Plano – Cartografias da Crítica: Fundamentos, Potencialidades e Limites

O projeto tem por objetivo fazer uma genealogia das constelações de crítica e cartografar as atividades de teoria e pesquisa críticas, tanto as clássicas quanto as existentes em nosso tempo. Nossas atividades serão feitas refletindo-se coletivamente sobre os fundamentos, as potencialidades e os limites da crítica na filosofia e nas ciências humanas.

O trabalho cartográfico tomará como ponto de partida uma concepção “ecumênica” de crítica, pois reunirá, descreverá e mapeará, como veremos abaixo, as mais distintas constelações de crítica para muito além da Escola de Frankfurt. Se assumimos tal abertura descritiva e comunicativa em descompasso com uma usual concepção restrita de teoria crítica, temos contudo um objetivo mais profundo, que é o de pensar os fundamentos e os limites de uma teoria social crítica, colocando, neste sentido, questões que consideramos fundamentais: como são justificadas as posturas críticas? Quais são os limites e as possibilidades abertas pela justificação? E quais são os problemas oriundos da existência de uma justificativa insuficiente ou da falta de tal justificação? Portanto, no mesmo movimento em que efetuaremos o trabalho genealógico e cartográfico, faremos também um permanente esforço de pensar, de modo  sistemático, as diferenças entre, de um lado, as meras pretensões de crítica e, de outro lado, o autêntico esforço, presente de forma explícita na Escola de Frankfurt, de não apenas assumir uma tarefa de crítica social, como também, mais fundamentalmente, de construir uma “teoria crítica da sociedade”.

Ao nos propormos a empreender coletivamente tais ofícios de cartógrafos, de genealogistas e de “críticos da crítica”, buscamos difundir um conhecimento, tanto histórico quanto sistemático, das vertentes de crítica, contribuindo para ser um espaço permanente de discussão, colaboração, reflexão e divulgação de produções acadêmicas, teóricas ou empíricas, que tenham a crítica como sendo uma atividade teórica, normativa e/ou metodológica. Com a comunicação do que foi e do que vem sendo produzido de conhecimento especializado no Brasil e no mundo, acreditamos promover as pesquisas de pensamento crítico no Brasil e cumprir com o papel de extensão universitária, gerando aproximação, cooperação e tradução entre a universidade e a sociedade.

A fim de estimular contribuições do público e motivá-lo a nos acompanhar nesta empreitada, traçamos, em grandes linhas, o espaço a ser cartografado e suas respectivas constelações intelectuais.

À luz dos Marxismos:  Teorias Críticas Pró-, Meta-, Pós- e Anti-Marxistas

Para fins de exposição e análise, dada a complexidade das constelações de crítica, optamos por orientá-las conforme suas posições relativas à obra de Marx e aos marxismos. A opção por tal critério como referência para o mapeamento das correntes e autores representativos do pensamento crítico no século XX merece algumas palavras.

O mapeamento tendo como eixo o marxismo supõe a sua incontornabilidade para quem quer que, no século XX tal como hoje, tenha se proposto a fazer algo como uma teoria crítica. Antes de tudo, há de se ressaltar que existe uma relação originária, desde sempre complexa e matizada, entre marxismo e teoria crítica. Originária, porque o projeto de uma teoria crítica, no sentido aqui empregado de teoria e de crítica, foi inicialmente de inspiração marxista. Complexa e matizada, porque desde sempre – e ainda mais hoje – tal relação é problemática e problematizada, havendo concepções críticas não apenas neo-, pós- ou meta-marxistas, como também projetos críticos orientados de forma decididamente antimarxista.

A história da teoria crítica pode ser contada, portanto, tendo como eixo central as relações com o marxismo, tanto por parte de correntes e tendências de pensamento, quanto considerando-se tão somente autores isolados. Isso porque, embora a expressão crítica tenha uma longa história na filosofia moderna e a ideia de uma theoria remonte aos gregos, aquilo que aqui chamamos ora pensamento crítico ora teoria crítica foi, ao menos em um primeiro momento, um desenvolvimento da crítica marxiana da filosofia e da economia política de seu tempo, da qual derivou o projeto de unidade e mediação entre teoria e práxis, consagrado, desde então, pela denominação de materialismo histórico e/ou dialético. Mas identificar tal laço originário ao marxismo é insuficiente, pois a própria tradição de pensamento marxista é muito plural internamente, a começar pela diferença, bem consolidada na tradição, entre o “marxismo soviético” ou “ortodoxo” – pelo qual não nos interessaremos aqui – e o chamado “marxismo ocidental”. É com esse último que, como se sabe, a teoria crítica possui uma estreita relação filial. Indicar, todavia, tal filiação histórica da teoria crítica com o marxismo ocidental está em igual medida longe de nos bastar, pois temos que reconhecer que existem, para os nossos propósitos, ao menos duas grandes linhas de desenvolvimento do marxismo enquanto forma de crítica social.

Seguindo de perto o mapeamento feito por Alain Caillé & Frédéric Vandenberghe, consideramos que o marxismo ocidental tem seu destino fluindo em duas grandes correntes, uma alemã e outra (itálico-)francesa.

1. A primeira é a mais facilmente identificável, que pode ser chamada, grosso modo, de (austro-húngaro-)alemã. Ela remonta à tradição do idealismo alemão (sobretudo, mas não somente, Kant e Hegel) e, obviamente, ao  projeto de materialismo histórico de Marx. Mas ela adquire feições de projeto teórico-crítico bem estabelecido somente a partir dos anos 1920, com o esforço filosófico do Gyorg Lukács, em seu debate com Karl Korsch, pelo qual o marxismo foi reaproximado das questões filosóficas, consolidando-se aí um programa teórico que se quis desvinculado do cientificismo e positivismo reinantes no marxismo ortodoxo, que havia sido derivado (deduzido, não inferido) de Engels e Lenin e consolidado doutrinariamente pelo Partido Comunista da URSS.

A fundação nos anos 20 do Instituto de Pesquisa Social, ou, para sermos mais exatos, a formação da chamada “Escola de Frankfurt” com a direção de Max Horkheimer e as atividades de seus membros durante a década de 1930 e 1940, está diretamente vinculada a tal projeto teórico, mas o continua pela conexão da filosofia à pesquisa social interdisciplinar, distanciando-se também, em grande medida, da práxis revolucionária partidarizada. Já aqui, tratou-se de uma leitura crítica da obra de Marx, uma vez que a interpretação marxista incorporou pressupostos nativamente não-marxistas, sobretudo as sociologias da modernidade de Georg Simmel e de Max Weber, mas também, no caso, por exemplo, de Herbert Marcuse, a filosofia de Martin Heidegger e a psicanálise freudiana. Em todo caso, temos nessa primeira configuração uma teoria crítica de cariz marxista, cujos principais conceitos – dominação, exploração, ideologia, alienação, reificação e fetichismo -, bem como normatividade – orientada para a transformação social rumo à emancipação humana – são tributários da obra marxiana, que é lida sob a forte influência do idealismo alemão na qual os frankfurtianos estiveram embebidos.

Não obstante, é dentro dessa mesma constelação, vista por muitos como sendo a principal (ou mesmo exclusiva) representante da “teoria social crítica”, que verificamos, no pós-guerra, um progressivo afastamento do marxismo inaugural. Tal distanciamento em relação ao marxismo é promovido de certa medida pelos próprios Horkheimer e Adorno ao realizarem a passagem para a dialética do Esclarecimento e a crítica da razão instrumental; contudo, ela é devida principalmente à evolução interna da obra do principal representante da 2a geração, J. Habermas, que a partir de meados dos anos 1960 e principalmente do início dos 1970, desembocou em uma reconstrução da “teoria crítica da sociedade” e do “materialismo histórico”, mitigando o marxismo em um paradigma da comunicação e em uma teoria da evolução; afastamento que não deixou de ser continuado pela 3a geração, principalmente por Axel Honneth e seus colaboradores. Neste conflito entre gerações, a teoria social crítica abriu-se e integrou contribuições oriundas das mais distintas vertentes teóricas, não apenas não-marxistas, tal como a fenomenologia e a hermenêutica filosófica, como também não-alemães, como a filosofia analítica da linguagem, o pragmatismo americano e a tradição sociológica e antropológica francesas. Neste contexto, a teoria crítica adquiriu feições meta- e pós-marxistas e, quiçá, anti-marxistas.

2. Uma segunda corrente de crítica relacionada ao marxismo ocidental é muito mais difícil de ser circunscrita e bem mais complexa internamente, bem como dispersa institucional e nacionalmente. Não há nela homogeneidade ou linhas de contorno claras tal como as existentes na supracitada alemã. O que podemos fazer aqui é apenas delinear, em forma de esboço, quais são as linhas de desenvolvimento, assinalando a sua pluralidade interna, bem como o fato de que, também aí, se formam pensamentos críticos marxistas, pós-marxistas e anti-marxistas.

2.1. Uma primeira via de pensamento crítico francês, que se consumará em uma “escola do político”, tem origem no imediato pós-guerra. A princípio, ela se vincula a uma apropriação fenomenológica e/ou existencialista do marxismo, presente tanto em Jean Paul Sartre como em Maurice Merleau-Ponty, que polarizaram suas interpretações do marxismo e suas relações com o “socialismo real” no imediato pós-guerra.

No final dos anos 1940, como parte de uma intelligentsia francesa que começa a se afirmar não apenas contra o marxismo do Partido, como também contra o trotskismo, é fundada a revista Socialisme ou Barbarie (1948-1965), tendo como membros fundadores Cornelius Castoriadis, Claude Lefort (então discípulo próximo de Merleau-Ponty), Jean-François Lyotard, dentre outros. Tendo inicialmente uma forte vinculação ao marxismo, os membros da Socialisme ou Barbarie dele se afastaram, principalmente após o fim deste “órgão de ação revolucionária”, ao longo dos anos 1960 e 1970.

Nesta leva, os desenvolvimentos pós-modernistas de Jean-François Lyotard buscaram continuar a atividade crítica, só que de forma inteiramente antimarxista, combinando um agonismo nietzschiano com a teoria dos jogos de linguagem de Wittgenstein. Cornelius Castoriadis, de seu lado, empreenderá, em 1975, sua grande obra de crítica do marxismo, A Instituição Imaginária da Sociedade, que objetivou superar os limites do marxismo para manter seu projeto revolucionário através de uma teoria da instituição social pelo imaginário radical. Por sua vez, Claude Lefort desenvolveu sua teoria do político e suas investigações históricas sobre a experiência totalitária e a invenção democrática, de forma a continuar o pensamento crítico por meios antimarxistas, embora não totalmente antipáticos ao próprio Marx, que é lido, então, pelas lentes de Maquiavel e sob o julgamento da tradição do liberalismo político e dos direitos do homem. Só que os  discípulos de Lefort, principalmente Pierre Rosanvallon, Marcel Gauchet e Alain Caillé, aprofundarão a partir dos anos 1980 tal distanciamento, desenvolvendo, agora, um pensamento crítico sem quaisquer traços marxistas. Mantendo-se vinculado à tradição democrata-radical, o projeto emancipatório dos discípulos lefortianos passa a ser perseguido por uma investigação histórica que se apropria das contribuições da etnologia, do estruturalismo, da fenomenologia e do pragmatismo. Bem próximo a tal escola do político, Régis Debray desenvolve, de seu lado, uma teoria metamarxista da ideologia, que começou por uma crítica da razão política para desembocar, com forte influência deleuziana, em uma ciência dos medias, a mediologia.

2.2. Essa primeira via do pensamento francês se desenvolveu em um período histórico de radical mutação da intelligentsia europeia; mutação que não poderia ter sido melhor expressa do que pela ascensão, zênite e queda do movimento estruturalista ao longo dos anos 1950 e 1970. O estruturalismo expressou, dentre outras coisas, o despertar de uma consciência etnológica, o que conduziu a outra forma de crítica da modernidade, que se fará pelo encontro com as alteridades da “razão” – o “selvagem”, o “não-ocidental”, o “negro”, o “louco”, “a mulher”, a “criança”, etc. Não por acaso, parte da intelectualidade de esquerda, tal como Pierre Clastres e Lucien Sebag, se converterão à etnologia como forma de saída do comunismo e do esquema marxista de pensamento. Neste processo, Claude Lévi-Strauss, o pai do estruturalismo (e para alguns igualmente pai do pós-estruturalismo), aponta para uma outra forma de pensar para além do método dialético, fazendo abrir no horizonte a possibilidade de formas de crítica liberadas dos fetiches do historicismo e do sujeito.

Na linha direta de Lévi-Strauss, mas em forte confronto com ele, Pierre Bourdieu construirá uma sociologia crítica por meio da síntese dos clássicos da sociologia e pela construção de um estruturalismo genético voltado a um programa, marxista no ímpeto teórico, mas anti-marxista na orientação prática, de análise sociológica das formas de dominação, de alienação e de fetichismo. Sendo um “marxista cultural” que não deixa de estar na esteira de Gramsci, Bourdieu é contudo um crítico da incapacidade marxista em lidar com a relativa autonomia do simbólico, propondo, como se sabe, uma teoria dos campos, do habitus e da violência simbólica construída por uma apropriação da teoria weberiana da diferenciação das esferas de valor e da teoria das categorias sociológicas de Durkheim. Com sua economia política das trocas simbólicas, Bourdieu se torna, então, responsável, ao lado da tradição frankfurtiana, por um dos mais conscientes e sistematicamente elaborados projetos de “teoria crítica” do século XX.

Contudo, após um amplo domínio bourdieusiano, seus discípulos, dentre os quais Luc Boltanski e Bruno Latour, acertam suas contas com a sociologia crítica, abandonando, pela incorporação de outras tradições filosóficas, o que restava de marxismo – ou mesmo de sociedade – nas ciências sociais francesas. Com isso, com exceção de Bernard Lahire e alguns outros, a sociologia francesa da virada do século passa cada vez mais da era das denúncias promovida por uma sociologia crítica para uma era de análise das capacidades dos atores e das redes de actantes realizada por uma sociologia da crítica e por uma teoria do ator-rede. Não obstante, a relação ambígua com o projeto crítico não deixa de aparecer em Boltanski, que opera hoje, depois das aquisições cognitivas da sociologia das capacidades críticas, um quase-retorno, inteiramente renovado, à sociologia crítica de seu antigo mestre.

2.3. Se Bourdieu pode ser visto, de certo modo, como um “pós-estruturalista”, desde que entendamos por isso o fato de ter buscado superar os limites do estruturalismo de Lévi-Strauss, ele se diferencia fortemente dos demais representantes desta corrente ao se mostrar muito próximo tanto de Marx quanto de Lévi-Strauss em seu projeto de ciência e de “Realpolitik da razão”. Diferentemente disso, temos, doutro lado, o que podemos chamar, grosso modo, de uma grande via derivada do marxismo que é, ao mesmo tempo, “hegemonista” e/ou “diferencista”. Ela é predominantemente francesa, dir-se ia melhor itálico-francesa. Itálico, porque pode ser situada como tendo como principal fonte o marxismo italiano de Antonio Gramsci, mas francesa, porque tem na França seus principais desenvolvimentos, principalmente a partir de Louis Althusser e de Nicos Poulantzas.

A complexa obra de Gramsci configura, ao lado dos supracitados Lukács e Korsch, uma outra via de desenvolvimento do marxismo ocidental, abrindo clareiras em uma seara mais ampla que a do “hegelo-marxismo filosófico”, quais sejam, a da Política e do Estado. A organização e publicação de seus escritos assistemáticos dos tempos do cárcere após a sua morte demorou um pouco a impactar a intelligentsia de esquerda no mundo todo, tendo tido uma divulgação relativamente tardia: a edição original de sua obra (italiana) foi marcada pela seletividade, o que contribuiu para distorções interpretativas do seu pensamento. Na França sua inserção fora prejudicada pela ênfase das exegeses dominantes no aspecto político (luta de classes) do seu pensamento em detrimento das sempre superestimadas circunstâncias materiais e estruturais. Contudo, a partir de meados dos anos 60, podemos citar primeiramente a obra de Louis Althusser como uma das que sofreu influência de Gramsci.

Se a obra de Bourdieu não deixa de ser tributária do marxismo gramsciano, é  de Althusser que deriva a interpretação dominante do pensador da hegemonia e que marcará a formação de uma constelação de crítica bem diferente, que pode ser chamada, mais apropriadamente, de “pós-estruturalista”. O livro Pour Marx chama a atenção para o trabalho precursor do sardo no estudo das “superestruturas”. Também o importante Nicos Poulantzas, grego de origem mas parisiense por destino, após efetuar uma crítica do que considerava uma herança idealista, incorporou em suas elaborações sobre o Estado muito da obra gramsciana. Mais recentemente, podemos citar ainda o grupo Actuel Marx, de Jacques Bidet e Jacques Texier, acadêmicos franceses vinculados à Universidade Sorbonne de Paris e aoCNRS, advindos do Partido Comunista Francês (PCF), fundamentais para o estudo da recepção de Gramsci na França dos anos 80 e para a constituição de uma via alternativa do pensamento crítico de matriz marxista.

A recepção do gramscianismo na França ocorreu em convergência com o estruturalismo por meio da obra de Althusser. Muito embora o gramscianismo tenha um desenvolvimento nada desprezível na Itália e por todo o mundo (impactando, como se sabe, na própria história do marxismo no Brasil), ele será recebido na França via um (pós-)estruturalismo, que faz com que o marxismo seja apropriado criticamente por uma leitura bem francesa das “críticas filosóficas da modernidade” de Nietzsche e Heidegger – aos quais o pensamento de Spinoza uniu suas forças mais tarde -, donde originaram-se as formas de pensamento da diferença. Neste sentido, também a forma pós-estruturalista de crítica pode ser lida a partir das complexas relações com Marx e os marxismos. Com efeito, Jacques Derrida foi um leitor e crítico acerbo de Marx, como se pode constatar em Os espectros de Marx, e grande parte do programa pós-estruturalista perfaz uma crítica ao hegelo-marxismo (crítica da categoria de totalidade, do método dialético, da filosofia da história marxiana). E Michel Foucault, anticomunista e antimarxista convicto, não deixa de ter uma relação ambígua com um dos “mestre da suspeita”, cuja matriz analítica não deixa de trabalhar subrepticiamente em algumas de suas análises do poder, como em História da Loucura, ainda que seja sistematicamente desconstruída ao longo do percurso de seu pensamento com o desenvolvimento de uma arquegenealogia que combina o estruturalismo principial com uma astúcia genealógica nietzschiana.

O pós-estruturalismo somente pode ser compreendido quando situado na esteira das lutas pelos movimentos civis – negro, feminista, gay, etc. – e da revolução cultural do fim dos anos 1960, com o surgimento de uma nova esquerda e a valorização das questões de identidade e diferença. Não por acaso, ele se globalizará nos anos 1980 pela via do mundo anglo-saxônico, do qual resulta a constelação bem diversa dos studies estruturado, principalmente, pelo princípio da diferença: cultural studies, media & communication studies, gender studies, subaltern studies, postcolonial studies, governmentality studies, etc. Como bem assinalaram Caillé & Vandenberghe, os studies nascerão de um casamento entre Marx e Foucault, Gramsci e Derrida, Althusser e Deleuze, havendo, hodiernamente, discípulos foucaultianos (Edward Said, Nicolas Rose, Judith Butler), deleuzianos (Antonio Negri e Michael Hardt) e derridarianos (Ernesto Laclau, Chantal Mouffe e Spivak).

Essa globalização do desconstrutivismo convergiu, assim, com o movimento de pós- e decolonização do pensamento. Se a teoria crítica foi originalmente um empreendimento Europeu, é importante se perceber que foi desencadeado, em convergência com a crítica da modernidade advinda do Norte, um amplo movimento oriundo do Sul sob o impacto da descolonização e das lutas de autoafirmação nacionais e étnicas, que se voltou ao questionamento onto-epistemológico e ideológico da tradição metafísica ocidental. Com isso, gerou-se uma empresa pós-colonial que, algumas vezes, levou ao niilismo ou à negação, mas, também, outras vezes, a propostas de renovação e superação das bases normativas do pensamento crítico. De Edward Said a Boaventura de Sousa Santos, passando por nomes como G. Spivak, Walter Mignolo, Eduardo Mendieta, Enrique Dussel, dentre outros, a teoria crítica passa a se confrontar com desafios mais complexos oriundos de outras “cosmopolíticas”, sendo exposta, desta forma, a um esforço de decolonização e pós-colonização do pensamento em geral e, mais particularmente, do pensamento crítico. Tais pós-colonialismos, apesar de grandemente marcados pela crítica marxista (particularmente de Gramsci), ergueram-se também contra o marxismo, como nas obras de Gayatri Spivak ou de Boaventura de Souza Santos.

Desta constelação “diferencista”, “hegemonista” e “pós-colonialista” derivam iniciativas teóricas bem diversas, tais como feminismo crítico, teoria crítica da raça, teoria crítica africana, pensamento crítico latinoamericano, Subaltern Studies Group, etc. Outros espaços do globo e horizontes civilizacionais se tornam, a partir de então, candidatos à fundamentação de um pensamento crítico. No Brasil, o campo de estudos ameríndios, alimentado a um só tempo do pensamento indígena, da filosofia da diferença francesa e das teorias antropológicas de uma Marilyn Strathern e de um Roy Wagner, entra também na luta cosmopolítica global entre alternativas de pensamento crítico, alcançando notoriedade na “antropologia crítica” perspectivista de um Eduardo Viveiros de Castro.

Constelações Temáticas

Feito o breve mapeamento das críticas, cujo esquematismo adapta-se às possibilidades do Plano, apresentamos, agora, de forma sintética, quais serão as constelações temáticas.

Teoria Crítica Alemã: Origens, Frankfurt e Além

A presente constelação sugere os seus objetivos no próprio título: Teoria Crítica Alemã: Origens, Frankfurt e Além. Se dedicamo-nos a uma constelação “alemã”, nós o fazemos começando por uma preocupação de genealogia de suas origens. Nada mais natural, do ponto de vista histórico, do que colocarmos tal via como sendo a constelação intelectual mais importante. Antes de tudo porque foi aí que se constituíram os pensamentos donde correm as correntes tradicionais de crítica, a saber, as de Kant, Hegel e, principalmente, a de Marx, que tiveram seus desdobramentos na história da sociologia alemã que são centrais para a teoria social clássica. Mas sobretudo porque é ali também que se formou a Escola de Frankfurt, que se tornou, com toda a razão, uma espontânea referência sempre que falamos em “teoria crítica”; notoriedade que se deve ao fato de que o projeto frankfurtiano se colocou como tarefa não apenas a de realizar uma “crítica social”, como também a de fundamentar, por meio da unidade e mediação entre teoria e práxis, entre filosofia e ciências sociais, as condições de possibilidade da própria crítica e da transformação social.

Se temos, aqui, o intuito de disponibilizar ao público uma genealogia e uma cartografia da Escola de Frankfurt, não nos restringimos, contudo, a tal tradição, pois consideramos que formaram-se, também, em terras “alemãs” (na verdade, igualmente húngaras e austríacas), importantes contribuições para o pensamento crítico. Vale citar, como exemplos centrais, dentre outros, as vertentes “ocidentais” do marxismo, tais como as obras de Georg Lukács, Karl Korsch e dos austromarxistas, bem como a crítica da cultura de Siegfried Kracauer e a sociologia do conhecimento de Karl Mannheim. No tocante à tradição frankfurtiana, buscamos contemplar todas as suas gerações. Da primeira geração, incluímos não apenas os autores do círculo “interno” – Max Horkheimer, Theodor Adorno, Herbert Marcuse, Leo Löwenthal e Friedrich Pollock -, como também os do círculo “externo” – Eric Fromm, Franz Neumann, Otto Kirchheimer e Walter Benjamin. Dedicamo-nos, igualmente, àqueles da segunda – com atenção especial a Jürgen Habermas, mas buscando também contemplar outros, como Karl Otto Apel, Claus Offe e Albrecht Wellmer – e da terceira gerações – como Axel Honneth e Hauke Brunkhorst. Por fim, trazemos postagens em torno de contribuições mais recentes oriundas de autores vinculados, direta ou indiretamente, à tradição frankfurtiana – tais como Rahel Jaeggi, Rainer Forst, dentre outros -, a fim de refletir sobre a atualidade da tradição frankfurtiana e as distintas formas de continuar, atualizar ou reconstruí-la diante dos desafios de nosso tempo.

As Vertentes de Crítica à Francesa

Reuniremos aqui postagens sobre os vários autores que, de 1950 aos dias atuais, contribuíram ou podem contribuir com o desenvolvimento da pesquisa crítica, de cariz teórico ou empírico. Como dissemos acima, trata-se de uma configuração com matizes nacionais, mas cujo contributo para o desenvolvimento e a renovação da teoria crítica foi e é fundamental. Nos referimos aqui aos trabalhos das três linhas de desenvolvimento da constelação francesa: (a) a via do Socialisme ou Barbarie até a escola do político: composta pelos fundadores da revista Socialisme ou Barbarie – principalmente Claude Lefort e Cornelius Castoriadis – até discípulos contemporâneos como Pierre Rosanvallon, Marcel Gauchet e o líder do Mouvement anti-utilitariste en sciences sociales (M.A.U.S.S.), Alain Caillé -; (b) a via da sociologia crítica até a sociologia da crítica, ou seja, desde Pierre Bourdieu até as investigações do pragmatismo francês em torno de uma sociologia da crítica e, mais recentemente, em torno das abstrações no capitalismo contemporâneo; (c) as formas de pensamento pós-estruturalistas (desde Michel Foucault, Jacques Derrida e Gilles Deleuze até seus discípulos mundo afora, como Jacques Rancière, Judith Butler e cia.).

Diferenciando, Desconstruindo e Descolonizando a(s) Crítica(s)

Nesta constelação reunimos todas as contribuições ao pensamento crítico e, eventualmente, à teoria social  crítica advindos do que denominamos acima de corrente “diferencista”, “hegemonista” e “pós-colonialista” de crítica, onde convergem o marxismo gramsciano, o pensamento (pós-)estruturalista, os chamados studies, os movimentos pós-colonialistas e decoloniais e a antropologia crítica.

Teoria, Sociologia e Antropologia Críticas no Brasil

A teoria crítica no Brasil é correntemente associada à Escola de Frankfurt, por extensão ao pensamento social alemão pós 1930. Acompanharemos, com muita atenção, as formas de recepção dessa tradição de teoria crítica alemã em nossas terras, aí incluído a latino-américa, sem contudo perder de vista os esforços autônomos, por intelectuais brasileiros e latino-americanos, de contribuir teórica, metodológica e empiricamente para a própria tradição frankfurtiana. De todo modo, pretende-se aqui cultivar investigação das produções teórico-críticas em uma dimensão menos restritiva do que se concebe como teoria crítica, que inclui crítica literária, sociologia crítica, pós-colonialismo, antropologia crítica, escola do político e todas as demais vertentes aqui recebidas e reelaboradas. Também nesse ponto, e com grande proveito, pretendemos contribuir com uma cartografia e genealogia do pensamento crítico no Brasil e na América Latina, trazendo contribuições de ensaístas, sociólogos, filósofos e antropólogos brasileiros e latino-americanos (ou radicados nessas terras), que tanto recebem as distintas vertentes de pensamento crítico em nossas terras quanto elaboram contribuições teóricas e empíricas originais. Oferecendo uma ampla percepção do pensamento crítico brasileiro (ou no Brasil), e do pensamento latino-americano (ou na América Latina), pretendemos divulgar pesquisas de caráter teórico e empírico que se referenciam na (teoria) crítica. Dentre tais atividades de ensaios, é fundamental termos alguns textos que tratam da recepção das vertentes de pensamento crítico no Brasil – sobretudo Frankfurt -, mas teremos que ter principalmente ensaios sobre nossa própria tradição crítica, tratando de autores clássicos e contemporâneos. Aqui inserem-se: trabalhos sobre a obra dos autores relacionados e de outros que aí não constam, recortes temáticos dentro de um autor/obra e também exercícios de compreensão da recepção e desenvolvimento dessa forma entre nós. Esforços próprios de produção de pensamento crítico serão bem vindos.

Nesse sentido, pensamos em algumas “linhas gerais” ou dimensões que os textos teriam que necessariamente tangenciar a fim de que não percamos o sentido geral que nos conduz. São elas:

.Interpretação do Brasil: esse tópico tem necessariamente que constar nas entrevistas com aqueles(as) cuja contribuição intelectual se insere naquilo que podemos chamar de “exemplares”, isto é, autores(as) cuja trajetória e obra configuram por si mesmas um marco no desenvolvimento do campo. Por exemplo, Gabriel Cohn, Luiz Werneck Vianna, etc.

.Concepção de (teoria) crítica: é o tópico de identidade com o Projeto como um todo, já que o Cartografias se propõe, dentre outras coisas, a mapear e a (re)formular o conceito de crítica.

.Influências e recepção dos teóricos críticos europeus: é ponto central para a “constelação” Brasil/América Latina, pois a partir dela deveremos ter os marcadores que distinguem e/ou nos aproximam da tradição europeia.

.Leituras dos clássicos do pensamento social brasileiro e latino-americano: como cada um vê a obra dos clássicos indisciplinados ou disciplinados das ciências sociais brasileira, tal qual um Antonio Candido, Sérgio Buarque, Gilberto Freyre, Caio Prado, etc. Mais que isso: qual a “estante mínima” de cada um, isto é, quais os(as) autores(as) da tradição brasileira e latino-americana que constituem sua base de referência.

Teoria (Meta)Crítica para o Século XXI

Serão reunidas aqui contribuições para uma reconstrução cognitiva e normativa da teoria crítica para o século XXI, que venham a se esforçar em superar os limites das distintas vertentes de crítica, integrando-as em novas sínteses teóricas mais satisfatórias e incorporando influências de outras vertentes de pensamento até então dissociadas da tradição de pensamento crítico. Postaremos também tentativas de superação das facilidades da (hiper-)crítica, que apontem para horizontes capazes de realizar melhor, e por outros meios, aquilo ao que se propuseram as críticas, a saber, promover uma transformação social orientada por um ideal emancipatório.  Tal como se propõe F. Vandenberghe em seu projeto de uma teoria social reconstrutiva, trata-se de se esquivar do esquema clássico das críticas – que partem da denúncia e da revolta contra a dominação, a exploração e a alienação do capitalismo, mas que se satisfazem, no mais das vezes, por terminar com uma resignação melancólica ou um messianismo disfarçado -, a fim de pensar reconstrutivamente e promover praxiologicamente os potenciais emancipatórios presentes na espécie humana, bem como nas sociedades contemporâneas.

Pesquisa Social Crítica: Temas Críticos de Nosso Tempo

Iremos trazer ao público, aqui, contribuições para a pesquisa social crítica sobre os mais diversos temas contemporâneos, tais como reconhecimento, trabalho, justiça, direito, biotecnologia, mídias, etc. Traremos não apenas ensaios e relatos de pesquisa de pesquisadores nacionais e internacionais, como também resenhas de publicações recentes.

por Anders Noren

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