Tonalidades de um silêncio
Olivia von der Weid
Meus olhos percorrem pela primeira vez as letras de tinta impressa em papel do Manifesto Convivialista. Olhos que enxergam e que, por isso, veem palavras que ali ecoam ideias, práticas e sentimentos que falam de um outro mundo possível. Um outro mundo que abarque diferentes correntes de pensamento e de ação. Palavras que agregam e, com isso, ganham força para se opor aos distúrbios do mundo.
A impressão que se constrói é de entusiasmo, reconhecimento e esperança ao ler essas palavras. Mas ainda assim, ao final da leitura, a sensação de uma ausência retumba. Minha intensão é comentar a força e as tonalidades dessa ausência. Ao espreitar o silêncio e transmitir suas reverberações – destrinchando três dos possíveis motivos imaginados para ele – não se pretende calar vozes mas, ao contrário, multiplicá-las.
O silêncio incomoda e faz voltar ao texto, buscando seus rastros nas entrelinhas – a invisibilidade de corpos marcados pela diferença. Não as diferenças de cor ou traços étnicos, não a diferença sexual, que ali vislumbram superações em um universalismo plural. Falo das pessoas com deficiência. Uma classificação que por si só reúne uma série de situações absolutamente diversas que, em comum, tem apenas o fato de terem sido consideradas, por séculos de história, anormais. Alguém a quem falta ou sobra algo, menos ou mais que humano.
Como lembra Silva (2014), aquilo que é deixado de fora é sempre parte da definição e da constituição do dentro. A definição daquilo que é considerado aceitável, desejável, natural é inteiramente dependente da definição daquilo que é considerado abjeto, rejeitável, antinatural. Pensar sobre a deficiência, tentar incluí-la no convivialismo, implica colocar questões que desafiam uma cadeia hegemônica de signos sobre a qual se constrói as bases do comum. Conduzo minha reflexão crítica ao manifesto à luz de uma ausência, a de pessoas com deficiência, desenvolvendo um pouco mais três possíveis razões para ela:
- A deficiência questiona as bases do indivíduo moderno – autônomo, independente e útil – bases que fundamentam nossa ideia de comum.
- Os números globais da deficiência, suas causas e sua distribuição planetária, explicitam uma desigualdade geopolítica, social e econômica.
- A deficiência coloca em cena um corpo que não é desnaturalizável, é uma experiência – e um conceito – que está entre natureza e cultura, biologia e sociedade.
Começo com perguntas. Quais são as bases do comum no convivialismo? Qual é a corporeidade comum? Supõe-se que são comuns aqueles que se constituem – e são constituídos – como sujeitos autônomos, livres e iguais?
Law (1999) aponta que, independente das narrativas e modelos constitucionais, muitas – talvez a maioria – das pessoas com deficiência são substancialmente privadas de seus direitos nas democracias liberais. A principal razão é que há uma suposição de homogeneidade das características de uma pessoa competente nessas constituições. Parte-se do princípio de que uma pessoa capaz é ou deve ser: centrada; cognitivamente (textual e verbalmente) orientada; autônoma em relação ao ambiente que a circunda; e que as oportunidades disponíveis para ela sejam amplamente equivalentes as que estão disponíveis para qualquer outra pessoa. Se alguém corresponde ou pode ser preparado para corresponder a essas circunstâncias, se torna competente. Senão, falha.
O manifesto convivialista fala da “obrigação imperiosa de fazer o desemprego desaparecer e oferecer a todos uma função e um papel reconhecidos entre as atividades úteis à sociedade” (página 80). A deficiência, na figura daqueles que têm restrições intelectuais ou motoras graves, coloca em questão o ideal de sujeito produtivo das sociedades ocidentais. As teóricas feministas dos estudos sobre deficiência trazem à tona o corpo com lesões e os casos de impossibilidade de controle total do corpo. Kittay (1999) aponta que, nas sociedades ocidentais, somos escravos do mito do sujeito independente e desincorporado – que não nasceu, não fica doente, não é deficiente e nunca envelhece. Seria este sujeito independente e desincorporado que representaria o sujeito ético e o sujeito político ou cidadão. O fato da dependência humana continua não tratado ou sendo evitado nos discursos que tratam de questões éticas, sociais e políticas. A deficiência nos impele a um resgate da ética do cuidado, uma ética que enfatiza o caráter relacional da vida humana, a natureza relacional das concepções de si e a inevitável dependência e interdependência humanas. Ao invés do sujeito autônomo, independente e útil, a deficiência propõe a ideia de igualdade pela interdependênciacomo um princípio mais adequado à reflexão sobre questões de justiça.
O segundo ponto questiona as possibilidade de pertencimento daqueles que, para conviver ou mesmo para rivalizar, precisam de condições mínimas que não são oferecidas a eles desde o princípio. E o pronome “eles” de que falamos aqui não é do tipo que os unifica em torno de uma cultura, de valores, de um território ou de uma doutrina comuns. Ainda assim, estão nas margens da exclusão. Relatórios recentes da ONU1 apontam que a deficiência está diretamente relacionada a questões de pobreza, saúde pública e vulnerabilidade. Cerca de 15% da população mundial, uma estimativa de 1 bilhão de pessoas, vive com alguma deficiência2. São a maior minoria do mundo.
Entretanto, essa não é uma questão que afeta o planeta de forma igualitária. O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) indica que 80% das pessoas com deficiência estão em países em desenvolvimento. Segundo dados do Banco Mundial, 20% das pessoas mais pobres do mundo têm algum tipo de deficiência. A UNICEF mostra que cerca de 30% dos meninos ou meninas de rua têm algum tipo de deficiência e a UNESCO aponta que, nos países em desenvolvimento, 90% das crianças com deficiência não frequentam a escola. Os dados em relação à cegueira reforçam essa tendência. No começo dos anos 1990 foi estimado que, globalmente, cerca de 80% das deficiências visuais poderiam ter sido prevenidas ou tratadas. Hoje em dia, a cada cinco segundos uma pessoa fica cega no mundo e uma criança perde a visão a cada minuto. Das crianças que ficam cegas, 60% morrem durante o ano seguinte à perda da visão. Mais de 90% das crianças cegas não recebe educação e a grande maioria não terá a possibilidade de desenvolver todo o seu potencial.
Como lembra Martins (2005), além da incidência da deficiência refletir as injustiças sociais que marcam a distribuição da riqueza no mundo, há ainda uma sobre representação das pessoas com deficiência entre os mais pobres dos pobres em diferentes sociedades. As análises sociais tem uma célebre vocação para questões que dizem respeito à desigualdade e vêm desconstruindo o lugar que os corpos e suas diferenças ocuparam nos discursos legitimadores das relações de opressão. Fala-se na desconstrução de argumentos biologizantes na questão da diferença racial ou étnica, na diferença sexual ou de gênero, mas silencia-se sobre a deficiência.
Uma das questões cruciais que a deficiência coloca é que não há como lidar com a diferença se “livrando” do corpo, atribuindo à marcação da diferença como resultado de uma relação de desigualdade social. É claro que a desigualdade e a exclusão são fundamentalmente discursivas e sociais, mas a questão é que, na deficiência, o corpo não pode ser abandonado. Outros movimentos por direitos sociais que também problematizam a noção de diferença, como o movimento feminista, o movimento negro ou o movimento pelos direitos sexuais, por exemplo, não têm que lidar com o problema objetivo de não conseguir andar, não conseguir ver, não conseguir fazer um movimento ou não conseguir ler em tinta. Essa diferença fundamental – biológica – precisa ser considerada para iniciar o debate de uma possível transformação no quadro dramático de exclusão social de pessoas com deficiência e dar um primeiro passo rumo a uma possível igualdade de oportunidades.
Não é que a desnaturalização do biológico seria mais resistente no caso das deficiências, talvez ele não seja desnaturalizável. É preciso trazer o corpo de volta. Isso não significa dizer que é a lesão física que os inferioriza, que o seu corpo é que os exclui, tornando-os incapazes e, portanto, devem ser tutelados. Não é um retorno ao modelo médico da deficiência. Significa considerar que as suas diferenças físicas, o seu corpo, demandam modelos diferenciados – de transporte, arquitetônicos, comunicativos, educacionais, de saúde, de interação, culturais – para que tenham acesso as mesmas oportunidades.
O convivialismo parte de um princípio de comum humanidade: “acima das diferenças de cor de pele, de nacionalidade, de idioma, de cultura, de religião ou de riqueza, de sexo ou de orientação sexual, há somente uma humanidade, que deve ser respeitada na pessoa de cada um de seus membros” (página 54). Esse é um dos trechos em que o silêncio ecoa. Primeiro porque a diferença da deficiência não está contemplada nessa lista, ela desliza entre as outras. Segundo porque a ideia de uma igualdade que esteja “acima das diferenças” por si só já exclui a deficiência do texto e do pensamento de “comum humanidade”. O terceiro ponto de reflexão é, portanto, a questão de como construir a comunidade e a convivência entre corpos e pessoas que são efetivamente diferentes – e não acima deles. Corpos deficientes são corpos que precisam que suas diferenças sejam reconhecidas, que elas efetivamente contem, para que o comum possa ser almejado. São diferenças corporais que não se pode passar por cima. É justamente ao se passar por cima delas que se institui a desigualdade de acesso, a marginalização e a exclusão.
Trazer o corpo de volta sem transformá-lo na evidência autoexplicativa da exclusão e da desigualdade. Para Martins (2005), é exatamente porque os corpos das pessoas com deficiência são tomados como justificativa suficiente para a sua situação de marginalidade social – entendida como fatal – que a problemática vem se mostrando particularmente fugaz à crítica e à mobilização social.
Os três pontos levantados, em conjunto, remetem à reflexão de Spivak (2010) sobre a capacidade de agência dos sujeitos e suas possibilidades de autonomia. Ainda que tenham se desenvolvido movimentos que lutam fortemente pelo reconhecimento dos direitos sociais de pessoas com deficiência ao redor do mundo, a heterogeneidade é a marca desses movimentos e a marca da diferença da deficiência. Reúne-se numa categoria pessoas que, mesmo que compartilhem uma situação histórico-política, não têm um sentimento de comunidade. Soma-se a isso a dificuldade de efetivamente se apropriarem das condições materiais de existência, especialmente nos países do chamado “terceiro mundo” ou “emergentes” – como fica claro no segundo ponto que apresentamos. A manutenção do termo deficiência, mesmo na sua concepção social, pode ser entendida como um “essencialismo político estratégico” (Spivak, 2010), já que a identificação de pessoas com esse conceito é sempre provisória, limitada e ambígua. Não se pode esquecer das diferenciações internas entre as próprias pessoas com deficiência. Diferentes lesões têm implicações diversas para a saúde e a capacidade individual e também geram respostas diferentes de um meio social e cultural mais amplo. A articulação dessas questões expõe a dificuldade do agenciamento individual e coletivo de pessoas com deficiência e uma descontinuidade entre a consciência de sua condição de opressão e subalternidade e a transformação social dessa realidade.
Todas essas ausências denotam uma ausência ainda maior, que deixo aqui como abertura para uma reflexão posterior. Não são apenas os corpos não estandardizados de pessoas com deficiência que ficam fora da maior parte dos produtos e padrões produzidos, construídos e consumidos, mas suas epistemologias, suas formas de conhecer e compreender o mundo, também desaparecem nessa massificação. Como lembra Spivak, o perigo desses esquecimentos é reforçar a subordinação e o silêncio dos subalternos.
Referências:
KITTAY, E. Love’s Labor. Essays on Women, Equality, and Dependency. New York: Routledge, 1999.
LAW, J. Political Philosophy and Disabled Specificities. Centre for Science Studies. Lancaster University, 1999b, p.1-17.
MARTINS, B. Políticas sociais na deficiência: Exclusões perpetuadas. 2005. Disponível em: http://www.ces.uc.pt/publicacoes/oficina/228/228.pdf. Acesso em: 14 set. 2014.
SILVA, T. T. A produção social da identidade e da diferença. In: SILVA, T. T. (org.). Identidade e Diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes, 2014, p.73-102.
SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
Tonalidades de um silêncio
Olivia von der Weid
Meus olhos percorrem pela primeira vez as letras de tinta impressa em papel do Manifesto Convivialista. Olhos que enxergam e que, por isso, veem palavras que ali ecoam ideias, práticas e sentimentos que falam de um outro mundo possível. Um outro mundo que abarque diferentes correntes de pensamento e de ação. Palavras que agregam e, com isso, ganham força para se opor aos distúrbios do mundo.
A impressão que se constrói é de entusiasmo, reconhecimento e esperança ao ler essas palavras. Mas ainda assim, ao final da leitura, a sensação de uma ausência retumba. Minha intensão é comentar a força e as tonalidades dessa ausência. Ao espreitar o silêncio e transmitir suas reverberações – destrinchando três dos possíveis motivos imaginados para ele – não se pretende calar vozes mas, ao contrário, multiplicá-las.
O silêncio incomoda e faz voltar ao texto, buscando seus rastros nas entrelinhas – a invisibilidade de corpos marcados pela diferença. Não as diferenças de cor ou traços étnicos, não a diferença sexual, que ali vislumbram superações em um universalismo plural. Falo das pessoas com deficiência. Uma classificação que por si só reúne uma série de situações absolutamente diversas que, em comum, tem apenas o fato de terem sido consideradas, por séculos de história, anormais. Alguém a quem falta ou sobra algo, menos ou mais que humano.
Como lembra Silva (2014), aquilo que é deixado de fora é sempre parte da definição e da constituição do dentro. A definição daquilo que é considerado aceitável, desejável, natural é inteiramente dependente da definição daquilo que é considerado abjeto, rejeitável, antinatural. Pensar sobre a deficiência, tentar incluí-la no convivialismo, implica colocar questões que desafiam uma cadeia hegemônica de signos sobre a qual se constrói as bases do comum. Conduzo minha reflexão crítica ao manifesto à luz de uma ausência, a de pessoas com deficiência, desenvolvendo um pouco mais três possíveis razões para ela:
- A deficiência questiona as bases do indivíduo moderno – autônomo, independente e útil – bases que fundamentam nossa ideia de comum.
- Os números globais da deficiência, suas causas e sua distribuição planetária, explicitam uma desigualdade geopolítica, social e econômica.
- A deficiência coloca em cena um corpo que não é desnaturalizável, é uma experiência – e um conceito – que está entre natureza e cultura, biologia e sociedade.
Começo com perguntas. Quais são as bases do comum no convivialismo? Qual é a corporeidade comum? Supõe-se que são comuns aqueles que se constituem – e são constituídos – como sujeitos autônomos, livres e iguais?
Law (1999) aponta que, independente das narrativas e modelos constitucionais, muitas – talvez a maioria – das pessoas com deficiência são substancialmente privadas de seus direitos nas democracias liberais. A principal razão é que há uma suposição de homogeneidade das características de uma pessoa competente nessas constituições. Parte-se do princípio de que uma pessoa capaz é ou deve ser: centrada; cognitivamente (textual e verbalmente) orientada; autônoma em relação ao ambiente que a circunda; e que as oportunidades disponíveis para ela sejam amplamente equivalentes as que estão disponíveis para qualquer outra pessoa. Se alguém corresponde ou pode ser preparado para corresponder a essas circunstâncias, se torna competente. Senão, falha.
O manifesto convivialista fala da “obrigação imperiosa de fazer o desemprego desaparecer e oferecer a todos uma função e um papel reconhecidos entre as atividades úteis à sociedade” (página 80). A deficiência, na figura daqueles que têm restrições intelectuais ou motoras graves, coloca em questão o ideal de sujeito produtivo das sociedades ocidentais. As teóricas feministas dos estudos sobre deficiência trazem à tona o corpo com lesões e os casos de impossibilidade de controle total do corpo. Kittay (1999) aponta que, nas sociedades ocidentais, somos escravos do mito do sujeito independente e desincorporado – que não nasceu, não fica doente, não é deficiente e nunca envelhece. Seria este sujeito independente e desincorporado que representaria o sujeito ético e o sujeito político ou cidadão. O fato da dependência humana continua não tratado ou sendo evitado nos discursos que tratam de questões éticas, sociais e políticas. A deficiência nos impele a um resgate da ética do cuidado, uma ética que enfatiza o caráter relacional da vida humana, a natureza relacional das concepções de si e a inevitável dependência e interdependência humanas. Ao invés do sujeito autônomo, independente e útil, a deficiência propõe a ideia de igualdade pela interdependênciacomo um princípio mais adequado à reflexão sobre questões de justiça.
O segundo ponto questiona as possibilidade de pertencimento daqueles que, para conviver ou mesmo para rivalizar, precisam de condições mínimas que não são oferecidas a eles desde o princípio. E o pronome “eles” de que falamos aqui não é do tipo que os unifica em torno de uma cultura, de valores, de um território ou de uma doutrina comuns. Ainda assim, estão nas margens da exclusão. Relatórios recentes da ONU1 apontam que a deficiência está diretamente relacionada a questões de pobreza, saúde pública e vulnerabilidade. Cerca de 15% da população mundial, uma estimativa de 1 bilhão de pessoas, vive com alguma deficiência2. São a maior minoria do mundo.
Entretanto, essa não é uma questão que afeta o planeta de forma igualitária. O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) indica que 80% das pessoas com deficiência estão em países em desenvolvimento. Segundo dados do Banco Mundial, 20% das pessoas mais pobres do mundo têm algum tipo de deficiência. A UNICEF mostra que cerca de 30% dos meninos ou meninas de rua têm algum tipo de deficiência e a UNESCO aponta que, nos países em desenvolvimento, 90% das crianças com deficiência não frequentam a escola. Os dados em relação à cegueira reforçam essa tendência. No começo dos anos 1990 foi estimado que, globalmente, cerca de 80% das deficiências visuais poderiam ter sido prevenidas ou tratadas. Hoje em dia, a cada cinco segundos uma pessoa fica cega no mundo e uma criança perde a visão a cada minuto. Das crianças que ficam cegas, 60% morrem durante o ano seguinte à perda da visão. Mais de 90% das crianças cegas não recebe educação e a grande maioria não terá a possibilidade de desenvolver todo o seu potencial.
Como lembra Martins (2005), além da incidência da deficiência refletir as injustiças sociais que marcam a distribuição da riqueza no mundo, há ainda uma sobre representação das pessoas com deficiência entre os mais pobres dos pobres em diferentes sociedades. As análises sociais tem uma célebre vocação para questões que dizem respeito à desigualdade e vêm desconstruindo o lugar que os corpos e suas diferenças ocuparam nos discursos legitimadores das relações de opressão. Fala-se na desconstrução de argumentos biologizantes na questão da diferença racial ou étnica, na diferença sexual ou de gênero, mas silencia-se sobre a deficiência.
Uma das questões cruciais que a deficiência coloca é que não há como lidar com a diferença se “livrando” do corpo, atribuindo à marcação da diferença como resultado de uma relação de desigualdade social. É claro que a desigualdade e a exclusão são fundamentalmente discursivas e sociais, mas a questão é que, na deficiência, o corpo não pode ser abandonado. Outros movimentos por direitos sociais que também problematizam a noção de diferença, como o movimento feminista, o movimento negro ou o movimento pelos direitos sexuais, por exemplo, não têm que lidar com o problema objetivo de não conseguir andar, não conseguir ver, não conseguir fazer um movimento ou não conseguir ler em tinta. Essa diferença fundamental – biológica – precisa ser considerada para iniciar o debate de uma possível transformação no quadro dramático de exclusão social de pessoas com deficiência e dar um primeiro passo rumo a uma possível igualdade de oportunidades.
Não é que a desnaturalização do biológico seria mais resistente no caso das deficiências, talvez ele não seja desnaturalizável. É preciso trazer o corpo de volta. Isso não significa dizer que é a lesão física que os inferioriza, que o seu corpo é que os exclui, tornando-os incapazes e, portanto, devem ser tutelados. Não é um retorno ao modelo médico da deficiência. Significa considerar que as suas diferenças físicas, o seu corpo, demandam modelos diferenciados – de transporte, arquitetônicos, comunicativos, educacionais, de saúde, de interação, culturais – para que tenham acesso as mesmas oportunidades.
O convivialismo parte de um princípio de comum humanidade: “acima das diferenças de cor de pele, de nacionalidade, de idioma, de cultura, de religião ou de riqueza, de sexo ou de orientação sexual, há somente uma humanidade, que deve ser respeitada na pessoa de cada um de seus membros” (página 54). Esse é um dos trechos em que o silêncio ecoa. Primeiro porque a diferença da deficiência não está contemplada nessa lista, ela desliza entre as outras. Segundo porque a ideia de uma igualdade que esteja “acima das diferenças” por si só já exclui a deficiência do texto e do pensamento de “comum humanidade”. O terceiro ponto de reflexão é, portanto, a questão de como construir a comunidade e a convivência entre corpos e pessoas que são efetivamente diferentes – e não acima deles. Corpos deficientes são corpos que precisam que suas diferenças sejam reconhecidas, que elas efetivamente contem, para que o comum possa ser almejado. São diferenças corporais que não se pode passar por cima. É justamente ao se passar por cima delas que se institui a desigualdade de acesso, a marginalização e a exclusão.
Trazer o corpo de volta sem transformá-lo na evidência autoexplicativa da exclusão e da desigualdade. Para Martins (2005), é exatamente porque os corpos das pessoas com deficiência são tomados como justificativa suficiente para a sua situação de marginalidade social – entendida como fatal – que a problemática vem se mostrando particularmente fugaz à crítica e à mobilização social.
Os três pontos levantados, em conjunto, remetem à reflexão de Spivak (2010) sobre a capacidade de agência dos sujeitos e suas possibilidades de autonomia. Ainda que tenham se desenvolvido movimentos que lutam fortemente pelo reconhecimento dos direitos sociais de pessoas com deficiência ao redor do mundo, a heterogeneidade é a marca desses movimentos e a marca da diferença da deficiência. Reúne-se numa categoria pessoas que, mesmo que compartilhem uma situação histórico-política, não têm um sentimento de comunidade. Soma-se a isso a dificuldade de efetivamente se apropriarem das condições materiais de existência, especialmente nos países do chamado “terceiro mundo” ou “emergentes” – como fica claro no segundo ponto que apresentamos. A manutenção do termo deficiência, mesmo na sua concepção social, pode ser entendida como um “essencialismo político estratégico” (Spivak, 2010), já que a identificação de pessoas com esse conceito é sempre provisória, limitada e ambígua. Não se pode esquecer das diferenciações internas entre as próprias pessoas com deficiência. Diferentes lesões têm implicações diversas para a saúde e a capacidade individual e também geram respostas diferentes de um meio social e cultural mais amplo. A articulação dessas questões expõe a dificuldade do agenciamento individual e coletivo de pessoas com deficiência e uma descontinuidade entre a consciência de sua condição de opressão e subalternidade e a transformação social dessa realidade.
Todas essas ausências denotam uma ausência ainda maior, que deixo aqui como abertura para uma reflexão posterior. Não são apenas os corpos não estandardizados de pessoas com deficiência que ficam fora da maior parte dos produtos e padrões produzidos, construídos e consumidos, mas suas epistemologias, suas formas de conhecer e compreender o mundo, também desaparecem nessa massificação. Como lembra Spivak, o perigo desses esquecimentos é reforçar a subordinação e o silêncio dos subalternos.
Notas
1 Os dados podem ser encontrados em: http://www.onu.org.br/a-onu-em-acao/a-onu-e-as-pessoas-com-deficiencia/ e http://www.un.org/disabilities/default.asp?id=18. Acesso em 29.07.2014.
2 No Brasil, o ultimo censo de 2010 do IBGE reportou que 24% da população brasileira – ou 45,6 milhões de pessoas, vive com algum tipo de incapacidade intelectual ou para ver, ouvir e se locomover.
Referências:
KITTAY, E. Love’s Labor. Essays on Women, Equality, and Dependency. New York: Routledge, 1999.
LAW, J. Political Philosophy and Disabled Specificities. Centre for Science Studies. Lancaster University, 1999b, p.1-17.
MARTINS, B. Políticas sociais na deficiência: Exclusões perpetuadas. 2005. Disponível em: http://www.ces.uc.pt/publicacoes/oficina/228/228.pdf. Acesso em: 14 set. 2014.
SILVA, T. T. A produção social da identidade e da diferença. In: SILVA, T. T. (org.). Identidade e Diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes, 2014, p.73-102.
SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
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