Direito Coletivo à Vida,
Convivialismo e Nova Justiça Social:
o Caso do Movimento Indígena Boliviano
Paulo Henrique Martins
Para explorar o interesse atual sobre novos direitos coletivos e comunitários que surgem dos embates envolvendo atores da sociedade civil ou de comunidades tradicionais e que questionam o sistema de direito privado que rege a vida social nas sociedades ocidentalizadas, sugerimos se entender o caso da Bolívia, que aponta para inovações institucionais e juridicas originais fundadas nas prioridades dadas ao pluralismo político e aos direitos coletivos. O caso boliviano nos ajuda a refletir sobre os limites do direito privado capitalista em reger a atual complexidade das sociedades globais. Este caso é importante por refletir a emergência de um novo sistema de direito baseado prioritariamente na justiça social e no igualitarismo. Enfoca uma ampliação do entendimento do humano a partir da valorização do tema da natureza e e dos bens comuns, sugerindo novas alternativas da vida coletiva a partir dos ideais da Boa Vida (Bien Vivir).
Enfim, esta caso amplia o entendimento das novas formulações epistemológicas que surgiram recentemente no campo das Ciências Sociais e dos Movimentos Sociais como aquelas do Bien Vivir (Stefanoni, 2012) na América Latina e do Convivialismo, na Europa (Manifeste Convivialiste, 2013). Ambas heterotopias apontam para uma crítica intelectual e prática importante das atuais representações da vida em sociedade, propondo superar os entendimentos individualistas da vida social contemporânea por outros mais solidários e inclusivos1.
Desafios de transformar a vida camponesa colonial em um movimento original étnico e social
Na Bolívia, entre 1980 e 1990 os atores sociais ampliaram a identificação de classe fornecida pela situação econômica campesina para formar novos movimentos sociais organizados a partir da valorização da identidade étnica e comunitária. Manifestações tais como “Dignidade, Território e Vida” (uma marcha de 600 Km em direção à capital La Paz), nos anos 90, questionaram seriamente a ideia de Estado-Nação como projeto político e cultural voltado para uniformizar a sociedade nacional, ressaltando a diversidade étnica e social. Nas últimas décadas, paulatinamente, as organizações indígenas manobraram politicamente para integrar suas presenças na administração do Estado e as novas autoridades locais, sobretudo da etnia Aymara, impuseram as relações inter-étnicas como uma condição objetiva do sistema político boliviano. [Guimarães, 2011, p.337]. Estas mudanças no sistema de poder deram origem a importantes direitos coletivos. (Derechos Colectivos), fundados, em primeiro lugar, nas práticas da participação democrática nos planos locais e distritais. Testemunhas lembram que as ações adotadas pelo Estado para conter estas pressões tiveram consequências inesperadas, ajudando os avanços do projeto de auto-representação política das comunidades indígenas na organização do sistema de poder boliviano.
A consciência pós-colonial boliviana progressivamente tomou a forma de um movimento social e intelectual dirigido a novos direitos coletivos que legitimam as reformas do Estado e da Nação (Rivera, 2010 e 2011). Estas novas reivindicações diferem dos direitos de cidadania tradicionais na medida em que a ideia de propriedade coletiva e comunitária passou a ter mais valor do que a propriedade privada. O Estado foi então obrigado a considerar, progressivamente, tanto os direitos indígenas quanto o programa de multiculturalismo nacional. A refundação do Estado Nacional como Estado Plurinacional, sob pressão das lutas indígenas por autonomia e diferenciação, resultou na ruptura do poder oligárquico tradicional. Este fato é uma novidade quando consideramos que as lutas contra os sistemas nacionais coloniais falharam em diversos países antes da Bolívia na medida em que os movimentos sociais não perceberam claramente o papel dos direitos coletivos em uma nova ordem democrática.
A dualidade entre público e privado foi substituída por um sistema legal que favorece os direitos coletivos e a participação nas decisões políticas, particularmente o direito à vida, que inspira outros direitos tais como: reconhecimento étnico, cidadania republicana, autogerenciamento. Isso ajudou a fortalecer a participação em alguns níveis de tomada de decisão no poder político. Direitos privados não foram proibidos, mas reformulados para se adequar ao novo regime jurídico pluralista e coletivista. As mudanças no imaginário político boliviano não representam um evento isolado, expressando, ao contrário, uma importante revisão institucional do sistema pos-colonial construído pela ocidentalização do mundo. Bolivia é um exemplo a ser pensado entre muitas outras reações que ocorrem em diferentes sociedades, cada uma com sua particularidade histórica e política. Desta forma, é possível afirmar que as razões para estas mudanças no imaginario indigena estão ancoradas em argumentos teóricos e práticos, morais, ecológicos, economicos e políticos que são particulares mas que apresentam alcance histórico bem mais amplo e que deve ser objeto das críticas convivialistas.
Pachamama e a contribuição do movimento indígena para ampliar a compreensão ecológica dos sistemas de direito
Pacha Mama (Pacha: Terra; Mama: mãe ou Mãe-Terra) convida-nos a pensar o pós-colonialismo através de duas abordagens: uma é simbólica; a outra é político. A abordagem simbólica surgiu a partir de uma releitura da relação ontológica entre Homem e Natureza que beneficia a interatividade ritual entre os dois elementos. Mas, aqui, a representação arcaica e mítica da natureza foi substituída por uma nova representação pós-moderna que enfatiza o papel da cultura na redefinição de uma epistemologia plural, que alguns autores preferem chamar de Epistemologia do Sul (Santos, Meneses, 2009). Além disso, a representação contemporânea indígena da Vida resultante da ampliação do conceito do Humano manifesta uma importante reflexão ecológica que deve ser seriamente considerada pelas ciências sociais para organizar a crítica moral e cultural do capitalismo. Neste sentido, há grandes afinidades entre a crítica boliviana e aquela que emerge, por exemplo, no Manifesto Convivialista que chama a atenção sobre as perspectivas catastróficas do capitalismo sugerindo novas medidas econômicas e sociais adequadas para um novo acordo convivialista (Manifeste Convivialiste, op. Cit., p.77)
Esta abordagem ameríndia é distante da representação cartesiana da sociedade fundada sobre a separação ontológica entre o Ser Humano e a Natureza. A abordagem simbólica Pacha Mama leva-nos a repensar a Natureza não apenas como um elemento físico, mas como um simbolismo carregado de um sentido pluralista cuja ritualização é fundamental para garantir a sobrevivência cultural e política da comunidade, o que vem sendo observado por certos autores (Cohen, 1985). Aqui, nós também podemos definir a Natureza como condição prática e necessária para garantir as alianças entre famílias e indivíduos na medida em que fortalece a consciência do lugar na produção da vida social. A utopia Pacha Mama é diferente deste chamado “Bem Viver”, que marca o estilo ocidental de consumo e apropriação privada da riqueza. Em vez disso, Pacha Mama enfoca uma visão legitimadora de um bem coletivo e não como uma crença abstrata, mas como um propósito político fundado sobre uma experiência comunitária anti-utilitarista que nega a redução da sociedade a interesses do mercado [Farah, Gil, 2012, p. 105].
A experiência da colonização ensinou a comunidade indígena sobre os efeitos destrutivos da propriedade privada dos recursos naturais e deve ser considerada como um aspecto importante para a crítica anticapitalista. A compreensão ecológica da Natureza apontada pelo movimento do Altiplano Andino atualiza também um outro fator importante na revisão dos fundamentos epistemológicos das ciências sociais em consonância com a abordagem convivialista, a saber, a importância da noção de Dádiva, um antigo sistema de troca humana, observado por Marcel Mauss, nas sociedades antigas (Mauss, 1999). A teoria da Dádiva contribui para entender as relações interativas que se desenrolam entre as comunidades humanas e o o seu sistema ecológico, despertando uma particular consciência ambiental sobre os cuidados com a as aguas, com as terras férteis, com os animais. Por isso, mesmo, Mauss, um inspirador relevante das teses convivialistas é igualmente uma referência para a crítica pós-colonial que emerge na reação dos indígenas bolivianos (Martins, 2014).
O imaginário Pacha Mama não repousa somente em um mito voltado para o cultivo da tradição. Trata-se de fundalmentalmente de uma reação alter-sistémica e de uma inovação conceitual e histórica de grande atualidade e que ocorre nas fronteiras do Sistema-Mundo. Este mito revela grande propriedade conceitual e prática na medida em qeu se busca questionar a partir da relação entre riqueza material e simbólica, os fundamentos da sociedade de consumo materialista. Nesta perspectiva, há uma afinidade evidente entre a heterotopia Aymara e aquela anti-utilitarista, sobretudo presente nas Ciências Sociais, na França, que enfatiza a solidariedade e o convivialismo [Caillé et al., 2011].
Pacha Mama tem também relevância política quando entendemos que o questionamento do direito privado capitalista não se limita às formalidades do sistema jurídico republicano, questionando os modos de apropriação privada de recursos vitais como a água, a terra, os alimentos e outros. Na verdade, os movimentos étnicos bolivianos consideram que os recursos naturais estavam lá antes da presença humana, antes de indígenas e colonizadores, antes de corporações econômicas, e, portanto, esses recursos devem ser considerados como fundamento não manipulável da sobrevivência coletiva material e espiritual. Podemos dizer que o velho mito pré-colombiano foi atualizado pela colonialidade para ressignificar a política e a cultura.
Pacha Mama é uma metáfora que possui, logo, muitos significados: é a memória viva das tradições indígenas; é o simbolismo que dá sentido ao movimento coletivo; é o argumento contra a apropriação privada dos recursos coletivos; finalmente, é a maneira que politicamente diferencia movimentos étnicos de outros movimentos sociais, quando o debate gira em torno da reforma do Estado Nacional. Esta imagem ajuda a esclarecer o papel dos movimentos étnicos na disputa que transformou o Estado boliviano de um aparelho centralizado em um Estado Plurinacional que foi validado pela Constituição de 2009.
Alguns elementos para pensar uma outra modernidade para além dos limites do mercado
Tentamos mostrar que a experiência política da Bolívia não representa uma reação pré-moderna ou anti-moderna ao sistema capitalista pós-colonial. Em vez disso, esta experiência é moderna porque os movimentos étnicos não negam nem direitos republicanos que contemplam o tema da cidadania, nem o papel do Estado como agente de desenvolvimento nacional e social. A experiência boliviana é original porque revela movimentos sociais que nasceram a partir de uma renovação das tradições, abrindo-se a um pluralismo de identidades.
A novidade aqui vem de uma decisão política coletiva para sujeitar os direitos modernos – Liberal e Republicano – aos direitos humanos originários relacionados à vida e à sobrevivência da comunidade. Ou seja, a tarefa é revisar direitos modernos do ponto de vista oferecido pelo simbolismo da Natureza sugerido pelas tradições da comunidade que destacam uma maior compreensão dos direitos coletivos, como é ilustrado pela ideia de Bem Viver. Esta reflexão é mais significativa quando entendemos que por trás da pluralidade de direitos há um entendimento ecossocial e também uma inovação de direito público fundado no fortalecimento dos laços entre os seres humanos e a Natureza (Rivera, 2010 e 2011). Dar prioridade ao Direito à Vida é inovador quando consideramos o seguinte: a) que os Direitos Coletivos à Vida e sobre os recursos naturais necessário à sobrevivência humana são universais e devem ser compartilhados por todos; b) que os direitos capitalistas de acumulação e de crescimento econômico a partir da privatização dos recursos coletivos são direitos privados e historicamente situados como já o lembraram autores clássicos (Polanyi, 1983; Mauss, 1999) que não são universais e, portanto, são menos importante que os direitos coletivos quando consideramos o âmbito dos Direitos à Vida. Nesta perspectiva, os direitos capitalistas podem ser úteis para regular empresas e atividades de mercado, mas são limitados para reger a complexidade da vida social, em gereal.
Nesta perspectiva, é relevante lembrar que a economia de mercado não foi rejeitada pelos movimentos étnicos do Altiplano, mas ela é objeto de uma ampla discussão coletiva e por um novo sistema legal que sujeita a lógica privada a uma lógica comunitária e coletiva. Do mesmo modo, não se rejeita a riqueza material, mas a cultura do consumo privado deve ser considerada como parte dos costumes coletivos organizados pelas leis comunitárias. No Caso da Bolívia é muito interessante refletir sobre o elemento econômico dentro do conjunto de instituições não-econômicas, quando consideramos que a Bolívia é um país pobre, consideravelmente dependente da produção de gás para garantir a maioria de suas políticas públicas e sociais. Contudo, para os bolivianos, a importância econômica do gás não justifica a prioridade dada aos direitos de apropriação privada sobre os recursos coletivos e o privilégio desfrutado por corporações econômicas. Para aqueles movimentos sociais, o mais importante é garantir os Direitos Coletivos à Vida e preservar as condições materiais e simbólicas da vida social. A indústria do gás é vista como uma prioridade para fortalecer direitos coletivos, mas isso não significa que as empresas nacionais e internacionais podem existir fora do controlo do Estado e, mais importante, do controle social.
A experiência da Bolívia ajuda a compreensão de que a ocidentalização do mundo tornou-se um projeto caótico, principalmente quando grandes corporações econômicas tentam impor um sistema de apropriação do mercado como um sistema universal de direitos que poderiam ser aplicados a todas as instituições e esferas da vida cotidiana. Além disso, o caso da Bolívia favorece o entendimento de que a solução para a crise requer, necessariamente, a mediação política com base em um novo sistema legal capaz de reorganizar os direitos individuais, levando em conta os direitos coletivos, especialmente os direitos da comunidade. Desta forma, o Estado teve de ser redesenhado, o que foi formalizado pela nova constituição do Estado Plurinacional, para desempenhar um papel mais complexo na regulação das diferenças étnicas e culturais e das pressões sociais, integrando as lutas sociais como um ritual importante na organização da política.
Finalmente, é de se ressaltar não haver garantias que a experiência boliviana do Bien Vivir se reproduza e se aprofunde num continente tão marcado pela força de oligarquias que se sustentam em amplas alianças nacionais e internacionais. Mas ninguém pode negar que temos aqui uma experiência coletiva inédita que vem repercutindo em outros paises e continentes, contribuindo para a ampliação dos movimentos solidaristas como o do convivialismo.
Nota
1 Definimos estes ideários como heterotopias na medida em que rompem com utopias tradicionais definidas pelas ideologias do progresso econômico para liberar outros conhecimentos mais ecológicos, outros valores mais justos e outras práticas coletivas mais solidárias (Martins, 2011).
Referências
Caillé A., Humbert M., Latouche S., Viveret P., 2011, De la convivialité : dialogue sur la société conviviale à venir, La Découverte,Paris.
COHEN, A.P., 1985, The symbolic construction of community. London/New York: Routledge
Farah I., Gil M., 2012, Modernidades alternativas : una discusión desde Bolívia, in Martins P. H. et Rodrigues C. (dir.), Fronteiras abertas da América Latina, Editora da UFPE, Recife.
Guimarães A., 2011, “Pluralismo, cohésion social y ciudadanía en la modernidad: uma réflexion desde la realidad boliviana”, in Wanderley F. (dir.), El desarrollo en cuestión. Reflexiones desde América Latina, CIDES-OXFAM, La Paz.
Manifeste convivialiste. Déclaration d’interdépendance, 2013, Le Bord de l’eau, Lormont.
MARTINS, P.H., 2011, La decolonialidad de América Latina y la heterotopía de una comunidad de destino solidaria. Buenos Aires: Editora CICCUS/ Estudios Sociológicos Editora.
______________, 2014, O Ensaio sobre o Dom de Marcel Mauss: um texto pioneiro da crítica decolonial In Sociologias, vol. 16, ISSN impresso: 1517-4522.
MAUSS, M.,1999, Sociologie et anthropologie. 8a. Edição, Paris: PUF.
POLANYI, K., 1983, La grande transformation. Aux origines politiques et économiques de notre temps. Paris: Gallimard.
Rivera J. L. L., 2010, “El paso de la autonomía de hecho a la autonomía de derecho. Reflexiones desde el caso boliviano”, in Uzeda A. (dir.), Cultura y sociedad en Bolivia,CISO-FACSO-UMSS, Cochabamba.
Rivero M. R., 2011, “El pluralismo jurídico em Bolívia : derecho indígena e interlegalidades”, in Wanderley F. (dir.), op. cit.
SANTOS B e MENESES, M, 2009, Epistemologias do sul. Coimbra: Editora Almeidina.
Stefanoni P., 2012, “Y quién no querría ‘vivir bien’?”, Critique et emancipación: revista latinoamericana de ciencias sociales, Ano IV, n° 7, (ISSN 1999-8104).
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