Fios do Tempo. O que é a Teoria Crítica da Colonialidade (TCC): uma brevíssima apresentação – por Paulo Henrique Martins

Logo mais, às 14h (Brasília/Buenos Aires, GMT-3), teremos o segundo encontro de lançamento do livro Critical Theory of Coloniality, de Paulo Henrique Martins (Routledge, 2022). Tendo a mediação de André Magnelli e a presença de Paulo, será uma mesa com Adrián Scribano, Jaime Rios, Stéphane Dufoix e Breno Bringel (infelizmente, por razões de saúde, Nora Garita não poderá estar conosco hoje).

Neste contexto de lançamento, trazemos um pequeno texto em que Paulo Henrique nos apresenta em seis parágrafos o que é a Teoria Crítica da Colonialidade (TCC). Aproveite para conhecer o livro publicado pela Routledge (https://www.routledge.com/Critical-Theory-of-Coloniality/Martins/p/book/9781032118857) e também o livro em português pelo Ateliê de Humanidades (https://ateliedehumanidades.com/2020/02/28/teoria-critica-da-colonialidade-por-paulo-henrique-martins-livro/).

A. M.
Fios do Tempo, 10 de maio de 2022



O que é a Teoria Crítica da Colonialidade (TCC):
uma brevíssima apresentação

Paulo Henrique Martins

1. A Teoria Crítica da Colonialidade (TCC) não deve ser interpretada apenas como um projeto intelectual pessoal embora também o seja. Reconheço que minha experiência como pesquisador vivendo num mundo de importantes mudanças em todos os níveis institucionais me ajudou na elaboração desta crítica teórica. Faço parte de uma geração de pesquisadores que tem convivido, nos último tempos, com experiências da ditadura e da democracia, de riqueza e de pobreza, de esperança e de desencanto. Assim, este livro é o produto de reflexões produzidas a partir de vivências e memórias pessoais e coletivas produzidas nas fronteiras pós-coloniais ao longo dos anos, em diferentes momentos de minha vida como pesquisador. Tempos complexos convidam a se repensar os sentidos e usos da sociologia. Me vêm, de imediato, à memória as desilusões de Karl Mannheim com o positivismo e com o enfraquecimento das teorias racionalistas naqueles agitados anos da primeira grande guerra. Sabemos que aquela experiência de incertezas o levou a rever seu entendimento sociológico, a repensar as condições de produção do conhecimento por parte de indivíduos orientados por diferentes motivações que interferiam nas suas formas de agir. Guardando as devidas diferenças diria que é este horizonte de incertezas que está levando a forte revisão de paradigmas e sobretudo ao entendimento da modernidade como um fenômeno ambivalente atravessado permanentemente pela guerra e pela paz, como diria Marcel Mauss. Para quem vive nas fronteiras a modernidade aparece claramente como um fenômeno de duas faces – solar e lunar, cosmopolita e colonial.

2. Os horizontes do livro confluem para um amplo movimento intelectual com diferentes variações disciplinares, temáticas e teóricas no Norte-Global e no Sul-Global. Trata-se de uma ampla reação anti-conformista de intelectuais que buscam compreender as condições de passagem de uma modernidade distópica para uma nova utopia civilizatória que deve incorporar necessariamente avanços tecnológicos na organização da vida social que eram inimagináveis até poucas décadas atrás. O fato é que as novas tecnologias interferem nas formas de dominação e na concepção de libertação por caminhos inéditos. Este entendimento intelectual é a base de uma crítica teórica antiutilitarista geral que está fortemente ancorada nas tensões entre modernidade e colonialidade e nas denúncias da violência do capitalismo neoliberal nas fronteiras internas e externas do sistema-mundo. Portanto, superar o contexto distópico requer uma crítica cosmopolita que aponte para novas formas de libertação que incluem nações, separadamente, mas sobretudo o sistema planetário como uma totalidade ecológica. No meu livro, esta questão dos horizontes libertários está na última parte que trata das utopias democráticas, quando trago os casos do convivialismo e da utopia de Bien Vivir.

3. O debate sobre novas utopias requer a superação das perspectivas provincianas e etnocêntricas (incluindo a eurocêntrica) que tradicionalmente têm limitado as possibilidades da crítica filosófica e sociológica aos horizontes imaginários de diferentes modelos culturais. Tenho aprendido que superar o provincialismo intelectual e o nacionalismo metodológico são exigências ontológicas para a emergência de uma crítica teórica pluriversal e transnacional que aponte para outras formas de bem viver. Tenho aprendido que a renovação da crítica é necessária para avançar na desconstrução de uma dominação neoliberal que tem a forma de uma hidra com várias cabeças que se adaptam aos imaginários do poder no centro e na periferia do sistema-mundo. Tenho aprendido que o sucesso da crítica exige considerar a variedade de modos de organização da dominação, por um lado, e, por outro, as diversas formas históricas de lutas individuais e coletivas pela consciência e liberdade, o que é particularmente evidente em antigas áreas de colonização na América Latina, África e Ásia.

4. No meu imaginário de modernização periférica, a Teoria Crítica da Colonialidade (TCC) aparece como uma evidência topográfica gerada pela globalização cultural e científica nos campos do conhecimento nacional e transnacional. As mutações da linguagem acadêmica nos últimos anos ajuda a revelar que este novo sistema teórico emerge com a aceleração da produção crítica neste século XXI, refletindo as inovações tecnológicas e também um “novo princípio esperança”. O incremento de encontros acadêmicos de pesquisadores de diferentes lugares e as possibilidades reais de realização de eventos como este aqui – que seriam vistos como ficção até pouco tempo atrás – testemunham os novos desafios de um pensamento crítico ampliado. Isto tem permitido um maior intercâmbio acadêmico e favorecido a profissionalização das ciências sociais e da sociologia nos sistemas periféricos. Tais mudanças são acompanhadas pelo surgimento de gerações de intelectuais que se dedicam a aprofundar a compreensão das particularidades do capitalismo colonial em nível planetário, favorecendo uma crítica geral ao neoliberalismo. Assim, a TCC constitui um arquipélago de campos intelectuais que buscam uma linguagem cosmopolita compartilhada, mantendo suas especificidades históricas e culturais.

5. No meu entendimento, enfim, a TCC é o resultado de um processo complexo de renovação da crítica contra a modernidade ocidental que surge inicialmente na Europa, particularmente na Alemanha, e depois se espalha pela França e outros países, manifestando importante reação frente ao declínio da racionalidade instrumental. Entretanto, nas sociedades pós-coloniais, a crítica teve que considerar o fato de que os conflitos entre capital e trabalho (que marcam fortemente o desenvolvimento da teoria social no centro) deveriam ser repensados a partir de outros fatores. Entre estes, devemos considerar as tensões culturais e históricas como aquelas étnico-raciais e aquelas outras tensões ligadas ao poder oligárquico mercantil e proprietário. A TCC constitui então um modo de se entender a partir da fronteira a emergência de uma sociologia geral aberta a diversas representações e experiências mundiais, regionais, nacionais e locais e que se opõe à excessiva especialização disciplinar. Observamos a nível global o surgimento de uma nova onda intelectual e humanista que se manifesta por linguagens diferentes – conectadas mas diferenciadas – tanto no campo europeu como naquele dos antigos países colonizados. Assim, se a crítica ao capitalismo foi organizada na Europa a partir das reações contra o declínio do racionalismo, ela foi intensamente experimentada na periferia como um sentimento anti-colonial movendo a política e as esferas sociais.

6. A amplitude territorial e disciplinar da teoria crítica neste século XXI é justificada, enfim, pelo fato de ser um tipo de reflexão que não pode ser reduzida ao campo epistemológico e acadêmico, devendo incluir os movimentos sociais na organização de um saber reflexivo ampliado. A extrapolação da crítica para as esferas cívicas e políticas é fundamental para proteger as memórias democráticas e evitar que as tentações autoritárias e autocráticas se tornem obstáculos na busca de emancipação e de libertação do ser humano como totalidade criativa e solidária. Portanto, a expansão da teoria crítica não pode ser limitada a um processo funcional e mecânico dependente de uma certa progressão científica contínua. Ela deve expressar, ao contrário, uma variedade de ideias e afetos que surgem por territórios descontínuos e como reação à colonização dentro e fora da Europa. O livro TCC revela, assim, como pude apreender a partir das fronteiras pós-coloniais que conheci, estes diversos choques culturais que atravessam a organização do poder e a luta por emancipação entre o tradicional e o moderno, entre o pós-moderno e o anti-moderno.

PAULO HENRIQUE MARTINS é sociólogo, professor titular de Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Foi presidente da Associação Latino-Americana de Sociologia (ALAS) e vice-presidente da Associação Mouvement Anti-utilitariste en Sciences Sociales (MAUSS). É membro do conselho editorial da Revue du MAUSS e co-fundador e co-editor da Revista de Estudos AntiUtilitaristas e PósColoniais (Realis). Publicou pelo Ateliê de Humanidades Editorial: Itinerários do dom: teoria e sentimento (2019) e Teoria crítica da colonialidade (2019). Esse último livro foi traduzido para o inglês e publicado em nova edição: Critical Theory of Coloniality (Routledge, 2022).


Catálogo do Ateliê de Humanidades Editorial



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