Plano de Convergência. Dis(U)Topias: crítica, crise e ficções além de nosso tempo

As utopias estão fora de moda. E as distopias estão talvez mais em voga do que nunca. Depois de um século ambivalente, que oscilou entre os extremos da utopia e da distopia, a passagem do milênio passou ao polo negativo da narratividade: o tempo parece nos dizer que nossos sonhos não são possíveis de realizar, ou, se o são, revelam-se como um terrível pesadelo. Fecham-se as cortinas no palco dos ideais e diz-se chegada a hora do real e do senso de responsabilidade do pragmatismo.

A razão técnico-científica continua a afirmar seu poder sobre os domínios da existência. Na modernidade, nosso mundo foi imaginado como era de promessas: horizonte de mecanismo e máquinas autômatas, assim como de humanos emancipados e autorrealizados. A imaginação de mecanismos perfeitos e autômatos autossuficientes conciliava-se com a de uma sociedade redimida de quaisquer formas de exploração e dominação. Desde o poema medieval Cocanha, passando pelos humanistas Thomas Morus, Tommaso de Campanella e Francis Bacon até meados do século XX, passando pelos Iluministas e as promessas do socialismo “científico”, salvo exceções, as utopias alimentaram nossas mentes. Mas suas sombras, as distopias, jamais deixaram de acompanhá-las. No século XX, sob os impulsos das guerras e das experiências totalitárias, obras como as de Aldous Huxley, George Orwell, Ray Bradbury, Ayn Rand, Ievgueni Zamiatin, dentre outras, realizaram uma verdadeira virada distópica sobre nossa forma ficcional de pensar o além de nosso tempo, fazendo-nos pensar que, projetados ficcionalmente em uma realidade realizada, nossas utopias devem antes ser refletidas, e, mesmo, temidas.

No século XXI, um Zeitgeist [espírito do tempo] distópico paira no ar. Diga-se logo que ele pode ser apenas um pequeno estado de humor passageiro, sintoma de uma era em mutação, ou simplesmente filão de mercado de uma indústria cultural sempre sensível às tendências. Independentemente disso, o sintoma diz algo sobre o paciente: a perplexidade nos move. Pensar o próprio tempo em que nos inserimos, parece ser um desafio cada vez mais inalcançável. Talvez aí esteja uma das principais razões para o exalar de futuros distópicos. Afinal, se, como queriam os românticos alemães do século XIX, o espírito do tempo é a potência e a inteligência das coisas, e se, a crermos no veredicto de Alain, o fundamento do espírito consiste em duvidar, então podemos nos questionar se não vivemos, atualmente, a paradoxal situação de um tempo sem espírito, que, nas palavras de Paul Valéry, não teria cessado de conhecer sem nada compreender. A caixa de Pandora continua bem aberta a despejar sobre o mundo os seus males e, aprendizes de feiticeiros que somos, realizamos o mesmo trabalho de Sísifo de sempre, alçando ao cume nossos esforços de controle sobre o destino para ver rolar em cima de nós massas acumuladas pelo trajeto e ainda mais descontroladas que antes. À Bomba Atômica, que continua a assombrar, somam-se, agora, inúmeros fantasmas: drones não-tripulados, armas químicas, inteligências artificiais, transgênicos, ciborgues, alterações climáticas, manipulações genéticas – definitivamente, não faltam materiais do real para uma boa obra ficcional. Até mesmo uma nova Era se anuncia: o Antropoceno. Com ele, é prometido despejar-se sobre nossas cabeças a terrível responsabilidade sobre o que fazemos à Terra.

Ora, sejam utópicas ou distópicas, o que importa é que as ficções nos põem a pensar. Verso e reverso, a Utopia e Distopia foram as faces de um mesmo processo histórico mobilizado pela ascensão de uma racionalidade crítica, que com a Escola de Frankfurt, podemos associar a dois tipos: a crítica-utópica e a técnico-instrumental. Os sinais de esgotamento da primeira e os sinais de fraqueza da segunda são expressos em nossa literatura, na indústria cultural como um todo e, mesmo, no fantástico realismo de nossos acontecimentos políticos.
O Plano de Convergência Dis(U)Topias faz da temática filosófico-política do tempo histórico em que se fundam as utopias e as distopias, sua constituição histórica e crise, o mote para um programa de pesquisas cuja problemática pode ser condensada na máxima de Valéry de que “o futuro não é mais o que era”. O Plano se distribui em quatro segmentos.

Um primeiro segmento se volta para uma pesquisa histórica e sociológica das utopias, sobretudo aquelas formadas na aurora da modernidade, presentes em autores como Morus, Campanella e Bacon, até nossos dias, mostrando como elas se associam com a crítica social e com o próprio processo de modernização. Mas faremos isso tomando em conta também as utopias pré-modernas, seja as da Antiguidade – das quais a República de Platão é um exemplo maior – ou as presentes em narrativas teológicas de caráter apocalíptico, escatológico ou milenarista, cujos elementos narrativos e estrutura literária não deixaram de afluir para o gênero utópico moderno. Nele, faremos também uma análise da “virada distópica” nos anos 1920 e 1930, com o surgimento deste tipo de literatura na leva dos totalitarismos, acompanhando como, a partir dos anos 1970 e 1980, elas se expandiram no vácuo do desaparecimento das promessas revolucionárias.

No segundo segmento, com forte caráter experimental, buscamos articular teórica e metodologicamente a narrativa, a ficção e a imaginação, concebidas como formas de crítica social e de metodologias de interpretação do passado, do presente e do porvir. A linguagem ficcional é um instrumento, por excelência, de crítica social. Desde o estudo clássico de Lepenies, estamos cientes sobre como a sociologia oscilou, ao longo do século XIX e início do XX, entre a ciência e a literatura. Para o que nos interessa aqui, importa mostrar qual o papel de uma forma específica de ficção, as chamadas utopias, tanto em sua forma positiva quanto na negativa (distopias), para a crítica social em geral e, sobretudo, para a interpretação crítica do tempo presente.

No terceiro segmento, limítrofe entre a sociologia, a crítica literária, a política e a antropologia, ocuparemo-nos com as transformações no imaginário social que estão na base do fenômeno que aqui caracterizamos como “virada distópica” (na literatura, no cinema e, mais recentemente, na TV). O segmento tem, portanto, uma maior preocupação empírica originária, expressa nos fenômenos comerciais de uma literatura voltada para o fantástico, a literatura fantasy (um significado contemporâneo e mais restrito que phantasia, o de um gênero literário) e a science fiction; enquanto a primeira olha para trás, a segunda olha para frente, para o futuro, distópico ou não. Hoje, temos não apenas uma retomada de interesse por antigas obras distópicas, tais como Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley (1932), 1984, de Georg Orwell (1948), Fahrenheit 451, de Ray Bradbury (1953) e Planeta dos Macacos, de Pierre Boulle (1963); mas também assistimos a uma proliferação de novas obras de estilo distópico: nos desenhos em quadrinhos e, notadamente, na literatura, por exemplo, para só citar alguns autores, as de José Saramago (Ensaio sobre a Cegueira), Margaret Atwood (Handmaid’s Tale, Oryx e Crake, O Tempo do Dilúvio, MaddAddam), Boualem Sansal (2084), Cixin Liu (O problema dos três corpos) e Ursula le Guin (Os despossuídos). São prolíficas também as produções distópicas no cinema e na televisão, tais como Gattaca, Matrix, Planeta dos Macacos, Blade Runner, Black Mirror, para não mencionar as diversas adaptações das histórias de quadrinhos no cinema. Nosso esforço, diante da fartura de obras culturais do gênero, é duplo: de um lado, utilizá-las como narrativas que permitem pensar nosso tempo, e, de outro, interpretá-las como um fenômeno cultural e sociológico a ser explicado enquanto tal. Para o primeiro fim, estaremos em diálogo tanto com a “teoria crítica” quanto com a “antropologia especulativa”, proposta por Eduardo Viveiros de Castro, que, segundo ele, explora as potencialidades antropológicas da ficção científica contemporânea em tempos de Antropoceno.

Contudo, sem estarmos afetados pelo humor distópico e estando dispostos a uma interpretação de conjunto do espírito de nosso tempo, não deixaremos de investigar, em igual medida, a presença de utopias clássicas  e o surgimento de novas utopias na ficção literária e cinematográfica, sobretudo, mas também em discursos sociais e políticos. Se considerarmos, com Karl Mannheim, que, desde que não reificadas totalmente, toda vida social constitui utopias como forma de negação do real enquanto tal e de construção de um futuro possível, podemos estar certos de que trabalham no interior de nossas sociedades horizontes históricos que podem reverter em algum momento aquilo que se crê claustrofobicamene fechado ou terrivelmente apocalíptico em novos sonhos e devaneios de liberdade, justiça e solidariedade.

Por fim, em nosso quarto e último segmento, esforçamo-nos em vislumbrar a própria superação do jogo das utopias e distopias. Este segmento tem uma proposta de escopo amplo: trata-se da reunião de esforços de pesquisa, empíricas e teóricas, no sentido da configuração de uma crítica das utopias e distopias no século XXI e uma pesquisa histórico-sociológica sobre uma era pós-utópica e pós-distópica. Até que ponto tais formas narrativas não são tributárias de uma estruturação religiosa das sociedades de origem monoteísta e que, hoje, estão a perder seu vigor escatológico ou milenarista? Será que o esgotamento das utopias (em um sentido menos amplos do que o de Mannheim) e a ascensão das distopias são sinais de superação deste duplo narrativo? Esta possibilidade parece sinalizada nas mutações da experiência e dos sentimentos contemporâneos em uma nova fase da democratização moderna, à qual alguns de nós chama de “retrofuturismo” e outros, simplesmente, de “democracia”.

* Imagem: Astronauta & Os retirantes de Candido Portinari. Composição via Deep dream.


Projetos em andamento:

Distopias contemporâneas: antropologia especulativa pelo cinema e pela literatura


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por Anders Noren

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