Prefácio à edição brasileira

Alain Caillé

Em 1942, alguns meses antes de cometer suicídio em Petrópolis na companhia de sua esposa, um dos maiores escritores do século XX, Stefan Zweig, publicava um livro no qual esperava recuperar a esperança: Brasil, País do Futuro. Ele via um futuro brilhante para o país onde havia se refugiado do nazismo. Oitenta anos depois, deve ser dito que, apesar de alguns vislumbres momentâneos de esperança, esse brilhante futuro nunca chega. E ainda assim, como Stefan Zweig, quem conhece um pouco o Brasil tem o sentimento de que o país comporta potencialidades extraordinárias. Sim, é um dos países onde as pessoas mais se matam no mundo, mas é também um dos países onde se experimenta um dinamismo e uma vitalidade extraordinários, combinados com uma verdadeira gentileza (a famosa cordialidade brasileira). É um dos países mais marcados pelo colonialismo e pelo racismo, mas é também o que conheceu mestiçagens sem dúvida relevantes e, por esta razão, é provável que seja o mais capaz de superar efetivamente o racismo e as cicatrizes da era colonial. Se o Brasil conseguisse isso – como já faz com seu futebol tão espetacular e estético –, não estaria apenas abrindo um futuro brilhante para si mesmo. Estaria oferecendo um belo exemplo para a humanidade.

Estou bem ciente de que no momento atual minhas palavras podem parecer totalmente irrealistas. Sob o reinado de Bolsonaro, não é o melhor do potencial do Brasil que está sendo realizado, mas o pior. Todavia, isto não se aplica somente ao Brasil. Está acontecendo em quase todos os lugares do mundo. Há vinte ou trinta anos, todos os cientistas políticos previam o triunfo iminente e universal da democracia. O que estamos testemunhando é o triunfo quase universal de democraturas e regimes ditatoriais ou neofascistas. Por que isso ocorre? E o que podemos fazer nesta situação particularmente sinistra (para não falar da pandemia de covid-19)?

A tese que anima o Segundo Manifesto Convivialista é que uma das razões de nossa incapacidade de nos opormos à hegemonia de forças que querem pôr fim aos ideais humanistas e democráticos, na verdade a principal razão, é nossa dificuldade de opor à ideologia neoliberal, que domina o mundo há cerca de quarenta anos, uma filosofia política alternativa. Nós fizemos bricolagens do que foi inventado nos séculos XVIII ou XIX, liberalismo, socialismo, comunismo ou anarquismo. Estas doutrinas permanecem vivas, mas não são suficientes para nos dizer o que fazer em face da finitude da natureza ou em face da multiplicação e intensificação das lutas pelo reconhecimento (pós-colonial, descolonial, feminista, LGBT, etc.).

O convivialismo está longe de fornecer todas as respostas a todas essas novas questões, mas ele delineia o quadro dentro do qual elas podem ser dadas, de forma a fazer sentido e a oferecer uma chance de encontrar formulação adequada. O fato de quase 300 intelectuais reconhecidos oriundos de 33 países diferentes e de formações ideológico-políticas muito diversas terem conseguido chegar, na publicação francesa, a um acordo sobre formulações teóricas e políticas comuns é uma boa razão para ter esperança.

OK, pode-se dizer, mas todas estas são histórias de intelectuais, o que precisamos é do concreto e, sobretudo, de perspectivas políticas concretas. A objeção é legítima, é claro. Mas os intelectuais que redigiram ou co-assinaram o Segundo Manifesto estão todos engajados em múltiplas lutas concretas. O convivialismo está intimamente envolvido no reagrupamento de numerosas e importantes redes mundiais de ativistas, por exemplo, a Multiconvergência de redes globais, liderada pelos ativistas brasileiros Marcos Arruda, Alicia Blanco e Débora Nunes.* Um dos objetivos dessa rede de redes é criar uma assembleia de cidadãos da Terra, a única maneira de trazer vida a uma consciência planetária. Na França, o partido político em ascensão (obteve as prefeituras de várias grandes cidades, Marselha, Bordeaux, Lyon, Grenoble, etc.) é o partido ecologista, EELV (Europe Ecologie, les Verts). Seu secretário-geral, Julien Bayou, declarou-se convivialista. Ele sabe que os ecologistas não poderão vencer por conta própria a principal eleição na França, as eleições presidenciais (a serem realizadas em 2022) e que, para isso, será necessário reunir não só os partidos de esquerda (comunistas, socialistas, etc.), bem como ir mais além. E a referência ao convivialismo é talvez a melhor maneira de reunir todos aqueles que não perdem a esperança na humanidade e na democracia. Pode ser enfim a forma de escaparmos do confronto ritual, demasiado previsível e estéril, entre os campeões do neoliberalismo e os demagogos neofascistas.

Por que o que está começando a ser verdade para a França não deveria ser verdade para o Brasil? Amigos, brasileiros, o jogo está com vocês.

* Nota

Além do Movimento Convivialista, o reagrupamento conduzido pela Multiconvergência de redes globais envolve redes mundiais como:

  • Diálogos em humanidade (dialoguesenhumanite.org), estabelecido em 14 países, que visa a construção de uma cidadania planetária.
  • Movimento Humanista(mouvementhumaniste.fr), nascido em Mendoza, Argentina, em 1969, em torno de três pilares: o ser humano como valor central, a não-violência e a não-discriminação. O movimento se espalhou pela América do Sul e com o exílio de pessoas perseguidas pelas ditaduras locais, estando hoje presente em 51 países.
  • A Global Ecovillage Network (ecovillage.org), uma rede em expansão de comunidades e iniciativas regenerativas, foi fundada em 1995 sendo dotada de um status consultivo junto ao ECOSOC das Nações Unidas e do UNEP. Composto de cinco redes continentais e alcançando 6.090 comunidades em 114 países, o GEN constrói pontes entre formuladores de políticas, governos, ONGs, acadêmicos, empresários, ativistas, redes comunitárias e indivíduos ambientalmente conscientes ao redor do mundo para desenvolver estratégias para uma transição global em direção a comunidades e culturas resistentes.
  • Ágora dos habitantes da Terra, criada em Verona, Itália, em 2018, que visa contribuir para um processo de construção da humanidade além das fronteiras estatais. É o portador de uma Declaração que defende vacinas e medicamentos públicos, gratuitos e acessíveis contra a Covid-19.
  • O Viral Open Space (viralopenspace.net), criado em 2020, no âmbito da Covid-19, em Montreal, Quebec, que se inspira na experiência dos Fóruns Sociais Mundiais e de outros espaços de mobilização transnacional e, em um modo de processo virtual, tenta oferecer respostas cidadãs positivas à crise global através de eventos, concertos, cursos, etc.
  • Movimento para uma Economia de Francisco e Clara (francescoeconomy.org/ecofranbr.org) nasceu da iniciativa do Papa Francisco de convidar a humanidade para uma profunda transformação da relação entre os seres humanos, bem como entre elas e a vida e a natureza como um todo.
  • Via Campesina (viacampesina.org), um conhecido movimento internacional que coordena organizações de pequenos e médios agricultores, trabalhadores agrícolas, fazendas rurais, comunidades indígenas da Ásia, das Américas, da Europa e da África. Esta rede foi estabelecida em 1993.

Apresentação à edição brasileira

Convivialistas no Brasil

Impactado pela roda viva produzida pelo capitalismo financeiro em 2008 e desafiado pelas revoltas e insurgências populares em ebulição, veio a lume em 2013 o Manifesto Convivialista: declaração de interdependência. Fruto de debates produzidos por um grupo de aproximadamente sessenta autores, foi publicado originalmente em francês, ganhando posteriormente versões em diversos idiomas (inglês, italiano, espanhol, alemão etc), inclusive em português (Annablume, 2013). Com o mérito de fazer convergir signatários de múltiplas visões, o Manifesto aglutinou aqueles que buscavam se opor, coletiva e eficazmente, à intensificação acelerada das mazelas no mundo, tendo em vista considerações morais, políticas, econômicas e, sobretudo, ecológicas, de natureza radicalmente antiutilitarista.

Os desafios identificados no Primeiro Manifesto se tornaram, definitivamente, muito mais candentes desde 2013 até nossos dias. Publicado em fevereiro deste ano na França, antes da pandemia da Covid-19, o Segundo Manifesto Convivialista: por um mundo pós-neoliberal responde ao colapso civilizatório em curso ao propor saídas emergenciais para o atual turbilhão autoritário, antidemocrático e distópico.

Nessa conjuntura, o Brasil constitui evidência unívoca. A espiral de acontecimentos disruptivos engloba, entre outros elementos: a ascensão de forças da extrema direita; o golpe-impeachment e o uso eleitoral da disseminação de desinformação; a discriminalização generalizada e a violência acirrada contra indígenas, negros, Lgbtqia+ e mulheres; a desigualdade desenfreada, a perda de direitos, a precarização do trabalho e privatização de serviços públicos; as queimadas na Amazônia, no Pantanal e no Cerrado e a poluição de rios por mineradoras e a devastação ambiental; o extermínio dos povos indígenas e dos povos das florestas; o desmantelamento da rede pública de saúde e o recorde no número de mortos por Covid-19, sendo o Brasil o segundo no ranking mundial. Assim, em meio ao ar rarefeito de um confinamento social e mental devastador, nosso país se intoxica com fumaças de queimadas, poluições citadinas, linchamentos virtuais, violências normalizadas e uma sombria falta de horizontes. Na contracorrente deste sufocamento geral, é preciso atuar pela preservação e criação de um patrimônio comum (humano, cultural, natural e relacional), que seja um meio no qual possamos não apenas sobreviver, mas sobretudo bem viver e florescer. Neste sentido, este Manifesto Convivialista deve ser visto como um grito e um ato, para que uma fresta se abra por onde todos possamos respirar.

A aguda crise sanitária decorrente da pandemia de Covid-19 acentua todas as crises políticas, sociais, econômicas e ecológicas historicamente vivenciadas no Brasil e no mundo. Agora nos confrontamos com uma só mega-crise. Com a pandemia, a desigualdade adquire amplitude dramática, tendo cor, origem e classe social. O Manifesto foi redigido antes da propagação do coronavírus se tornar premente, de modo que incitamos leitoras e leitores a analisarem esse divisor de águas à luz de ideias contidas no Manifesto ou inspiradas nele.

Há um antes e um depois da pandemia. Essa diferença temporal explica em parte algumas lacunas no texto do Manifesto. Todavia, sabemos, pela experiência brasileira, que a vitória eleitoral de um regime autoritário e militarista, herdeiro da ditadura, nos dota de uma sensibilidade distinta e nos faz introduzir outras ênfases ao Manifesto. Em uma sociedade de herança escravocrata como o Brasil, é imprescindível ressaltar as questões racial e étnica, colocando-as no centro da discussão democrática. No contexto de desumanização exacerbada, os princípios convivialistas de humanidade comum não constituem apenas um pressuposto teórico, mas um projeto de superação do preconceito racista e colonizador que discrimina indivíduos a partir de sua cor, etnicidade e sexualidade.

Assim, o convivialismo é uma ideia-força que abre espaço para acolher nossas lutas antirracistas, feministas, ecológicas e indígenas numa chave propositiva. Com certeza temos que derrotar as políticas da morte e respeitar os princípios basilares da vida em comum, revigorando a declaração de interdependência assinalada no subtítulo do Primeiro Manifesto. Em nome da retomada da democratização, precisamos juntar nossas energias em uma frente unida antiautoritária e antifascista. A partir do Sul global, é necessário religar nossos movimentos progressistas, pois muitos são convivialidades locais e transnacionais que já prefiguram as sociedades de nossos anseios e, deste modo, preparam a transição para uma nova era com esperança.

O mundo neoliberal se consolidou desde o Primeiro Manifesto. Desafiar a potência das ideias neoliberais por meio da construção de uma filosofia política (e de novas práticas ético-políticas) constitui a tarefa primordial do Segundo Manifesto. Para isso, o convivialismo acrescenta o princípio da comum naturalidade aos quatro princípios fundamentais apresentados em 2013 e renomeados agora – comum humanidade, comum socialidade, legítima individuação e oposição criadora –, subordinando-os ao imperativo de controle da húbris, da ilimitação e desmedida.

Nesta edição, uma verdadeira Internacional convivialista se fortalece com signatários oriundos de 33 países. No Brasil, já somos mais de 100 signatários que se comprometem a viver os princípios, a divulgar as ideias e a estimular a discussão na sociedade civil, para além dos muros da academia. O Manifesto tem como propósito congregar diversos esforços no sentido de provocar a imaginação e encorajar a inventividade para transpor ideias relativamente abstratas de filosofia política em terrenos mais concretos de luta como cultura, saúde, sexualidade, educação, tecnologias, cidade, ciência, esportes, espiritualidade etc.

Desde já, as convivialistas e os convivialistas no Brasil convocam todos os cidadãos, militantes, coletivos, associações, organizações e partidos de esquerda a interpretarem e avaliarem o escopo deste texto de cunho internacional, reformulando-o e apropriando-se dele, de modo a fomentar contribuições genuinamente brasileiras. Um grupo de acadêmicos brasileiros deu início a essa cooperação ao publicar o Manifesto Convivialista: edição brasileira comentada (Annablume, 2016). Sugerimos que debates sejam promovidos, a fim de iluminar as questões convivialistas internacionais e conferir ao Manifesto contornos próprios aos enfrentamentos de nossa realidade nacional. Para aquelas e aqueles que quiserem conhecer mais sobre o convivialismo e aderir ao Manifesto, convidamos a acessar o site do Ateliê de Humanidades (ateliedehumanidades.com/convivialismo). Em nossa página também é possível fazer suas proposições para o avanço do convivialismo no Brasil e expor relatos sobre experiências conviviais latentes ou em curso em nosso país.

Núcleo convivialista no Brasil

André Magnelli
Frédéric Vandenberghe
Genauto C. de França Filho
Jean-François Véran

Paulo Henrique Martins
Tereza Estarque

Thaís Florencio de Aguiar