Este Plano de Convergência é central no Ateliê de Humanidades, pois oferece sua sustentação e seu fundamento. Em outro sentido, ele constitui um dos mais complexos planos entre os que animam nossas atividades de pesquisa, dividindo-se em alguns segmentos:
O primeiro segmento diz respeito à tradição humanista a que se referencia e envolve uma vinculação à ideia de Paideia, podendo ser feita por várias linhas interpretativas, todas associadas à tradição de pensamento Ocidental. Iniciada na Grécia – na passagem do período arcaico ao clássico e prosseguida pela Roma de Marco Túlio Cícero –, a Paideia atravessou milênios de forma problemática – da cristianização ao Renascimento –, até chegar à moderna noção alemã de Bildung, disseminada na cultura germânica do séc. XVIII ao XIX, que, tendo sido sistematizada por Wilhelm von Humboldt, foi central no idealismo alemão.
Nessa passagem, o estudo e a pesquisa associam-se inteiramente a um ideal de formação da individualidade humana e do cidadão em uma comunidade política. Trata-se de uma reflexão sobre a formação humana em um arco hermenêutico, indo de sua interpretação como “cultivo”, no sentido de espiritualização (cultura anima), à concepção de educação moderna, a fim de interpretá-la historicamente, mas também de pensar a possibilidade de sua atualidade.
Assim, as questões que o Ateliê suscita são de ordens histórica e conceitual, pergunta-se: o que é tal ideal? Podemos unificar as distintas concepções humanistas ou há uma diversidade interna a ser considerada? Dado que pensá-las hoje – perguntando-se sobre sua atualidade – pressupõe ter se tornado algo do passado, indagamos: em que momento isso aconteceu e por que ela entrou em crise? Será realmente verdade que seja algo passado e, se assim for, seria possível atualizá-la? Ou seja, como o ideal de formação humana que preside a Paideia grega, o Renascimento italiano e a Bildung alemã pode não apenas ser mantido como também apresentar-se como atual, visto como uma forma de responder à crise do nosso tempo e à reforma da educação e das humanidades?
No segundo segmento, o Ateliê se coloca na esteira mais ampla da reflexão acerca da crise da cultura contemporânea e, por extensão, dos rumos da filosofia, das ciências humanas e sociais e do aparato institucional que lhe dá suporte reprodutivo nos âmbitos material e espiritual: as Universidades.
Na trilha de uma bibliografia onde avultam figuras como Hans Ulrich Gumbrecht, Didi-Huberman, Jacques Le Goff, Christophe Charle, George Steiner, Isaiah Berlin, dentre outros, perguntamo-nos em que momento e sob quais condições tornou-se a vida acadêmico-universitária em obstáculo ao desenvolvimento do espírito crítico, ao livre pensar e à formação espiritual e moral. Com o avanço de uma civilização técnico-científica, existe uma tendência à hegemonia de uma mentalidade técnica sobre uma racionalidade prática, o que tende a subordinar, ou mesmo a suprimir, qualquer tipo de pensamento, de atividade intelectual ou mesmo de expressão linguística que não seja operacionalizável em uma racionalidade formal-instrumental.
Junto a isso, temos uma tendência do sistema de ensino como um todo, sobretudo o superior, a um funcionamento conforme padrões de industrialização das atividades e segundo a padronização e a esterilização da pesquisa e da escrita. De que forma pode-se ver aí uma das razões para a crise da cultura, da educação e das humanidades? E será possível reagir a tal processo, assumindo e defendendo uma lógica própria da pesquisa em Humanidades que fosse mais próxima a um artesanato intelectual do que a uma produção industrial?
Com essas perguntas, os esforços de pesquisa e de reflexão nos lançam indisciplinadamente a uma investigação limítrofe nos campos da história e da historiografia, da filosofia e da pedagogia, da sociologia e da psicologia, mobilizada para tais questões: (a) a história das ideias filosóficas no Ocidente; (b) o surgimento das instituições de educação e das ideias pedagógicas – dos gregos às Universidades contemporâneas, passando pelo seu advento na Idade Média; (c) o nascimento das ciências humanas e sociais, o advento dos campos disciplinares e sua crise e reconfiguração contemporânea; e (d) as relações entre teoria e práxis na formatação de uma pedagogia crítico-humanista e a organização escolar e acadêmica contemporâneas.
Eis o que nos conduz ao terceiro segmento, onde ocorre um encontro da investigação histórica sobre o humanismo com uma interpretação das metamorfoses das ciências contemporâneas e com a emergência, talvez, de um paradigma da complexidade, como proposto por Edgar Morin. Humanismo e complexidade têm em comum uma transdisciplinaridade que recusa o paradigma “aristotélico-cartesiano” dominante, pautado pela redução, pela disjunção e pela hiperespecialização, em direção ao estabelecimento da importância de uma cultura geral e de uma ciência vinculada à consciência, além de uma pesquisa associada à formação.
Dessa forma, informando-se em um pensamento da complexidade, a retomada do humanismo não é a recusa das tecnociências, mas sim uma cooperação entre as duas culturas.
Tal investigação sobre o Humanismo será feita, enfim, em um quarto segmento, onde o Ateliê se volta a uma consideração das críticas feitas a ele e aos seus limites. Por um lado, temos as críticas que denominamos de maneira ampla como “técnico-científicas”, com o que nos referimos, primeiro, aos positivismos e aos pragmatismos de diversos matizes; e, em segundo lugar, a algumas tendências sociológico-históricas (tendências de crítica marxista, mas também de teorias sociais e antropológicas). Por outro lado, temos as críticas provenientes do “pós-humanismo”, que denunciam nos humanismos clássico e moderno um caráter eurocêntrico, homogeneizador, supressor de diferenças e dominador das alteridades. É certo que a consideração de todas elas é incontornável para a reflexão sobre o humanismo no tempo presente; porém, em que pese sua importância, revelam-se também problemáticas em muitos aspectos.
Depois do trabalho de desconstrução, talvez seja o tempo de se afastar das grandes comoções e se deter a uma reconstrução da imagem do humano de forma não ingênua, integrada ao vivo, aberta à alteridade e disponível à pluralidade das formas de existência; sem recair, entretanto, no relativismo cínico ou no imobilismo reinante. Pretendemos fazê-lo, como programa de pesquisa, nos termos da problemática da formação geral, propondo uma articulação sui generis entre uma perspectiva humanista heterogênea, mas com fortes traços comuns – que denominamos itálico-germânicos – e uma concepção de fora da tradição humanista – que denominamos pragmatismo ou praxiológica –, concentrando aspectos positivos tanto da racionalidade técnica quanto da razoabilidade prático-humanista. A proposta é pensar uma síntese entre as perspectivas contemporâneas pragmatistas e as tradições formativas do humanismo e da complexidade.
Com isso, buscamos concretizar a reflexão em termos de organização do ensino, do currículo e da pesquisa, em uma ordem onde nem a dimensão artesanal do trabalho intelectual seja suprimida pela lógica técnico-industrial, nem a dimensão do trabalho material, incluindo o manual, seja suprimida idealisticamente por preconceitos ideológicos típicos de certa linha humanista vinculada a um ethos aristocrático.
Nesse ponto, a investigação sobre o mundo da educação e da cultura se encontra com aquela do mundo do trabalho, buscando responder aos novos desafios do século XXI. E, então, o próprio Ateliê de Humanidades vê-se refletindo sobre seus ideais e as práticas intelectuais e pedagógicas que norteiam suas atividades, posto que é centrado no artesanato intelectual e na livre formação e pesquisa tutorada, assim como no renascimento das humanidades em estreita simbiose com o mundo social e vivido.
Sinteticamente, podemos objetivar assim algumas das questões centrais que norteiam o presente Plano de Convergência:
- Empreender investigações conceituais e históricas sobre a(s) tradição(ões) humanista(s), que denominamos acima de “itálico-germânica(s)”, construída(s) em torno de conceitos, como os de Paideia e de Bildung, a fim de interpretá-la(s) em seu contexto e em seu desenvolvimento social-histórico, investigando também o que pode haver em suas estruturas expressiva, cognitiva e normativa de trans-históricas, de transculturais e de contemporâneas;
- investigar, de modo diacrônico, o desenvolvimento das instituições de ensino no Ocidente – e, eventualmente, de outras constelações culturais e civilizacionais –, de forma a interpretar, comparativamente, a crise contemporânea dessas instituições e as tendências e possibilidades futuras;
- pesquisar, de modo igualmente diacrônico, a evolução da vida intelectual no âmbito íntimo do que podemos chamar de “vida espiritual”, isto é, o autocultivo e os métodos de estudo e de leitura, com o fito de explicar a crise pedagógico-espiritual do ensino hoje existente, pelo que alguns de nós caracterizam, com George Steiner, como “analfabetismo secundário” e “bizantinismo contemporâneo”; em resposta ao qual se defende a necessidade de uma investigação histórica, crítica e mesmo metafísica do estudo e da leitura, isto é, uma investigação imanente e/ou transcendental das formas de leitura e de estudo;
- investigar, de modo sincrônico, as formas da crise da cultura, tomadas como pressupostas a partir de uma das dimensões que Georg Simmel denominou de “tragédia da cultura”, a saber, aquela que, diante da ampliação autônoma do “espírito objetivo”, conduz à trágica dificuldade – ou mesmo à impossibilidade – de transmissão cultural e de formação subjetiva, posto que exigem um trabalho meditativo e uma mediação transformadora da consciência. Segundo a hipótese de alguns de nós, a mediação subjetiva e cultural por ora afetada é garantia de reprodução crítica de uma tradição cultural na qual a autonomia se enraíza e floresce, de tal modo que sua impossibilidade pode ser uma das razões da crise contemporânea: cultura do narcisismo, hiperindividualismo, novos transtornos de humor e personalidade, crise da escola, amnésia cultural, presentismo, niilismo, disseminação de autoritarismos, de fundamentalismos e de pulsões agressivas;
- repensar a educação e a pedagogia contemporâneas por um esforço de diálogo e, talvez, de síntese entre três tradições de pensamento:
(1) com o humanismo, busca-se retomar, pedagogicamente, o papel da cultura geral em sua tripla função na formação humana: a. cognitiva, ao possibilitar um conhecimento capaz de interpretar e compreender; b. expressiva, ao permitir o florescimento de subjetividades capaz de construir uma ipseidade por uma narrativa e por uma hermenêutica de si mesmo na relação com outros; c. por fim, prático-moral, ao constituir, por um aprendizado cultural, literário e filosófico, capacidades e competências práticas, pressupostas não apenas na vida íntima e privada, como também – e sobretudo – na efetivação do humano como animal político em uma pólis democrática;
(2) com o pragmatismo, empreendemos conectar a racionalidade prática à racionalidade técnica, recusando separar o corporal e o mental, o trabalho material e o trabalho espiritual, propondo, ao contrário, o papel formador da conexão entre ambos, desenvolvendo um ideal e uma prática de “artesanato intelectual”, a não menosprezar o desenvolvimento tecnocientífico;
(3) por fim, com a complexidade, que dialogando com o humanismo e o pragmatismo, proporciona trazer as contribuições dos saberes e das práticas das novas ciências e tecnociências; realizamos tal diálogo tanto para defender a hipótese – presente no pensamento da complexidade – de que a mutação paradigmática tende a suprassumir a dualidade entre a cultura humanista e a cultura tecnocientífica, quanto, também, para assumir, de um ponto de vista crítico-humanista, a missão de criticar, em diálogo com o Plano “Tecnociências & Sociedade”, os riscos humanos, éticos e ecológicos das transformações tecnológicas em curso.
* Imagem: Homem Vitruviano de Leonardo da Vinci & Escrituras de Victor Montaghini e Fábio Maca. Composição via Deep dream.
Projetos em andamento:
Paideia, Bildung, Humanitas e Universitas: uma reconstrução histórica e uma reflexão sobre o potencial de atualização dos humanismos ocidentais
Artifício e artesanato intelectual: entre humanismo e pragmatismo