Entre o Manifesto Convivialista e o Convivialismo Manifesto – por Sergio Costa

Entre o Manifesto Convivialista
e o Convivialismo Manifesto:
Um dia com Alain Caillé

Sergio Costa

Em fevereiro de 2014, numa daquelas manhãs de sol mas frio cortante, típicas do final de inverno berlinense, encontramos Alain Caillé pela primeira vez. Fomos buscá-lo no hotel situado no Spittlemarkt, praça da parte oriental da cidade, a qual, por coincidência consta como endereço comercial em algumas das cartas escritas por Sérgio Buarque de Holanda em seus anos de Berlim entre 1929 e 1930.

Um dia intenso de atividades e conversas nos esperava. O motivo principal de nosso convite a Alain Caillé era sua participação naquela mesma noite no ciclo de conferência sobre críticas contemporâneas ao capitalismo que organizamos Ina Kerner, excelente colega e amiga, professora de estudos de gênero e ciência política da Universidade Humboldt, e eu. O formato que combinava um seminário regular, no qual discutíamos os textos dos convidados, e conferências, teve uma repercussão surpreendente. Cerca de duzentos alunos da Humboldt Universität e da Freie Universität Berlin se inscreveram e participavam ativamente do curso previsto para não mais de 40 alunos.

Como Alain Caillé, generosamente, havia reservado boa parte do dia para estar conosco, antes da conferência da noite, o convidamos a conhecer iniciativas berlinenses que pudessem ser identificadas com os ideais do convivialismo. A escolha não foi fácil: há, na cidade, inúmeras cooperativas, centros culturais auto-geridos, teatros pós-migrantes e pós-feministas e mesmo um partido com representação no parlamento municipal, Os Piratas, cujo slogan principal de campanha foi “Teilen ist das neue Haben”, algo como: compartilhar é o novo jeito de ter.

Decidimo-nos por visitar dois projetos de natureza bastante distinta mas igualmente ilustrativos da aposta no convivialismo: o 100% Tempelhofer Feld e a UFA-Fabrik. 100% Tempelhofer Feld é o nome da organização civil que se constituiu para proteger a área de 360 ha localizada quase no centro de Berlim ocidental onde funcionou até 2008 o aeroporto de Tempelhof. O nome UFA-Fabrik, por sua vez, remete ao legendário estúdio de cinema fundado nos anos 1920 no sul de Berlim. Desde 1979, o terreno onde funcionou o estúdio abriga o Centro Cultural Internacional UFA-Fabrik, um empreendimento auto-gerido e auto-sustentado que congrega cerca de 30 moradores e mais duas centenas de pessoas ocupadas nas atividades ali desenvolvidas.

Chegamos ao campo de Tempelhof ainda cedo e fomos recebidos pelo assessor de imprensa da organização que percorreu conosco parte do terreno do antigo aeroporto, mostrando a importância de preservação integral da área por razões ecológicas, paisagísticas e, por assim dizer, conviviais. Pouco depois do fechamento do aeroporto, as pistas e as áreas contíguas se transformaram num vasto parque. As antigas áreas de pouso, decolagem e taxeamento são agora uma pista gigantesca de ciclismo, patinação e práticas de esportes a vela. Vê-se de tudo: skatistas pendurados em pipas enormes, carrinhos movidos a vela e construções mais sofisticadas sobre rodas, guindadas por estas pandorgas infláveis usadas no kite surf. Os gramados são o espaço do churrasco, do bate-bola improvisado ou simplesmente, nos (poucos!) dias de sol e verão, da praia verde, compartilhada, sem cerimônia, por famílias muçulmanas vestidas a caráter e jovens nus – ou quase.

Quando visitamos a iniciativa, 100% Tempelhofer Feld encontrava-se em plena campanha por uma causa que parecia inalcançável. Tentavam barrar, por meio de um referendo popular, o projeto do governo de Berlim de construir, às margens do terreno do aeroporto, prédios de apartamentos para suprir a escassez de moradia que vem assolando a cidade. A iniciativa 100% Tempelhofer Feld, através de doações e trabalho voluntário de centenas de moradores, havia conseguido reunir uma coleção incrível de informações e pareceres técnicos, mostrando as vantagens de preservar 100% do campo de Tempelhof como parque e área de lazer. A campanha foi difícil mas bem humorada e ganhou adeptos importantes como o Partido Verde que, na ocasião, distribuiu cartazes com uma foto muito pouco favorável do então prefeito municipal, Klaus Wowereit, e a pergunta: “Você confiaria um segundo aeroporto a este homem? “A pergunta ironizava o fato de que o principal projeto do prefeito, a construção do Aeroporto Berlim-Brandemburgo, cuja inauguração foi anunciada e preparada para junho de 2012, desandou completamente e até hoje, janeiro de 2015, não foi concluído e sequer tem data prevista de entrega.

O referendo teve lugar em 25 de maio de 2014, juntamente com a eleição para o parlamento europeu. Uma ampla maioria dos eleitores berlinenses de toda cidade e não apenas nas áreas vizinhas ao campo de Tempelhof decidiu que o parque deveria ser mantido como está, sem uso do terreno para a construção de moradias. Contudo, na ocasião de nossa visita, três meses antes do referendo, o assessor da organização que nos recebeu parecia tomado pelo clima de campanha. Debulhava sem pausa e sem pontuação o roteiro que havia preparado para nos explicar todos riscos associados ao projeto de fatiar o parque. Mais habilidoso e experiente que Ina e eu, Alain Caillé ainda logrou fazer algumas perguntas e esclarecer as dúvidas que tinha. Nós nos limitamos a ouvir. Mesmo assim, ao final, se não chegamos a nos empolgar mais com a iniciativa, foi por conta do vento frio que penetrava as várias camadas de roupa, cortando-nos a pele e desaconselhando qualquer manifestação mais entusiasmada. Do ponto de vista meramente argumentativo, estávamos plenamente convencidos dos méritos da iniciativa de não alterar o atual uso do campo de Tempelhof.

Dali seguimos para a UFA-Fabrik. No carro, íamos intercambiando nossas impressões pela iniciativa que havíamos acabado de visitar. Ina e eu aproveitávamos também para ir buscando resolver dúvidas surgidas em nossas discussões sobre o convivialismo. A primeira, mais óbvia, dizia respeito às diferenças entre o convivialismo e outros conceitos emancipatórios como razão comunicativa ou mesmo democracia radical. De forma direta e convincente, Alain Caillé nos mostrou que o convivialismo prescinde de divisões artificiais do tipo trabalho e interação ou sistema e mundo da vida. Ao contrário: por atravessar todas as esferas da vida social, o convivialismo não pode admitir clivagens forçadas entre os espaços de convivência. Uma divisão entre espaços de prevalência de relações orientadas por fins e espaços sociais codificados pela busca do entendimento representaria, de acordo com a lógica do convivialismo, uma inaceitável concessão ao utilitarismo.

Outras questões que mencionamos brevemente no trajeto de automóvel eram mais complicadas e não puderam ser resolvidas nos poucos mais de 20 minutos que separam o campo de Tempelhof da UFA-Fabrik, mesmo que eu, buscando ganhar mais tempo de discussão, conduzisse o carro na velocidade mínima admitida para a rota. Refiro-me aqui, sobretudo, às nossas dúvidas sobre o caráter crítico do convivialismo. Não estávamos seguros, por exemplo, de que o convivialismo e a matriz teórica anti-utilitarista que o inspira oferecem instrumentos para a crítica ao capitalismo ou mesmo para uma análise das assimetrias de poder entre gêneros, grupos étnicos, regiões do mundo, etc..

Meio a contragosto, mas vencidos pelas contingências da agenda estabelecida, desembarcamos no estacionamento da UFA-Fabrik, postergando as discussões que nos inquietavam por dentro para o espaço da conferência de Alain Caillé à noite.

Valeu a pena interromper a conversa teórica para ver a lição prática de convivialismo que é a UFA-Fabrik. Fomos recebidos por uma das fundadoras do projeto, Sigrid Niemer que, desde 1979, quando o terreno foi ocupado, vem acompanhando cada passo da iniciativa exitosa. Sem muitos adjetivos ou dramatizações, a fundadora ia nos contando como o grupo de jovens, meio aventureiros, meio artistas, que, antes, já trabalhavam juntos em diversas iniciativas culturais, foram se instalando e adaptando as velhas instalações do estúdio de cinema às suas necessidades. Uma exposição permanente de fotos a céu aberto, instalada logo na entrada da fábrica de cultura, documenta e realça as cores que a fundadora, vigorosa mas discreta, evitava destacar em seu relato.

Quando começaram, os membros do projeto, tinham um caixa único. Tudo que ganhavam – com os espetáculos que faziam, com o café, a fábrica de pães integrais e, depois, o cinema, o teatro, as oficinas – constituía um fundo comum distribuído entre os participantes igualitariamente, independentemente da qualificação ou do grau de sofisticação do trabalho realizado. Antes mesmo que conflitos internos pudessem minar as convicções socialistas dos membros da comuna, a secretaria municipal da receita interviu. Queria, como bem cabe à administração de inspiração prussiana, critérios claros para tributar: se não dissessem quem faz exatamente o que e quanto recebe por hora ou por mês pelo trabalho específico realizado, consideraria a todos como sonegadores.

Os participantes do projeto foram se adaptando: às leis, às mudanças na situação familiar tão logo filhas e filhos nascidos na comuna iam impondo ajustar as regras da convivência sem fronteiras formais. Paralelamente, avançavam as negociações com o governo municipal afugentando, ao menos temporariamente, o fantasma da expulsão do terreno. Hoje, os membros do projeto dispõem de um contrato de comodato e aproveitam, intensivamente, cada milímetro do terreno de quase 20.000 m2: além das atividades gastronômicas e culturais que incluem até mesmo o grupo de samba Terra Brasilis Berlin e um circo infantil, mantêm uma fazendinha com animais para crianças e produzem, através de um moinho de vento e placas solares, boa parte da energia que consomem. De todo modo, seguem fiéis ao princípio que os constituiu, qual seja, integrar de maneira coerente num mesmo espaço “diferentes esferas da vida como moradia, trabalho, cultura, criatividade e sociabilidade” (cf. http://www.ufafabrik.de/de/nav.php?pid=44).

Ao longo da visita foi se consolidando uma forte identificação entre Alain Caillé que, instado por nós, fazia comentários sobre a noção de convivialismo, e a fundadora da UFA-Fabrik, cuja experiência de quase 40 anos de convivialismo vivido e vivenciado parecia inscrita em cada um de seus gestos e em cada um de seus relatos. Foi inocultável a sensação de pesar que se abateu sobre nós quatro quando nos demos conta da hora avançada e da necessidade de interromper, sem muitos rodeios, a conversa e a visita.

No trajeto da UFA-Fabrik ao hotel já não houve mais tempo retomar as grandes discussões sobre o capitalismo e o poder. Repassávamos em frases pouco sistemáticas, mas que se complementavam, as impressões da visita. O fascínio pelo projeto e por aquela senhora forte e de convicções inabaláveis dominava a atmosfera.

Ainda que não tratássemos dos temas diretamente, iam acumulando-se as expectativas e a aposta na conferência de Alain Caillé e na discussão da noite. O conferencista não nos frustrou. Chegou muito bem preparado e municiado para a palestra naquela sala enorme do andar térreo na esquina da Unviersitätsstraße e Georgenstraße, com suas janelas monumentais expostas aos transeuntes daquele pedaço da cidade carregado de história e estórias. Numa exposição clara e fluente, sem ler diretamente as notas que trazia consigo, Alain Caillé discorreu por uns 50 minutos sobre o convivialismo, o contexto político de seu surgimento, seus principais referentes teóricos e as consequências que ele, pessoalmente, retirava do Manifesto e do movimento social em torno dele.

Abrimos a discussão. Os participantes retomaram as perguntas levantadas na sessão anterior, quando havíamos discutido além do próprio Manifesto, textos de uma compilação em alemão de trabalhos de Alain Caillé e suas críticas ao utilitarismo. As objeções dos participantes circundavam basicamente dois pontos. O primeiro ponto pode ser resumido como um certo ceticismo quanto à possibilidade de tratar o convivialismo como crítica ao capitalismo. Isto é, os participantes afirmavam que o convivialismo propugnava um mundo diferente do que vivemos mas sem oferecer um diagnóstico claro das razões pelas quais o mundo em que vivemos é como é. O segundo ponto decorria do primeiro e dizia respeito à implausibilidade do futuro convivialista. Os participantes afirmavam que o projeto era, no fundo, voluntarista. Parecia acreditar que as desigualdades socioeconômicas e as assimetrias de poder desapareceriam se a humanidade assim o quisesse. Contra esta versão voluntarista da mudança social, os participantes afirmavam que também o objetivo de transformar ou até superar o capitalismo não pode ser guiado por uma racionalidade anti-utilitarista, exige um projeto e estratégias claras.

Alain Caillé repondeu com precisão, cuidado e profunda generosidade intelectual a cada uma das perguntas feitas. Ina e eu acrescentamos ainda mais umas poucas coisas, mas no essencial nossos pontos principais sobre o capitalismo e a análise do poder já haviam sido contemplados pelos estudantes. Do que acrescentamos, vale a pena destacar, quem sabe, o questionamento sobre as afinidades eletivas entre o convivialismo e outros termos afins como convivialidade, cunhado por Ivan Illich em 1973 no livro Tools for Conviviality ou “convivial cultures”, conforme o uso conferido por Paul Gilroy no livro Postcolonial Melancholia, de 2006. Sem descartar possíveis proximidades, Alain Caillé esclareceu a importância de manter o substantivo convivialismo para assegurar o caráter abrangente e de movimento da proposta apresentada.

Encerrada a discussão pública, Alain Caillé comentou-nos, em tom ao mesmo tempo resignado e irônico, que os participantes eram ainda muito jovens para entender o convivialismo. O comentário nos intrigou. Ficou-nos a impressão de que o avanço do convivialismo só pode ser entendido como uma transformação madura, acima e além de arroubos revolucionários. Talvez o convivialismo em si mesmo não seja implausível como suspeitaram nossos estudantes. Contudo, sua difusão exige o abandono completo das utopias liberais e socialistas, o que, ao menos hoje, é uma completa impossibilidade.

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por Anders Noren

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