Fios do Tempo. As faces do cuidado entre éticas, práticas e fluxos globais – por Lucas Faial Soneghet

As práticas de cuidado são fundamentais para a produção e reprodução da vida humana e não humana; e a ética do cuidado é uma demanda urgente diante das crises de nosso tempo. É por isso que, como preparativo para o curso livre virtual “Teorias do cuidado: uma introdução”, trazemos hoje, no Fios do Tempo, um texto do brilhante jovem sociólogo Lucas Faial Soneghet que apresenta com clareza e competência o campo de estudos e pesquisas sobre o cuidado.

Neste breve panorama, podemos conhecer as distintas faces do cuidado, investigadas por autoras como Carol Gilligan, Eva Feder Kittay, Joan Tronto, Patrícia Paperman, Helena Hirata, Annemarie Mol, Patricia Hill Collins, Lélia Gonzalez, Barbara Ehrenreich e Elena Pulcini. Ao proporcionar uma síntese do estado da arte das teorias do cuidado, Lucas Faial nos fazer perceber o quanto no cuidado se entretece grande parte das tramas de nossas sociedades.

Desejo uma ótima leitura, ou escuta!

A. M.
Fios do Tempo, 13 de fevereiro de 2021




As faces do cuidado
entre éticas, práticas e fluxos globais

O cuidado e as reflexões por ele suscitadas têm ganhado cada vez mais espaço nas ciências humanas e sociais. Começando como um conjunto de reflexões em torno da moralidade e da ética em campos tão diversos como a filosofia moral, a ciência política e a psicologia, a noção de uma ética do cuidado formou-se durante as décadas de 1980 e 1990. Pensadoras como Carol Gilligan, Joan Tronto e Eva Federer Kittay, vinculadas às tradições de pensamento feministas, lançaram luz em dimensões da vida moral e ética outrora obscurecidas no pensamento ocidental.

A filosofia moral, desde Immanuel Kant até John Rawls, ocupava-se de princípios abstratos, buscava a universalidade, privilegiava a dimensão racional da experiência humana e valorizava a autonomia e a capacidade de autodeterminação dos indivíduos. Essa forma de pensar cristalizou-se em uma ética de justiça, que postulava a igualdade entre indivíduos independentes e racionalmente orientados regidos por princípios universais abstratos.

Em 1982, Carol Gilligan, filósofa e psicóloga estadunidense, publica “In a different voice” [Em uma voz diferente], um estudo sobre diferenças no desenvolvimento moral de meninos e meninas. Gilligan criticou o modelo de desenvolvimento cognitivo de Lawrence Kohlberg – uma teoria altamente influente em pensadores como John Rawls e Jürgen Habermas –, apontando alguns “gaps na teoria”. Ao observar e comparar as respostas de meninos e meninas diante de dilemas morais hipotéticos, Gilligan encontrou outra forma de ver o mundo nas vozes das meninas entrevistadas. Em vez de princípios abstratos, indivíduos separados, e soluções baseadas em equivalência e justiça, a “voz moral diferente” das jovens falava de situações particulares, relações entre pessoas e responsabilidades. Essa perspectiva moral privilegiava a interdependência, as relações e a afetividade, respondendo a dilemas morais pela chave da responsabilidade e da atenção em vez da igualdade e do julgamento.

Eva Feder Kittay (1999) dialoga com a filosofia política moderna através do conceito de dependência. A imagem do indivíduo independente, para quem a presença do outro é, na pior das hipóteses, sinônimo de violência e, na melhor das hipóteses, um obstáculo no caminho para fruição dos desejos, dá lugar à imagem do indivíduo vulnerável. A vulnerabilidade é o traço constitutivo e universal da humanidade e é nela que Kittay constrói sua “crítica da dependência”. As relações mais significativas da vida são marcadas pela dependência de um sujeito em relação ao outro, a exemplo da relação entre pai/mãe e filho/filha. Essa “relação de dependência” é assimétrica, compulsória e indefinida, isto é, não se baseia na igualdade substantiva entre indivíduos, não é escolhida racionalmente como um contrato e não tem seus termos decididos de antemão. A vulnerabilidade dos dependentes, aqueles que mais necessitam, é contrabalançada pela vulnerabilidade específica dos “trabalhadores da dependência”, aqueles que são responsáveis pelos mais frágeis e necessitados. Entretanto, a situação dos trabalhadores de dependência e dos dependentes não é totalmente particular. Todos somos dependentes em algum ponto de nossas vidas em graus diferentes, mas, é importante lembrar, nem todos se encontram na posição de cuidar de alguém.

Joan Tronto (1993) se propôs a repensar as “fronteiras morais” que constituem a vida social a partir da noção de cuidado. Afastando-se da ideia de que a ética de cuidado seria um tipo de “moralidade das mulheres” – a ideia de que a perspectiva moral das mulheres é essencialmente diferente da perspectiva moral masculina –, Tronto mapeia o longo processo social de divisão entre a esfera pública e a esfera privada. Segundo a autora, é por meio dessa divisão que tópicos considerados “femininos” como as emoções, os sentimentos morais, a fragilidade e a vulnerabilidade, foram relegados ao espaço doméstico e, assim, obscurecidos na vida moral e política. Com consequência, aqueles encarregados de cuidar, que também costumam ser os mais vulneráveis socialmente, têm seu trabalho de cuidado invisibilizado e desvalorizado. Adiciona-se a esse panorama a cultura ocidental que privilegia, pelo menos na esfera pública, valores como a autonomia, a independência, a universalidade e a racionalidade. Assim, Tronto argumentou que, embora seja verdade que todos precisemos de cuidado em algum momento de nossas vidas, nem todos são levados a se encarregar das responsabilidades de cuidar. Ao mesmo tempo, há aqueles que são recipientes de cuidados sem nem mesmo notarem, vivendo suas vidas com a “indiferença dos privilegiados”, que não se ocupam com o trabalho árduo de reprodução da vida em sociedade. Desse modo, reproduz-se um sistema hierárquico que relega o cuidado, sua ética, sua moral e suas práticas a um espaço de invisibilidade, inferioridade e naturalidade.

A invisibilidade, desvalorização e distribuição desigual do trabalho de cuidado são temas da reflexão de uma geração de antropólogas e sociólogas como Pascale Molinier (2012), Patricia Paperman (2010) e Helena Hirata (2016). No mesmo passo, autoras como Annemarie Mol (2008) olham para o cuidado enquanto prática, incluindo em sua teoria os animais, os objetos, os remédios e as tecnologias.

Annemarie Mol (2008) vê na “lógica do cuidado” uma nova forma de compor o bem, que não passa por princípios abstratos para chegar em situações particulares, mas que funciona no processo cotidiano, detalhado e sempre frágil de ajustar vários “bens” locais. Em outras palavras, o cuidado é um fazer compartilhado que visa um bem viver no mundo.

Molinier (2012), em seus estudos sobre o trabalho de cuidado na França, nos lembra que cuidar pode ser um “trabalho sujo” que nos coloca em contato com as dimensões da vida social comumente escondidas nos bastidores. Junto aos aspectos “sujos” e por vezes diminutos e intangíveis do trabalho de cuidado, a posição vulnerável das suas portadoras – majoritariamente mulheres racializadas e pobres – também dificulta qualquer reconhecimento efetivo dessa atividade na esfera pública. Criticando, reconsiderando e reconstruindo a ética do cuidado, as ciências sociais colocam em primeiro plano as ligações entre divisão sexual e racial do trabalho, capitalismo neoliberal, Estado de bem-estar social, instituições sociais de cuidado e as circulações globais, locais e intergeracionais do cuidado. Assim, ética, moral, tempo, trabalho e corpo se encontram imbricados no cuidado enquanto “teia complexa que sustenta a vida” (Tronto e Fischer, 1990, p. 40).

Atualmente, as reflexões sobre o cuidado apontam para novos caminhos. Partindo de uma crítica ao viés da ética de cuidado ocidental construída por Gilligan, Tronto, Kittay, Berenice Fischer, dentre outras, pensadoras do feminismo negro e das teorias pós-coloniais intervêm no debate. É suficiente dizer que o trabalho de cuidado é desigualmente distribuído e valorizado em termos de gênero? A divisão entre esfera pública e privada significa a mesma coisa para todos? Patricia Hill Collins (2000), de forma pioneira, apontou para a localidade e a interseccionalidade constitutivas do processo social de cuidar. Se cuidar é uma questão de sustentar, reproduzir e constituir corpos e sujeitos, é crucial considerar o efeito da raça e dos legados coloniais que, direta e indiretamente, hierarquizaram formas de vida. O ponto de vista que considera somente relações familiares em um país desenvolvido majoritariamente branco pode acabar negligenciando outras experiências: as trabalhadoras domésticas e babás imigrantes, as mães e avós de famílias negras, as trabalhadoras da saúde em profissões sub-remuneradas, como cuidadoras de idosos e técnicas de enfermagem, dentre outras.

Patricia Hill Collins coloca em questão a divisão entre esfera pública e privada, tão importante para as filósofas, sociólogas e antropólogas do cuidado. Essa divisão seria distinta para a população negra escravizada que sempre esteve alijada de qualquer possibilidade de participação significativa na esfera pública: havia a esfera pública branca de um lado, na qual a participação de homens e mulheres negras ocorria usualmente de forma negativa e sem qualquer agência, e a esfera privada ou a “sociedade civil negra” de outro lado, na qual assuntos privados e públicos se configuravam de outro modo. Além disso, a divisão entre trabalho e família, sobre a qual se sustentam a maioria das teorias de divisão do trabalho sexual e a ideologia de gênero ocidental, é diferente de acordo com raça e classe. Mulheres negras realizavam e realizam o trabalho de cuidado dentro e fora de casa. Essa “dupla jornada” foi indicada também por Lélia Gonzalez ([1981] 2018) no Brasil: além do trabalho de cuidado e o trabalho doméstico não pagos em sua casa, essas mulheres realizam as mesmas funções nas casas de seus empregadores brancos.

A ética do cuidado afirmou e recuperou a universalidade da interdependência, da vulnerabilidade e da fragilidade humana. Porém, no processo social de divisão, constituição e legitimação dos corpos humanos viventes, não somos todos iguais. Exige-se, por conseguinte, que pensemos uma economia política global do cuidado, nos moldes de Barbara Ehrenreich & Arlie Russell Hochschild (2004) e uma possível ética global do cuidado, com fez Elena Pulcini (2013).

Barbara Ehrenreich e Arlie Hochschild investigam os crescentes fluxos migratórios de mulheres do Sul global para o Norte e a realidade que os subjaz. Mulheres pobres de países de Terceiro Mundo – com serviços públicos de assistência destruídos, pobreza relativa e absoluta crescendo, e oportunidades de trabalho cada vez mais escassas – migram para países de Primeiro Mundo para trabalhar em “funções tradicionalmente femininas”, como trabalho doméstico e cuidado de crianças e idosos. Essas trabalhadoras do cuidado migrantes deixam seus filhos e parentes idosos aos cuidados de outras mulheres pobres, às vezes empregadas contratadas com os salários recebidos nos países ricos, às vezes sobrinhas, irmãs e avós.

Tudo isso se enquadra em uma “revolução mundial de gênero”, visto que a entrada em massa de mulheres de países ricos no mercado de trabalho é um dos fatores que impulsionam essa transferência global do cuidado. No entanto, as “cadeias globais de cuidado” que se formam não são resultado de uma confluência benéfica entre interesses: de um lado as mulheres do Primeiro Mundo que entram no mercado de trabalho e conquistam sua independência, do outro as mulheres migrantes que encontram melhores oportunidades de emprego e podem ajudar suas famílias. Para as novas ingressantes no mercado de trabalho tradicional, ainda permanecem os obstáculos de um modelo profissional baseado na figura do homem que pode negligenciar o tempo dedicado a tarefas domésticas e de cuidado. Para as migrantes, existe o sofrimento causado pela distância dos filhos e entes queridos, bem como a situação de vulnerabilidade no país de destino que as expõe a eventuais abusos e violências. Ao fim e ao cabo, o trabalho de cuidado continua invisível, desvalorizado, mal pago e relegado aos sujeitos mais vulneráveis, reproduzindo padrões de desigualdade globais e nacionais.

De seu lado, Elena Pulcini (2013) olha para os efeitos ambíguos da globalização para propor uma ética global que integra o cuidado e a justiça. Segundo a filósofa italiana, as condições objetivas engendradas pela globalização – crise do Estado-nação, avanço do capitalismo neoliberal destrutivo, falência do Estado de bem-estar, crise ambiental, conflitos armados civis e internacionais – colocam em xeque a sobrevivência da espécie humana. Diante dos sintomas da era global, Pulcini identifica uma “patologia do sentimento”. Não conseguimos mais sentir o medo que seria apropriado diante da possibilidade de destruição do mundo. O problema seria, então, ligar as condições objetivas da era global à vivência subjetiva, e isso só pode ser feito pela mediação emocional fomentada pela imaginação. Devemos nos tornar sensíveis ao sofrimento das gerações futuras, que está distante de nossa experiência imediata, e às diferenças incontornáveis e multiplicadas que encontramos em nossas vidas cotidianas. Para isso, é preciso imaginar que o futuro está aqui, reconhecer o outro em sua diferença, sem essencializá-lo ou assimilá-lo, e, assim, tornar-se responsável pelos outros e pelo mundo. Assim, para os enormes desafios da era global, é preciso complementar uma ética de justiça, que se ocupe da justa distribuição de recursos e da igual dignidade dos indivíduos, com uma ética de cuidado global, que olha para o outro em seus termos e busca reparar as relações entre pessoas e com o mundo.

Se olharmos com atenção para o nível microssocial, nas práticas e relações interpessoais, para o nível mesossocial, nas instituições e redes, ou para o nível macrossocial, nas estruturas e fluxos globais, encontraremos o cuidado entremeado nos fios da vida social. A esfera pública, com os problemas de direito, dever e universalidade, ou a esfera da produção, com a desigualdade, as mercadorias e o trabalho, não estão desvinculadas ou podem preterir de questões de cuidado. Todos, sejam “animais políticos” ou “proletários”, nasceram, cresceram, se alimentaram, adoeceram, sorriram, sofreram e viveram. Olhar para o cuidado é olhar para a dimensão da reprodução, da manutenção e do reparo da vida, incluindo os corpos, os objetos e o mundo. Todavia, entre o trabalho doméstico não pago realizado no lar e os tratamentos de alta complexidade pagos em hospitais, há descontinuidades e diferenças. Os encarregados de cuidar não são os mesmos e seu trabalho não é valorizado ou reconhecido da mesma forma.

É preciso, portanto, diferenciar, especificar e atentar-se para a concretude das situações, como ensina a ética de cuidado. Por outro lado, a ubiquidade das atividades de cuidado é inescapável. Desde o cuidado de um bebê até a preservação de ecossistemas em risco de destruição, o que está em jogo é manter em movimento a vida até seu inevitável fim. E é por causa da incontornável finitude das coisas que o cuidado e seu estudo são esforços urgentes e necessários, apesar de serem destinados a muitos fracassos. Se buscamos entender os desafios do Antropoceno ou da era global ou da modernidade tardia, precisamos tornar visível e significativo o exercício constante de tecer os laços que compõem a (boa) vida – e que fazem sua frágil existência perseverar no tempo.

Bibliografia

COLLINS, Patricia Hill. Black feminist thought: Knowledge, consciousness, and the politics of empowerment. Londres e Nova Iorque: Routledge, 2000.

EHRENREICH, Barbara; HOCHSCHILD, Arlie Russell (eds.) Global Woman: Nannies, maids, and sex workers in the new economy. Nova Iorque: Metropolitan/Owl Book, 2011.

GILLIGAN, Carol. In a Different Voice: Psychological theory and women’s development. Nova Iorque: Harvard University Press, 1982.

GONZALEZ, Lélia. A mulher negra na sociedade brasileira: Uma abordagem político-econômica [1981]. In: Primavera para as Rosas Negras. Rio de Janeiro: Diáspora Africana. p. 34-53, 2018.

HIRATA, Helena. O trabalho de cuidado. Sur: Revista internacional de direitos humanos, São Paulo, v. 13, p. 53-64, 2016.

KITTAY, Eva Federer. Love’s Labor: Essays on women, equality and dependency. Londres e Nova Iorque: Routledge, 1999.

MOL, Annemarie. The logic of care: Health and the problem of patient choice. Routledge, 2008.

MOLINIER, Pascale. Care as work: mutual vulnerabilities and discrete knowledge. In: Smith, Nicholas H.; Deranty, Jean-Philippe. New Philosophies of labour: Work and the social bond. Brill, p. 251-271, 2012.

PAPERMAN, Patricia. Éthique du care: Un changement de regard sur la vulnérabilité. Gérontologie et société, v. 33, n. 2, p. 51-61, 2010.

PULCINI, Elena. Care of the world: Fear, responsibility and justice in the global age. Holanda: Springer, 2012.

TRONTO, Joan C. Moral Boundaries: A political argument for an ethic of care. Nova Iorque e Londres: Routledge, 1993.

____.; FISCHER, Berenice. Toward a Feminist Theory of Caring. In: Abel, Emily K.; Nelson, Margaret K. (eds.) Circles of care: Work and identity in women’s lives. Nova Iorque: SUNY Press, p. 35-62, 1990.

É Doutorando em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA/IFCS/UFRJ) e membro do Núcleo de Pesquisa SOCIOFILO. Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Desenvolve pesquisa sobre das formas de modelagem do sujeito em contextos de cuidado de fim de vida. Atua como livre-pesquisador do Ateliê de Humanidades e é colaborador no Ateliê de Humanidades Editorial.



Cursos livres virtuais do Ateliê de Humanidades

Deixe uma resposta

por Anders Noren

Acima ↑

Descubra mais sobre Ateliê de Humanidades

Assine agora mesmo para continuar lendo e ter acesso ao arquivo completo.

Continue reading