Terra em razão de seu imenso tamanho, dizem. Isto nos espanta ainda que as coisas maiores sejam as mais frágeis, como a Terra inteira, o Homem na megalópole ou o Ser-em-toda-parte, Deus, enfim. Há muito fruindo da morte dessas grandezas tão frágeis, a filosofia hoje se refugia nos pequenos detalhes que lhe dão segurança.
Com que ombros diligentes sustentar, de agora em diante, esse céu imenso e fissurado que, pela segunda vez em uma longa história, receamos que nos caia sobre a cabeça?
Michel Serres
O contrato natural (Nova Fronteira, 1999, p. 59-61)
Achado de André Magnelli
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