Por: Aldo Tavares*
Morrer é natural, mas morrer em condição aviltante não é. Se o primeiro caso nos submete à resignação, o segundo nos afronta. A morte natural, sabemos, pertence à ordem do Criador, mas aquela que nos humilha, aquela que nos desdenha, pertence a homens públicos que arrancaram, com sua absurda violência de lucro, o sentido mais digno da pessoa humana. A matança em Brumadinho, Minas Gerais, nos assombra. Os assassinos não merecem perdão.
Para essa mortandade, mãos não executaram inocentes com fuzis; elas apenas se recusaram em 9 de julho de 2018 a assinar embaixo um parecer do deputado João Vítor Xavier (PSDB) a respeito do licenciamento ambiental e da fiscalização de barragens no Estado. Esse mesmo deputado profetizara em 5 de julho de 2018: “Não estou dizendo que poderemos ter novas rupturas. Por tudo que vi, não tenho dúvidas de que teremos rupturas”.
Formulado com Ministério Público, Ibama, ONG, moradores da região e apoiado por mais de 50 mil assinaturas do projeto popular Mar de Lama Nunca Mais, o parecer era um substitutivo ao projeto de lei 3.676/16, cuja proposta previa regras mais rígidas para a criação de novas barragens e endurecimento da fiscalização sobre as já existentes. Uma das mãos, entretanto, que rejeitou o parecer foi a do deputado estadual Thiago Costa (MDB), que declarou o seguinte na Comissão de Minas e Energia da Assembleia Legislativa de Minas Gerais: “A aprovação tornaria inviável a atividade de mineração”. O que esse senhor de terno e gravata não disse foi que, uma vez desaprovado o parecer, a morte de muitos se tornaria viável sob rejeito de lama. O nobre deputado, por causa de seus “bons” serviços prestados à mineradora, recebeu, segundo a acusação, a quantia de R$ 113.275,72. Duas outras mãos também não assinaram: as de Tadeu Martins Leite (MDB) e de Gil Pereira (PP), também acusados de receberem grana da mineradora.
Quanto a esse alegado pacto homicida, sua face tem a natureza fria dos que transitam normalmente entre nós como amorais e, porque amorais, são estranhos à vida do outro quando tramam o cálculo mais frio de seus acordos sujos. Assustamo-nos facilmente com fuzis nas mãos de marginais, ainda mais quando são pretas e faveladas. Mas o que dizer de mãos que assassinam sem assinar seus nomes? Que cheiro exala dessas outras mãos que molham mãos para matar com feroz negligência? Em hotéis de luxo e em gabinetes políticos, tratantes, sob ternos e gravatas, fedem à morte e cavam dores em familiares, sepultando seus entes tão queridos à condição de lama. Perante tamanho espanto que sentimos diante das imagens de Brumadinho, o absurdo nos paralisa; a palavra perde a força de dizer. Atônitos, ficamos mudos. Arrancaram de nós o ar. Chora-se. O miserável acordo entre miseráveis impôs o dissabor da morte – é quando a palavra atinge o ápice de sua inutilidade, pois se tornou oca, ausente de sentido, visto que ela não apreende o que os olhos, tão espantados, veem aturdidos: corpos e mais corpos sob lama. Imagens devastadoras. Vale, agora: imensa cova.
Pode haver justiça ainda? A pergunta não se refere ao Poder Judiciário, ao Supremo, visto que só podem agir após o crime cometido contra a vida; a justiça a que me refiro, porém, age para evitar, bem antes, pactos malditos contra a sociedade, ainda que onde possa ocorrer essa justiça seja o mesmo lugar onde injustiças ocorrem, qual seja, ele: o espaço institucionalizado da política, no caso de Brumadinho, a Assembleia Legislativa de Minas Gerais, onde dois deputados, eleitos pelo voto do contribuinte, votaram na Comissão de Minas e Energia contra vidas que estavam no caminho dos rejeitos de minério. O eleitor brumadinhense sentiu no voto alienado o quanto a urna eletrônica se equivale à urna funerária. A má política mata e, no caso de Brumadinho, cometeu carnificina.
Já passou da hora de a política brasileira ser justa; e, para tanto, a estrutura estruturada da democracia não pode se manter a mesma. Sobre reforma política, entretanto, o governo de Jair Bolsonaro não diz para eu veio. Assim sendo, eleitores de Brumadinho devem lutar por uma Assembleia Legislativa que represente políticas públicas justas, realizando, por exemplo, eventos artísticos e culturais contra deputados que receberam dinheiro de mineradoras para beijar mãos de empresários. Se certos deputados são verdadeiros rejeitos morais, eles precisam ser rejeitados pelo voto responsável da democracia.
Tais homens públicos atentaram contra os direitos humanos; violaram o artigo 22, o da Proteção Social, ou seja, a chacina de Brumadinho diz respeito também à ministra Damares Alves, representante de um governo que, na pessoa do presidente, portou-se de forma protocolar diante de mortes tão aviltadas pela “força da grana que ergue e destrói coisas belas” de Brumadinho.
* É livre-pesquisador do Ateliê de Humanidades e professor de Filosofia
Imagem de autoria dos Gemeos (@osgemeos)
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