Fios do Tempo. Ángel Rama, um intelectual latino-americanista – por Facundo Gómez

Em 03 de março, fizemos uma conversa virtual no Ateliê de Humanidades sobre o crítico, editor e mediador cultural Ángel Rama, realizada em torno do livro “América latina: um povo em marcha”, publicado na Biblioteca Básica Latino-Americana (BBLA), uma realização da Fundação Darcy Ribeiro. Nesta conversa, tivemos a presença do organizador e apresentador do volume, Facundo Gómez (Universidad de Buenos Aires, Argentina) em diálogo com Haydée Ribeiro (professora da UFMG), tendo a mediação de André Magnelli (Ateliê de Humanidades e um dos editores da BBLA).

Essa conversa fez parte de um conjunto de atividades que visam gerar conhecimento, debate e leitura dos livros da BBLA. Com este intuito, publicamos agora no Fios do Tempo o prólogo de Facundo Gómez (traduzido por André Magnelli), onde encontramos uma competente exposição do pensamento de Ángel Rama e uma cuidadosa apresentação dos ensaios inéditos publicados na BBLA.

Desejo, como sempre, uma excelente leitura!

A. M.
Fios do Tempo, 23 de março de 2022



Ángel Rama,
um intelectual latino-americanista[1]

Facundo Gómez

Cada vez que alguém desacredita nossa América – seja por desdém por seus modos próprios e originais quando comparados com outros estrangeiros aos quais se olha, se admira, se reverencia com olhos coloniais; seja por desespero de não atingir logo uma cultura poderosa e soberana que não deve nada a ninguém e, no extravio de seu orgulho, alimenta-se apenas de si mesma –, cada vez que alguém cai em uma dessas atitudes, que são como que os lados opostos da mesma moeda falsa, percebo uma América Latina incessante, subterrânea e nutritiva que sustenta a todos.

Ángel Rama, “Incessante América Latina”.

As palavras do escritor, crítico e intelectual uruguaio que abrem este volume datam de 1972. Na época, Ángel Rama gravou sua voz em uma coleção de discos da Universidade Autônoma do México.[2] Seu discurso reivindica ali a originalidade de uma América Latina “que não cessa” diante de um panorama difícil para a esquerda cultural do continente, que começa a desacreditar das promessas de revolução e desenvolvimento da década passada (Rama, 1972, p. 23). Apesar das decepções e perdas, sua confiança em nossa cultura perdura e consolida um anseio de integração que caracteriza toda a sua biografia intelectual.

Nos anos posteriores a 1959, a imagem da América Latina tornou-se para Ángel Rama mais do que um objeto de estudo. A partir daí, a ideia tornou-se exploração, questionamento, militância, comunidade, conflito, agenda, identidade. Utopia. A enumeração não implica evolução linear, mas sim uma sobreposição heterodoxa que foi a cifra de sua trajetória: a América Latina como um anseio incessante, como uma tarefa indeclinável. Porque, deve ser entendido, o uruguaio era um intelectual completo; um sujeito dedicado às múltiplas facetas da atividade cultural que soube unir suas diversas práticas em torno de um mesmo objetivo, tão esquivo quanto decisivo: colaborar com a unidade e a emancipação da cultura latino-americana através do conhecimento do nosso passado comum e da postulação de um futuro soberano para todos.

Ángel Rama é uma figura chave na crítica literária latino-americana e um nome importante na história intelectual do subcontinente na segunda metade do século XX. Bibliografia obrigatória no estudo da literatura regional, associado a publicações emblemáticas dos anos 1960, como Marcha e Casa de las Américas, envolvido no surgimento do “boom” literário, chefe da editora Arca e diretor literário da Biblioteca Ayacucho, Rama foi descrito por seu colega Noé Jitrik como “um dos sujeitos mais renascentistas que já conheci” (1985, p. 106), a fim de se referir ao amplo leque de atividades que realizou ao mesmo tempo com fecundidade e paixão. Crítico literário em primeiro lugar, mas também professor, tradutor, conferencista, ator e dramaturgo, editor, jornalista, gestor cultural, ensaísta, ativista, o uruguaio combina sua dedicação à literatura com uma notável capacidade para empreender projetos intelectuais e construir redes de especialistas para levá-los adiante.

Em tempos de pandemias globais, crises migratórias e ambientais, pensamento fraco, multilateralismo e revolução digital, algumas contribuições do pensamento e da práxis de Rama podem ser associadas sem mais delongas a um discurso moderno, enferrujado e pretérito. As mudanças na forma de pensar a América Latina, a literatura, a identidade, a nacionalidade e a modernidade introduzem questões óbvias na revisão do seu legado. No entanto, nos últimos anos, tem havido uma acumulação de pesquisas sobre o seu trabalho que tem conseguido repensar as suas ideias e empreendimentos a partir de diferentes perspectivas contemporâneas.[3] Ao mesmo tempo, a descoberta e o acesso a coleções bibliográficas pouco exploradas permitiu a pesquisa de arquivos, alguns dos quais levaram à publicação de reveladoras correspondências pessoais (Rama, 2016, 2017), compilações de artigos dispersos em revistas e periódicos acadêmicos (2015, 2018) e mesmo a reimpressão crítica de alguns dos seus textos clássicos, como o recente aparecimento de Las máscaras democráticas del modernismo, editado sob os cuidados de Hugo Herrera Pardo (2021). Claramente, o seu trabalho continua a levantar questões e discussões com base na força que irradia de uma rara articulação entre o sonho utópico e a sua concretização problemática.

Portanto, diante das perspectivas catastrofistas que, cínica ou nostalgicamente, fazem desacreditar hoje nas mudanças, no comum e no coletivo – uma postura recorrente na região, como o crítico evidenciou entre seus colegas por volta de 1972 –, recuperar o trabalho de Rama hoje nos leva a desmantelar as imposições, os fatalismos e as claudicações da cena contemporânea, mais propensa a desconstruções e impugnações totais do que à arriscada aventura de construir alternativas ou forjar novos espaços.

Da mesma forma, revisitar seus ensaios motiva uma revisão crítica de suas ideias, de suas hipóteses e seus projetos, a fim de identificar operações de relevo na cultura latino-americana, mas também problemas e dilemas de sua visão moderna, literária e anti-imperialista da região, atravessada por certos discursos e certezas do tempo que já não são mais – não podem ser – os nossos. Finalmente, a leitura de seus textos funciona sempre como um convite para discutir – novamente, incessantemente – como nós, na América Latina, podemos construir iniciativas, estudos e imaginários que colaborem com sociedades mais justas, culturas mais respeitosas e diálogos mais estreitos entre as comunidades.

A seleção dos textos apresentados neste volume, lidos e analisados no decorrer da minha pesquisa de doutorado[4], pretende ser uma contribuição tanto para os estudos atuais da América Latina como para a revisão contemporânea da obra de Rama. Na sua maioria, são trabalhos inéditos ou de difícil acesso que ilustram a forma como o crítico assumiu a agenda latino-americana como a orientação geral da sua práxis. Essas palestras, esses prefácios e esses ensaios iluminam as mudanças, reformulações e tensões que surgem em seu discurso em torno da ideia de América Latina, de integração regional, de literatura, de crítica literária e do papel dos intelectuais na sociedade. Tais deslocamentos estão fortemente condicionados pelas numerosas experiências históricas, pelas vicissitudes biográficas e pelos fenômenos culturais que Ángel Rama sofreu durante as décadas aceleradas e violentas que se seguiram ao triunfo da Revolução Cubana no nosso subcontinente. Ao longo desta jornada, sua dedicação à cultura latino-americana se consolida e se multiplica nas numerosas intervenções, iniciativas e reflexões que esta compilação busca recuperar, examinar e socializar.


Ángel Rama, um intelectual situado

Como aponta Liliana Weinberg, a projeção continental de Ángel Rama nos permite pensar nele como um paradigma do intelectual latino-americano de esquerda dos anos 1960 e 1970 (2005, p. 390). Junto com colegas e amigos como Darcy Ribeiro e Roberto Fernández Retamar, suas vidas, seus textos e suas intervenções ilustram grande parte dos desafios políticos e das experiências históricas daquele grupo de intelectuais, que tiveram que trabalhar entre a esperança revolucionária que Cuba irradiava em todo o subcontinente e as amargas experiências políticas dos contextos nacionais, pródigos em censura, perseguição e exílio.

A particularidade da figura de Rama está dada pela sua plena dedicação à literatura latino-americana. Gonzalo Aguilar tem razão em chamá-lo de “intelectual da literatura” (2013, p. 686), porque, ao longo dos anos, o uruguaio desenvolveu, de fato, tanto um perfil público quanto uma imagem da América Latina baseada em sua leitura, análise e difusão da criação literária regional. A sua atenta exploração dos textos mais relevantes da narrativa contemporânea, e depois o seu foco em fenômenos que ultrapassam as fronteiras nacionais – modernismo, literatura gauchesca, indigenismo –, permitem-lhe pensar a nossa cultura e nossa sociedade a partir dos sentidos simbólicos que emergem do jogo entre as obras e os seus contextos de produção e recepção. Suas palavras operam ao mesmo tempo diante de uma variedade de públicos: consumidores de jornais, militantes políticos, estudantes universitários, leitores eruditos e também aqueles interessados em mera novidade cultural.

Outro elemento que destaca seu legado é o colossal trabalho que realizou para conectar seus pares, que reuniu em reuniões de trabalho, projetos editoriais, diálogos epistolares e eventos acadêmicos. Sua capacidade de construir diálogos e pontes entre os homens de letras da região foi tão eficaz quanto tenaz, ao ponto de Claudia Gilman ter vindo a designá-lo como “o grande tecelão da rede latino-americana de intelectuais” da época (2011, p. 82). E, sem dúvida, um aspecto de sua biografia que transcende seu trabalho como crítico e gestor cultural é sua concepção da América Latina como um projeto – social, cultural, intelectual – em construção, que exige um estudo erudito, mas também uma convicção integradora. Diante de tal fórmula, sua práxis manteve uma coerência tão particular que Ana Pizarro o incluiu em uma “linhagem de rigorosos sonhadores” (1985, p. 10), também formada por figuras como Alfonso Reyes e Pedro Henríquez Ureña, para colocá-lo em uma tradição americanista que se destaca por seus notáveis esforços e realizações culturais.

Como se pode ler na indispensável Cronologia e Bibliografia de Ángel Rama de Álvaro Barros-Lemez e Carina Blixen (1986), o crítico nasceu em Montevidéu em 1926, em um lar de imigrantes espanhóis. Fez parte da “Geração de 45”, o grupo de intelectuais uruguaios que, em meados do século, se propôs a desprovincializar a cultura nacional e importar urgentemente os valores estéticos da modernidade ocidental. Junto com colegas como Emir Rodríguez Monegal, Mario Benedetti, Idea Vilariño e Ida Vitale, Ángel Rama participou plenamente das atividades, das polêmicas e dos projetos realizados por seus colegas e tornou-se uma das figuras de destaque da geração devido à sua capacidade de trabalho e à diversidade de suas intervenções, que incluíram tradução, edição, redação literária, ensino e crítica. “Suspeita-se que ele nunca dorme”, lê-se numa nota biográfica da época, que continua a ser o seu epíteto. Seus estudos literários filológicos, seu interesse pelo significado da literatura no mundo, sua prática de atuação e leituras existencialistas constituem uma etapa inicial de sua práxis, na qual ele se dedica à literatura francesa e espanhola e se junta ao staff de revistas juvenis e literárias, como Clinamen e Cuadernos de la Licorne (Gómez, 2017).

Se prestarmos atenção às formas como Rama construiu sua práxis latino-americana, é possível detectar pelo menos quatro etapas, marcadas por deslocamentos geográficos, por conjunturas históricas e pelos diferentes tipos de atividade intelectual e de gestão cultural conduzidos por ele. Através desses períodos, podemos pensar e contextualizar suas posições sobre a literatura, a cultura e a sociedade latino-americana.

Um capítulo chave em sua biografia intelectual começou em 1959: poucos meses após o triunfo da Revolução Cubana, em março de 1959, Rama assumiu a redação das páginas literárias de Marcha, o semanário esquerdista de Montevidéu, o mais importante fórum intelectual do país. A partir daí, o crítico percebeu a mudança de época e deu uma direção sem precedentes ao seu projeto intelectual, que começou a se concentrar na América Latina como espaço de criação literária, transformação cultural e militância política. É assim que começa a etapa inicial da agenda latino-americanista de Rama, que durou até 1965 e se desenvolveu principalmente em Montevidéu. Através da revista Marcha, o crítico construiu um discurso sobre a literatura latino-americana que enfatizou o romance como gênero e contribuiu substancialmente para a circulação e o estudo dos diferentes autores do subcontinente, ao mesmo tempo em que interveio nas discussões políticas e culturais marcadas pela Revolução Cubana – cujas realizações e planos propagandeou em aliança com a Casa de las Américas –, pela modernização cultural do segundo pós-guerra e pelo fenômeno editorial do “boom” literário. Ao mesmo tempo, Rama trabalhou como professor do ensino secundário, participou de iniciativas institucionais e fundou e dirigiu o Editorial Arca, a marca que usou para divulgar autores clássicos e jovens escritores nacionais e latino-americanos.

Uma segunda etapa de sua trajetória como latino-americanista teve lugar entre 1966 e 1972. Durante estes anos, a sua participação no semanário foi reduzida ao ponto de abandonar a redação e colaborar com artigos esporádicos, enquanto outras atividades culturais exigiam a sua atenção. Trata-se de um período crucial em sua práxis, embora a bibliografia especializada não tenha prestado muita atenção a ele. Várias mudanças, vários deslocamentos e inflexões ocorrem em seu pensamento e em seus trabalhos. Ele mudou então seu modo de compreender a cultura latino-americana, de se aproximar dos objetos de estudo e de assumir suas posições políticas. Neste último sentido, suas convicções sobre a autonomia do intelectual o obrigaram a se distanciar da política cultural cubana após a eclosão do caso Padilla. Foi também entre 1966 e 1972 que Rama desenvolveu e publicou seus primeiros ensaios sobre algumas de suas preocupações literárias centrais: o modernismo, a poesia gaúcha e a história literária latino-americana. Ele também se envolveu em dois projetos editoriais paralelos em Montevidéu: a publicação oficial do Departamento de Literatura Latino-americana da Universidade da República e a Enciclopédia Uruguaya, uma coleção de grande circulação. Ao mesmo tempo, suas viagens pela América Latina se intensificaram, incluindo palestras, cursos e seminários em países do subcontinente, além dos destinos mais frequentados até então – o Cone Sul e Havana. Além de suas estadias na Colômbia e no México, também trabalhou como professor universitário em Porto Rico e, finalmente, chegou à Venezuela em 1972, ano fundamental para acompanhar o desenvolvimento de seu discurso crítico, já que foi então que participou de um debate inesquecível com Mario Vargas Llosa sobre o romance e denunciou surpreendentemente o caráter alienante do “boom” literário, acendendo uma briga intelectual de grande impacto, que elevou a projeção de sua figura para além do continente.

Uma terceira etapa de sua biografia pode ser reconstruída a partir de 1973, quando o golpe de Estado uruguaio o impediu de retornar ao seu país natal, forçando-o ao exílio. A primeira paragem na sua viagem foi a cidade de Caracas, onde trabalhou como professor universitário e escreveu um número considerável de artigos nos meios de comunicação de massas e nas revistas acadêmicas. Sua perspectiva crítica da cultura venezuelana e sua atitude combativa o levou a participar de inúmeros debates, que terminaram em uma infeliz discussão com o sociólogo Oswaldo Barreto, com consequências dolorosas para o uruguaio. Foi no exílio venezuelano, no entanto, que Rama fundou e dirigiu a Biblioteca Ayacucho, uma das mais importantes conquistas da sua práxis intelectual. Além de trabalhar no empreendimento editorial, Rama também desenvolveu uma reflexão mais teórica sobre a literatura latino-americana, que o levou a cunhar termos como “transculturação narrativa”, “espessura literária”, “área cultural” e “romances de ditadores”. Como professor da Universidad Central de Venezuela, fundou a revista de teoria e crítica Escritura, onde publicou suas pesquisas e colaborou na renovação do discurso crítico latino-americano. Tal como o anterior, este período é um dos mais produtivos da sua biografia, embora seja ainda muito pouco estudado. O processo chegou ao fim por volta de 1978, quando Rama fez seus primeiros contatos com a academia americana e começou a fazer os preparativos para sua partida de Caracas rumo a Washington.

A última etapa de sua trajetória foi sua mudança para os Estados Unidos, em 1979. Rama realizou trabalhos docentes e acadêmicos nas universidades de Maryland e Princeton, enquanto organizava encontros de especialistas, dava palestras e seminários e escrevia obras clássicas, como A cidade letrada. Trata-se de um punhado de anos marcados por balanços históricos e visões retrospectivas que são traçados numa série de artigos, apresentações de trabalho e prefácios sobre o tema do exílio, as crises recorrentes na América Latina, as ditaduras e a democracia. O crítico aproveita os tesouros bibliográficos dos arquivos norte-americanos para revisitar alguns de seus objetos de estudo favoritos desde os anos 60 – o modernismo, o romance –, mas também explora temas pouco frequentados antes, como a literatura colonial novo-hispânica, as literaturas indígenas ou o ensaio latino-americano do século XIX.

Em 1982, o Serviço de Imigração dos EUA recusou-se a renovar o seu visto sob a insólita acusação de “subversão comunista”. Embora tenha sido organizada uma campanha continental para denunciar o ultraje, Rama não conseguiu quebrar a vontade da política macartista dos EUA e foi forçado a deixar o país. Apoiado pelas universidades onde trabalhava, dirigiu-se para o seu destino final: Paris, onde prosseguiu os seus estudos enquanto assistia a conferências e reuniões de escritores. A mudança para a França significou para Rama o início de um novo projeto de pesquisa sobre a cultura latino-americana do século XIX e também a oportunidade de continuar a partir daí sua participação em uma iniciativa de Ana Pizarro: a elaboração de uma nova história da literatura latino-americana. Em novembro de 1983, a caminho de um congresso na Colômbia, o avião em que viajava sofreu um acidente logo após decolar do aeroporto de Madri. Ángel Rama morreu no acidente juntamente com sua esposa, a escritora e crítica de arte Marta Traba, e o resto da tripulação. Sua morte gera um estremecimento no mundo intelectual latino-americano, que lamenta sua perda e reconhece com gratidão seus ensinamentos.[5]

Podemos pensar que desde então uma nova etapa de recepção se abriu para suas obras: a instância de recuperação e a releitura de seus textos, intervenções e projetos. Um período de plena produtividade crítica, com ritmos e modulações diferentes, elaborados por diferentes autores e atravessado por trabalhos de arquivo, pela revisão teórica à luz de novos paradigmas, pelo exame de reconhecimentos de logros e limitações e pela formulação de novas questões.[6]O presente volume faz parte desse desafio coletivo, sustentado pelo diálogo aberto entre os sonhos latino-americanistas dos anos 1960 e 1970 e o presente sempre em evolução, a partir do qual continuamos lendo e debatendo com Rama e suas ideias sobre nossa cultura e nossa sociedade.

Uma antologia de textos latino-americanistas

Os trabalhos compilados ilustram de múltiplas formas o tipo de militância cultural desenvolvida por Ángel Rama. Os gêneros discursivos envolvidos falam claramente de um intelectual que atua em diferentes esferas e campos de intervenção, unindo públicos e construindo redes. Passando pelo índice do livro, o leitor pode encontrar uma palestra sobre a originalidade latino-americana proferida num mítico encontro de homens de letras na Europa; um artigo sobre a extensão universitária para um Congresso mexicano; um artigo sobre a experiência editorial da Biblioteca Ayacucho; e um prólogo a uma antologia sobre o ensaio latino-americano publicada na Alemanha. Ao mesmo tempo, a variedade dos discursos destaca o caráter nômade de sua prosa, a reformulação de ideias e conceitos e os deslocamentos, viagens e movimentos contínuos que marcam a concepção de um latino-americanismo construído além de qualquer fronteira nacional estreita.

Todos os textos são cruzados pelos dois eixos que formam a matriz do seu pensamento e de sua práxis: a unidade da América Latina e a função dos intelectuais na sociedade. Como mencionado acima, a partir de 1959, Rama dedicou-se progressivamente a estabelecer a ideia da América Latina como uma unidade de sentido com traços de identidade próprios, com problemas históricos em comum e com um matiz utópico determinante. A tentativa é múltipla e não apenas conceitual. Enquanto aprofunda seu conhecimento do subcontinente, refina suas observações e incorpora outras perspectivas, o crítico realiza tarefas de natureza mais pragmática: mantém uma intercomunicação fluida com os pares da região, participa de encontros culturais que fortalecem laços, intervém nos grandes debates públicos da época e dirige empreendimentos editoriais concebidos como instrumentos de aproximação de autores, textos e públicos do subcontinente.

Como se pode ver, na reflexão acadêmica e nas diligências apontadas em toda a América Latina, destaca-se a interferência decisiva das elites culturais na sua unidade e modernização, de modo que é evidente que a figura do intelectual se eleva como segundo eixo orientador da práxis de Rama. Esta concepção pode ser rastreada desde a sua entrada na cena cultural de Montevidéu, na qual grande parte dos seus textos e atividades foram dedicados a investigar e estabelecer quais são as responsabilidades e as tarefas que a sociedade confia ao intelectual e como ele deve situar-se em relação à cultura nacional e à situação histórica. A influência de seus professores intelectuais, como Carlos Quijano, José Bergamín e seu irmão Carlos, e suas referências literárias, José Martí, Albert Camus e Jean-Paul Sartre, condicionam suas primeiras definições sobre este tema, que logo passam por reviravoltas como resultado de sucessivas leituras teóricas, fenômenos históricos, projetos culturais e vicissitudes biográficas que têm impacto em sua obra.

Uma comarca do Terceiro Mundo: América Latina a partir de um impulso totalizante e cosmopolita

Sentido e estrutura de uma contribuição literária original por uma região do terceiro mundo: América Latina[7] é o título completo da palestra dada por Ángel Rama em 1965 no Colóquio de Gênova, evento organizado pelo Instituto Columbianum, entidade cultural italiana dirigida pelo jesuíta Angelo Arpa e interessada em estabelecer vínculos com a América Latina e os países do Terceiro Mundo. Como Claudia Gilman (2012, p. 112) e Germán Alburquerque (2000) salientam, o evento é um dos marcos da história intelectual dos anos 1960.[8] Reuniu-se ali uma vasta gama de escritores e figuras de destaque da cultura latino-americana, num arco ideológico muito amplo que seria incomum alguns anos depois. Diante deste público internacional, um espaço cultural europeu habitado temporariamente por intelectuais latino-americanos, Rama apresentou um trabalho sobre a América Latina que expressava as apostas e tensões desde a perspectiva comprometida e montevideana daqueles anos em torno da cultura do continente.

Seu desafio é estabelecer a originalidade da criação literária latino-americana. O uruguaio apresenta três pontos de partida que revelam até que ponto sua interpretação é marcada por certezas derivadas da tradição americanista mais clássica, endividada com o pensamento dos líderes da emancipação e enriquecida pelas posições de intelectuais como Martí, Rodó, Ugarte e as reelaborações de 1910 e 1920. Uma dessas questões – “super-entendidas”, segundo o texto – é a “unidade subjacente da América Latina”, uma afirmação auto-suficiente que valoriza os elementos culturais compartilhados – mas não definidos –, todavia, faz isso “um pouco à imagem do que acontece nos países europeus com suas formulações regionais ou dialetais” (Rama, “Sentido e estrutura de uma contribuição…”, neste livro, p. 55). Em outras palavras, a unidade latino-americana é forjada tomando a Europa como modelo, com todos os conflitos que esta operação supõe: por um lado, suscitando como verdade a existência de uma certa unidade cultural europeia, que ignora e omite as divergências entre nações, regiões e comunidades; por outro, silenciando a própria heterogeneidade sob um molde civilizacional que é diferente sob todos os pontos de vista.

A outra questão apontada pelo autor é a existência de uma originalidade que é percebida como ligada à mesma, única e totalizante “modulação orgânica”, uma expressão opaca que tende a celebrar uma certa articulação na produção literária que não é submetida a uma análise mais aprofundada e que é replicada em fórmulas como “formas coerentemente desenvolvidas” ou “fraseado histórico”. Nenhuma é explicada, detalhada ou exemplificada. Finalmente, Rama postula sua concepção estrutural da literatura, que pensa as letras a partir da noção de “sistema literário”, ideia que o crítico uruguaio tira de Formação da literatura brasileira: momentos decisivos (1959), o livro clássico de Antonio Candido, para retrabalhá-la como uma noção que se expande para a esfera latino-americana, que a desprende da questão nacional presente no argumento original do brasileiro a fim de articulá-la num espaço supranacional que exige ajustes e revisões, ausente nesta obra.

O documento explica a criação latino-americana com base na existência de duas culturas, uma cosmopolita e outra tradicional, que há séculos se confrontam, se entrelaçam e se fertilizam mutuamente. As obras literárias mais significativas da região foram construídas no seio desses encontros. Nas últimas décadas, o desenvolvimento da sociedade e a aceleração da história impuseram uma tendência de separação e desconhecimento com graves consequências. Embora não se explicite – mal se faz referência ao seu pensamento –, a reflexão está estruturada em torno dos argumentos do sociólogo Karl Mannheim sobre a crise da civilização europeia dos anos 30. Ángel Rama “latino-americaniza” a abordagem do pensador húngaro-alemão para aplicá-la à nossa literatura e cultura sem mediação ou quaisquer outras precauções conceituais. A operação lhe permite ter uma visão global da produção que organiza produtos, autores e fenômenos díspares em torno das duas tendências que constituiriam a totalidade da América Latina.

Embora o foco esteja na interação entre as duas culturas, é claro que o sistema se torna dicotômico. Rama opõe a cultura cosmopolita (modernizada, atenta à novidade metropolitana, baseada nas grandes cidades) à cultura tradicional (popular, ligada ao meio rural e às comunidades do interior da região). O crítico não permanece neutro em relação às possibilidades estéticas de cada pólo, e pondera a força cosmopolita como a única capaz de desenvolver uma cultura de qualidade para a América Latina. Num espírito modernizador, ele assinala que as obras tradicionais estão ancoradas num conservadorismo irreversível, ao passo que os textos dos escritores das grandes cidades são celebrados como criações literárias de vanguarda. Esta valorização, desatenta à riqueza das comunidades e expressões que ultrapassam a norma metropolitana, é radicalmente revista em obras posteriores, como nos ensaios sobre a transculturação narrativa. No entanto, o uso dos pólos como elementos ordenadores da cultura latino-americana subsiste em seu pensamento e aparece como chave de leitura mesmo em textos dos anos 80, como “A tecnificação narrativa” (2008).

Diante do conflito entre culturas, Rama aposta nas possibilidades da cultura urbana latino-americana, num contexto de revolução iminente que amplia o público e aproveita as contribuições dos setores populares para produzir obras literárias originais que competem em qualidade e ousadia com os textos mais sofisticados da Europa e dos Estados Unidos, como demonstram as obras de escritores como Nicanor Parra, Carlos Fuentes, Julio Cortázar, Ernesto Cardenal e Mario Benedetti. Duas operações culturais que caracterizam a cultura latino-americana de uma perspectiva global podem ser traçadas nelas: por um lado, a apropriação de elementos marginais ou antitéticos do pensamento, da arte e da política da Europa para desenvolver suas possibilidades em um contexto diferente e sob sua própria orientação; por outro lado, a busca de uma base popular mais ampla, integrando as classes subalternas ao diálogo cultural. A contribuição original da literatura latino-americana, Rama parece argumentar, está na forma como escritores e intelectuais, com firme convicção anti-imperialista, resistem às particularidades históricas e às modulações estéticas da região e as utilizam para produzir obras literárias de grande impacto social, que transcendem as barreiras nacionais e acabam por inserir o subcontinente na cena mundial contemporânea.

A vontade de integração e a celebração da literatura latino-americana coexistem neste texto com operações de exclusão e de silenciamento que precisam ser examinadas. À hierarquização do pólo cosmopolita, em detrimento do tradicional, há que acrescentar outra afirmação demasiado problemática: a desvalorização decisiva de qualquer contribuição das populações nativas ou africanas, que o autor vê não só despojadas da sua autonomia e capacidade de desenvolvimento, mas também condenadas a desaparecer: “Tanto as primeiras como as segundas estão destinadas a morrer e só podem inserir elementos próprios nesta cultura europeia americana, ou ocidental ou atlântica, como quiserem” (“Sentido e estrutura de uma contribuição…”, neste livro, p. 61). A argumentação parece ser feita contra a tentativa anti-europeia de Frantz Fanon, que ele critica ferozmente, e destaca no discurso de Rama os traços tanto da ferida colonial como de um eurocentrismo cultural característico do Rio da Prata, que continua a ver o Velho Mundo como o modelo atual de civilização.

A palestra de Ángel Rama en Gênova demonstra o caráter literário, urbano, crioulo, modernizador e metropolitano da sua concepção da América Latina, da sua literatura e dos seus intelectuais em meados dos anos 1960, imagem que o crítico tinha construído à cabeça das páginas literárias de Marcha e que aparece expressa nas leituras, intervenções e projetos desse período da sua práxis.

“Dez teses sobre a integração cultural na América Latina”: uma agenda latino-americanista

No início dos anos 1970, a experiência latino-americana de Ángel Rama foi enriquecida por viagens, diálogos, encontros, projetos e estudos que realizou ao redor e sobre o subcontinente. A pesquisa acadêmica mais relaxada, a estadia em Porto Rico, as idas e vindas da ligação com Cuba e a Casa de la Américas, os encontros decisivos com Darcy Ribeiro e a antropologia, a leitura próxima da Teoria da Dependência e a descoberta da obra de Walter Benjamin condicionaram um discurso menos ingênuo sobre a iminência da revolução, a originalidade cultural e o modelo europeu. O avanço modernizador já não parecia garantia suficiente para o desenvolvimento das sociedades, ao passo que a Universidade ascendia em seu pensamento como instituição estatal capaz de coordenar os esforços dos intelectuais e consolidar a autonomia cultural diante da percepção de uma cultura de massa abrangente que deslocou as artes e as humanidades na criação dos imaginários nacionais.

Nesta instância de sua práxis e a partir desta posição política e cultural, Ángel Rama participou da II Conferência Latinoamericana de Difusão Cultural e Extensão Universitária, a convite do filósofo Leopoldo Zea. O evento foi organizado pela Universidad Autónoma de México, na Cidade do México, em fevereiro de 1972. Ali, o intelectual uruguaio apresentou “Dez teses sobre integração cultural na América Latina ao nível universitário”, um documento até então inédito que, sem dúvida, constitui um verdadeiro manifesto de sua vocação latino-americana e uma peça transcendental de seu discurso.[9] O texto retoma hipóteses e equilíbrios anteriores sobre a universidade[10]e reformula-os dentro de uma agenda intelectual claramente regida por uma ideia de integração cultural baseada na gestão de equipes de especialistas e instituições estatais. Organizado em dois blocos, a comunicação é dedicada, primeiramente, a fundamentar de modo claro, reflexivo e explícito os conceitos centrais envolvidos na agenda da integração regional, e depois se volta para questões e propostas específicas orientadas pelas tarefas de extensão na universidade latino-americana.

A primeira seção contém algumas observações e aspectos notáveis do pensamento de Rama sobre a realidade e a cultura da América Latina por volta de 1972. A princípio, há uma noção clara do tipo de integração cultural que se anseia construir. Rama refere-se a ela como um desejo de restituição da unidade perdida após a independência e como o conjunto de respostas sucessivas que os intelectuais ofereceram como uma afirmação diante do avanço dos impérios e das forças externas à região. Neste sentido, é possível perceber tanto os traços da ferida colonial, que situa a origem da identidade latino-americana na conquista, a vice-reitoria espanhola e o posterior processo de emancipação da linhagem crioula, como o caráter reativo da referida integração, ativada por um estímulo metropolitano e não por uma genuína aspiração local. Assim, a utopia remonta a uma instância pensada como original, atravessada pelo processo de colonização e reformulada como um projecto político e cultural, ao passo que o que é próprio é definido em termos de um diálogo assimétrico entre a região, que é postulada como periférica e deslocada, e um centro universal, que continua a ser a civilização europeia e as suas transformações históricas.

Rama considera que qualquer projeto de integração para a América Latina deve abraçar o princípio anti-imperialista e retomar a tradição de luta e autonomia constituída por três grandes momentos: a guerra de independência – cujo apelo à unidade se expressa através de Simón Bolívar –, a plena entrada da região latino-americana no sistema econômico mundial no final do século XIX – quando surgiram as grandes vozes americanistas representadas por José Martí – e a era contemporânea, que luta com as numerosas formas de violência do imperialismo que aprofundam as desigualdades e dificultam o progresso. Rama também reivindica o imperativo modernizador. Tal como tinha subscrito em Gênova, assinala que não é possível renunciar à cultura modernizada ou substituí-la, entendida como aquela que é construída com base nos sistemas econômicos e nos avanços técnicos e científicos das metrópoles desenvolvidas e expandida em todo o mundo pela força da globalização capitalista. O trabalho também reitera a marginalização da criação original e a contribuição das comunidades afrodescendentes, tidas como incapazes de resistir ao impulso do contemporâneo.

Esse é um momento crítico da obra, na medida em que o autor deve negociar entre, por um lado, a afirmação de uma autonomia sustentada pelo patrimônio cultural e o legado histórico de emancipação e, por outro lado, o anseio de desenvolvimento da região, que não pode deixar de tomar como modelo as sociedades europeias. A solução oferecida é, pois, uma modernização prudente, inteligente, estratégica, sujeita a uma “estreita vigilância” e gerida “para efeitos da integração cultural projetada” (Rama, “Dez teses…”, neste livro, p. 92), que permite aproveitar as potencialidades da contemporaneidade mundial, mas sem alienar, para tanto, a própria identidade, ligada a experiências, heranças e linhagens que não estão necessariamente sujeitas ou integradas em circuitos internacionais. Naturalmente, é inevitável não se referir neste ponto às reflexões de Rama sobre o mesmo assunto por volta de 1982, em seu clássico livro Transculturación narrativa en América Latina (2008), que está focado, contudo, na criação literária.

Outra característica notável do texto é o peso dos intelectuais na integração. O autor sublinha eloquentemente que o sonho da unidade regional se desenvolveu ao longo das décadas em inúmeras proclamações políticas, manifestações artísticas, obras literárias, ensaios, programas “com vontade de futuro” (Rama, “Dez teses…”, neste livro, p.97). As elites intelectuais são assim chamadas a estar na vanguarda do processo de integração. Suas funções vão desde a preservação dos legados culturais internos até a coordenação dos esforços de grupos e instituições para o desenvolvimento das sociedades. A afirmação torna-se uma agenda e, após refletir sobre o problema, Rama propõe a criação de coleções universitárias e editoras que colocariam em circulação os clássicos do pensamento e da literatura da região, “uma espécie de carta magna da cultura latino-americana” (Rama, “Dez teses.”, neste livro, p.105). A ideia esboçada aqui encontrou sua realização anos depois, na Venezuela, através da Biblioteca Ayacucho.

A ideia de integração é assim sustentada pelo princípio anti-imperialista e modernizador e pelos esforços dos intelectuais e das instituições que os reúnem e os apoiam, principalmente a universidade estatal. Mas a exposição de Rama também abraça uma certa ideia da América Latina que contempla reformulações e novas nuances. O que se destaca neste sentido é uma percepção mais clara e decisiva da heterogeneidade cultural que rege a vida cultural do subcontinente e que reúne distintas tradições, conflitos, áreas, classes e comunidades. A observação distingue a sobreposição de diversos ritmos históricos e configurações sociais, o que torna a noção menos abstrata e totalizante do que nas posições dos anos 1960. Entretanto, surge aqui um problema que anos depois seria visto a partir de uma posição quase diametralmente oposta: a questão da integração com o Brasil. O caso chama a atenção: Rama considera que a língua portuguesa e a cultura nacional brasileira distanciaram historicamente o país sul-americano do resto do subcontinente. Sua conclusão é que os laços entre os dois hemisférios da América Latina são tão fracos que a unidade é adiada para futuros projetos e substituída na agenda por intercâmbios pontuais. A questão brasileira apresenta uma situação análoga com o Caribe francês, cuja articulação com o resto do subcontinente também é problemática.

Em ambas as situações, Ángel Rama enfatiza o caráter utópico do projeto de América Latina e sua dupla perspectiva temporal: para trás, rumo à restituição da unidade perdida da colônia espanhola – que exclui o Brasil e as sociedades francófonas; para frente, rumo ao desejo de plena integração de todos os países ao sul do Rio Bravo, o que contribuiria para a transformação profunda das estruturas sociais e para a consolidação de uma identidade cultural comum, forjada no calor das tarefas de emancipação empreendidas conjuntamente pelos intelectuais da região.

A Biblioteca Ayacucho: uma editora para o sonho latino-americano

Em 1972, Ángel Rama estabeleceu-se na cidade de Caracas, onde trabalhou intensamente como crítico, professor, pesquisador e polemista. Algum tempo depois de sua chegada, o uruguaio, junto com o intelectual venezuelano José Ramón Medina, desenhou um projeto editorial para reavivar as ideias por trás de uma coleção de clássicos latino-americanos. O plano inicial foi aprovado pelo presidente Carlos Andrés Pérez e financiado pela bonança petrolífera nacional. Por volta de 1974, foi fundada a Biblioteca Ayacucho, que se desenvolveu sob a direção e liderança literária de Ángel Rama e graças ao trabalho de um grande grupo de colaboradores. A editora recuperou os textos fundamentais da literatura e do pensamento da região a fim de reler as obras, contextualizar sua época, rever suas tensões, atualizar seus significados e difundi-los entre o público contemporâneo.[11]

Durante os primeiros anos de seu trabalho na direção da empresa, Rama realizou múltiplas tarefas, desde a gestão institucional e administrativa até a elaboração de prólogos e cronologias para os volumes. Ao fazer isso, recorreu à ajuda de intelectuais latino-americanos dispersos na diáspora após o triunfo das ditaduras no Cone Sul e pediu-lhes que selecionassem material, procurassem originais, fizessem traduções, apresentassem textos, corrigissem provas. De Caracas, Rama passou a tecer uma vasta rede intelectual de colaboração e produção, que complementou a recuperação dos clássicos da região e acabou constituindo a Biblioteca Ayacucho como um momento chave na sua carreira e um dos seus legados mais transcendentes para a cultura latino-americana.[12]

No entanto, assolado pela hostilidade do meio intelectual venezuelano, Ángel Rama deixou Caracas e, em 1979, instalou-se em Washington, onde continuou a trabalhar durante algum tempo como diretor literário da Biblioteca Ayacucho, que tentou enriquecer com os manuscritos coloniais e estranhas peças de arquivo que descobriu nos arquivos americanos. À medida que os volumes são publicados e começam a circular entre leitores e especialistas em todo o mundo, o meio cultural e acadêmico começa a elogiar a iniciativa. Algumas das principais figuras da cultura venezuelana ficaram insatisfeitas com os critérios de seleção e com o desenho do catálogo. O romancista Arturo Uslar Pietri foi um deles; por volta de 1980, ele tornou explícitas suas críticas a certas decisões editoriais. Ángel Rama reflete sobre suas observações e escreve uma longa carta a José Ramón Medina, na qual glosa e refuta um a um os comentários do intelectual venezuelano. Os argumentos de seu texto tornam-se a estrutura central de “La Biblioteca Ayacucho como instrumento de integração cultural latinoamericana“, publicado em 1981, um ensaio que pretende ser a base dos princípios editoriais da coleção.[13]

No texto, as definições do empreendimento são claras. Rama estabelece os três critérios que orientam a seleção dos materiais e a preparação dos volumes. O primeiro é descrito como “culturalista” e refere-se a uma ampla e rica abertura generalista, que não se limita aos gêneros tradicionais da literatura, mas compila diversos textos, como ensaios, cartas, crônicas, histórias orais, proclamações e manifestos. O segundo critério é sociológico e visa dar à coleção uma espessura social que possa ir além da produção literária e integre as vozes dos setores mais oprimidos e marginalizados da sociedade. O terceiro critério editorial da Biblioteca Ayacucho é a inclusão de obras que não tenham sido escritas por autores latino-americanos, mas que são, no entanto, indispensáveis para pensarmos na nossa identidade comum. Esta ideia implica compreender a cultura do subcontinente como um produto híbrido que surge do encontro conflituoso das suas próprias tradições e das tradições estrangeiras. A operação marca uma inovação sem precedentes em sua maneira de pensar a cultura latino-americana, que também é moldada pelo olhar externo.

O ensaio demonstra como a ideação, a construção e a reflexão sobre a Biblioteca Ayacucho introduzem mudanças significativas na práxis de Rama. Tanto sua imagem da América Latina quanto suas ideias de integração apresentam revisões e reformulações que expressam uma visão mais refinada e atenta à dinâmica e à diversidade da produção cultural da região.

O reconhecimento da heterogeneidade das sociedades e das nações que a compõem torna-se programático e implica o abandono da língua espanhola como elemento unificador. Ao contrário dos textos e posições anteriores, o Brasil é um elemento imprescindível na identidade do subcontinente, o que nos obriga a considerar como prioritárias tanto as tarefas de tradução e apropriação do pensamento e da literatura brasileiros, quanto o estabelecimento de redes com seus autores e intelectuais. Algo semelhante ocorre com os países do Caribe e com os que não falam espanhol: Rama destaca a dificuldade histórica de integrar obras escritas em inglês, francês e holandês na cultura latino-americana, e pede o desenvolvimento das tarefas necessárias para incluí-las na coleção.

Mas, além dos países e regiões que compõem a unidade, o que se destaca no pensamento de Rama, em diálogo com a Biblioteca Ayacucho, é que uma identidade cultural em comum continua a ser reivindicada, contudo, não mais no sentido beligerante e anti-imperialista, mas sim através de uma fundamentação cultural e histórica. A América Latina não é imaginada como unida na luta contra as potências ou coordenada na competição contra elas pela qualidade de seus produtos estéticos, mas está ligada pela acumulação de esforços civilizatórios, manifestações artísticas e testemunhos literários que se desenvolveram na região ao longo dos séculos. Nos ensaios literários e nos projetos sociais e políticos dedicados à definição do sentido, da identidade e da organização de um território geográfico e humano chamado “América Latina”, Ángel Rama encontra o fundamento primordial da tão almejada unidade.

Desta forma, a ideia de uma América Latina olhando para o passado e projetando-se no futuro implica um novo papel para os intelectuais. Homens de letras e profissionais ligados às humanidades têm a rigorosa tarefa de pesquisar o patrimônio cultural comum e a responsabilidade de explicar, difundir e fazer circular as criações seculares da região, a fim de superar os nacionalismos e sustentar uma identidade latino-americana sempre ameaçada.

A partir do ensaio, pode-se estabelecer que a Biblioteca Ayacucho assume uma integração cultural concebida em pelo menos três sentidos. Um é dado pela questão cultural, ou seja, a de incluir num único panorama histórico e pensar as produções intelectuais e artísticas da região como parte de um mesmo processo. Um segundo sentido de integração é aquele que diz particularmente respeito aos intelectuais como sujeitos sociais e envolve o estabelecimento de redes e a formação de equipes que permitam cumprir as tarefas exigidas pela sociedade e pela época. Finalmente, a integração também assume um aspecto literário, teórico e crítico: trata-se de descobrir a forma como a literatura da região tem sido historicamente relacionada entre si e de elaborar discursos que permitam estudar de forma orgânica a criação das diferentes sociedades latino-americanas.

Desta forma, o projecto da Biblioteca Ayacucho funciona como uma intervenção estratégica em termos de integração regional. Concebida como uma tarefa cultural realizada por intelectuais e apoiada pelo Estado, sua concepção e realização mostra-se como uma representação cabal da práxis latino-americanista de Ángel Rama, sustentada por ideias e textos, mas também por planos, controvérsias e gestões.

A utopia como tradição: um panorama geral do pensamento e do ensaio latino-americano

Em 1981, Der lange Kampf Lateinamerikas. Texte und Dokumente von José Martí bis Salvador Allende [A Longa Batalha da América Latina. Textos e documentos de José Martí a Salvador Allende], uma antologia de ensaios sobre a história e a cultura da região, foi publicada em 1981. Ángel Rama foi responsável pela seleção dos textos e escreveu o prólogo, inédito na sua versão original em espanhol e intitulado “Um povo em marcha”.[14]

Nessa época, o crítico uruguaio estava em meio a uma batalha contra o Serviço de Imigração dos EUA, enquanto continuava seu trabalho docente e suas pesquisas sobre a cultura latino-americana do século XIX, participando de encontros acadêmicos e projetos editoriais ligados à diáspora de intelectuais do Cone Sul. A questão do exílio chama-os à reflexão e ao debate. Em torno da experiência desenraizadora de perseguição e deslocamento, Rama traça profundos balanços retrospectivos que envolvem os desafios políticos, as certezas ideológicas e as agendas culturais das últimas décadas.[15] Num ensaio clássico sobre o exílio, chega ao ponto de falar de uma “literatura dos derrotados” para assinalar a existência de um período de reflexão coletiva após a derrota dos grandes projetos revolucionários, “um parêntese questionador que nos permite vislumbrar os conflitos na sua maior latitude” (1995, p. 247). É nesta modulação que deve ser colocado o prólogo da compilação alemã: como um estudo mais cauteloso diante das definições mais precisas e mais consciente de certas aporias e simplificações do discurso latino-americanista. Em qualquer caso, vale a pena notar que a maior distância crítica e a leitura lúcida de numerosas fontes e tradições não eclipsam o reconhecimento dos esforços seculares para a unidade, nem tampouco minam a própria utopia religadora.

Como exemplo deste processo de revisão e reinvenção no discurso de Ángel Rama, podemos focar uma questão central para o pensamento latino-americano: o nome genérico do subcontinente, América Latina. Em “Um povo em marcha” pode-se traçar um exercício detalhado de análise ideológica da origem do nome da entidade política e cultural que tem estado no centro da sua práxis desde 1959. No prólogo, o autor aponta que a escolha da “América Latina” implica pelo menos duas “operações seletivas”. A primeira é a oposição ao modelo anglo-saxônico que tinha sido anteriormente um exemplo de civilização para vários dos heróis da emancipação e para muitos letrados do século XX. O segundo fundamento do conceito tem um aspecto nefasto, na medida em que traça uma segregação interna que marginaliza as populações e culturas indígenas e negras do subcontinente e as submete à liderança de uma elite que se imagina branca ou, pelo menos, mestiça, mas, de qualquer forma, recortada segundo o molde da liderança e da intelectualidade europeia. O nexo com o mundo latino metropolitano serve de legitimação racial para aqueles que detêm o poder e se consideram solidamente ligados ao destino das potências mediterrâneas, especialmente a França. Este questionamento marca uma ruptura com as declarações de originalidade e identidade da América Latina dos anos 1960. Além disso, expressa mal-estar perante uma nomeação que não só serve para unir e invocar o passado comum e os desafios partilhados, como também funciona como um dispositivo que hierarquiza e silencia. Rama não avança em seu julgamento, nem tira as consequências necessárias da problematização; ao contrário, ele se limita a deixá-la denotada em seu texto, para que a tensão percebida em nome da América Latina permaneça sem solução e subsista como um mal-estar que qualifica certos afãs de representação e identidade que são constitutivos do projeto latino-americanista.

Por outro lado, o ensaio percorre a história do pensamento latino-americano e estabelece uma série de etapas, estruturadas de acordo com as vicissitudes políticas dos países da região. Assim, após as reformulações ideológicas trazidas pelo curso cultural internacionalista e pelo processo de democratização progressiva das sociedades no final do século XIX, é reconhecido um período pautado pelo reformismo e pela revolução, com uma marcada inflexão nacionalista, urbana e modernizadora, que se estende até as crises econômicas que se seguiram à crise de 1929. Foi então que surgiram projetos populistas – pensados como respostas às demandas das classes populares, que haviam sido omitidas das agendas da elite até a emergência de líderes como Perón e Vargas – e, em seguida, surge o militarismo como fator determinante no poder político, assumindo o Estado com a derrocada dos regimes populistas ou democráticos.

A última etapa abordada por Rama é conformada pelo arco temporal que vai desde o segundo pós-guerra até o momento da sua enunciação, no qual ele destaca uma série de fenômenos que atravessam sua própria biografia: a eclosão da Revolução Cubana e seus efeitos no resto do subcontinente; o desembarque da cultura de massa estadunidense; a modernização das ciências humanas e sociais, que tornou possível o surgimento da teoria da dependência e da crítica da teoria do desenvolvimento; o reconhecimento massivo e mundial da produção narrativa latino-americana, traduzido no “boom” literário. Finalmente, Rama destaca um processo cultural que se torna transcendental para entender sua trajetória: a renovação da utopia latino-americanista por intelectuais nos anos 1960. Uma frase no prólogo é quase autobiográfica:

As equipes de escritores, artistas, estudiosos deram uma contribuição notável, demonstrando que estavam preocupados com as sociedades a que pertenciam e, em um grau nunca antes visto, desenvolveram uma consciência regional que os múltiplos exilados ajudaram a dotar de um conhecimento mais bem fundamentado das características das diversas áreas. O latino-americanismo […] tornou-se agora um slogan popular: os homens que vivem do Rio Bravo ao Estreito de Magalhães sentiam e alegremente se chamavam “latino-americanos”, embora sem dar a esse rótulo o significado restrito anterior, como prova a renovação indigenista e o pleno reconhecimento da africanidade de muitas culturas internas.
(Rama, Um povo em marcha, neste livro,  p. 212)

A frase em questão parece ter a intenção de refutar qualquer leitura anti-intelectualista do texto. Aqui o uruguaio incorpora à sua agenda a questão indígena e a permanência da cultura africana. A utopia latino-americanista é assim carregada de novos significados e nuances, pouco percebidos nas leituras habituais de seus últimos livros. É verdade: não o faz de uma forma programática ou decisiva, mas é uma operação importante para pensar nesta fase do seu pensamento. Longe de questionar a legitimidade do papel dos intelectuais na sociedade, de julgar sumariamente a sua própria geração ou de desafiar a validade do latino-americanismo, por volta de 1982, Ángel Rama endossa explicitamente a sua vocação integradora, a sua entonação militante. De fato, na primeira seção do prólogo, a leitura e a revalorização das respostas dos intelectuais latino-americanos às interpretações depreciativas das sociedades da região, empreendidas pelo naturalismo europeu e indígena no final do século XIX, reconstrói uma tradição letrada que afirma a identidade e a autonomia ao longo das décadas e o devir da história e do pensamento mundial. Quase se pode ler este panorama intelectual como uma versão otimista de A cidade letrada; em contraste com seu livro clássico, este texto enfatiza não tanto os traços coloniais dos homens de letras, mas sim sua capacidade de resistir à alienação e de convocar por unidade e transformação.

Naturalmente, estes não são os únicos elementos que o prólogo incorpora à sua imagem da América Latina, nem tampouco as tensões e reformulações do seu discurso se limitam a esse ponto. Vale a pena notar a observação sobre a ascensão pública das mulheres como escritoras e intelectuais no início do século XX; limitada e insuficiente, a incorporação do tema em sua reflexão marca um olhar menos patriarcal do que o frequentado pelo ensaio dos anos 1960 e 1970. Também é imperativo questionar a omissão de fenômenos históricos como a Revolução Boliviana ou a ascensão de um discurso indigenista que já não depende da mediação dos setores crioulos. Finalmente, a conclusão com uma celebração da arte e da literatura latino-americana contemporâneas e sua citação de Nossa América, de seu admirado José Martí,reafirmam o papel transcendental que Ángel Rama continua a dar à literatura e aos intelectuais em sua extensa obra integradora.

Ler Rama

Os trabalhos compilados confirmam o quanto a América Latina tem sido incessante nas reflexões e obras do intelectual uruguaio. Lidos em série, os textos iluminam mudanças de perspectiva e ajustes nas orientações, desde o olhar cultural distante e cosmopolita, repleto de fervor revolucionário e modernizador, até as explorações de longo alcance sobre uma tradição de pensamento tão fértil quanto problemática, na qual o seu próprio trabalho deve ser incluído. No meio, estão as definições programáticas propostas em torno da integração regional e dos fundamentos de seu grande projeto de integração, o que implica mais um giro do parafuso em sua imagem da América Latina e na devida reformulação das agendas e do conceito.

Como outros especialistas antes de mim, ressaltei a coerência do seu discurso. Vale a pena sublinhar esta questão em tempos de agendas acadêmicas transnacionais, de fábricas de papers indexados e de objetos de estudo assépticos, adaptados a modas, parâmetros e normas. Rama foi um homem do seu tempo, atento às transformações teóricas e à produção cultural contemporânea, que não negligenciou as suas leituras do novo e que soube apropriar-se dos diferentes vocabulários e metodologias críticas à sua disposição. Mas isso não conspirou contra sua plena dedicação à América Latina, sua literatura e sua cultura, às quais tanto ajudou a imaginar, difundir e examinar. Nesta inflexão precisa da sua práxis, na decisão de se tornar um sujeito latino-americano – seja lá o que isso signifique – e de trabalhar arduamente para construir a integração desejada – para além dos resultados concretos –, é necessário destacar algo que vai além das decisões racionais e dos condicionamentos da época: a paixão. Cada um dos textos de Rama funciona como uma celebração e afirmação da criação estética da região e do esforço cultural por ela desenvolvido. Quando ele julga severamente, descobre conexões subterrâneas, forja conceitos ou lê a contrapelo, o que está em jogo é o reencontro com o próprio, o diálogo com os pares, a religação de um “nós” muitas vezes disperso, confrontado, fraturado.

Dito isto, a compilação de textos proposta aqui também sugere que a coerência de Rama não deve ser entendida como dogma. Tanto sua concepção da América Latina como suas notas sobre os deveres dos intelectuais passam por um processo constante de revisão e reinvenção. Seu latino-americanismo montevideano dos anos 1960 é diferente do seu latino-americanismo estatal da década seguinte, assim como suas intervenções polêmicas na mídia uruguaia e de Caracas estão muito longe das reflexões calmas dos anos 1980. Como afirmou Hugo Achugar, “existem múltiplos ‘Ramas’” (apud Larre Borges, p. 1); e sua frase deveria servir como um lembrete ao examinar seu trabalho e ponderar suas contribuições. Da mesma forma, sua práxis heterodoxa adverte sobre a estreita inter-relação entre suas múltiplas atuações como intelectual, algumas delas expressas nas páginas seguintes. Assim, por exemplo, ao examinar seu estudo do pensamento latino-americano do século XIX, é possível detectar nele os traços de seus balanços das décadas anteriores e seu trabalho de arquivo para a Biblioteca Ayacucho, as conexões com a argumentação de A cidade letrada e o impacto de seu envolvimento com o projeto de história comparada liderado por Ana Pizarro.

Ler Rama também renova os desafios do latino-americanismo na época atual e convida ao debate com algumas das afirmações e apostas que ele e seus companheiros de geração fizeram sobre a identidade do subcontinente e o papel dos intelectuais dentro do projeto de integração e autonomia. “A América Latina continua sendo uma utopia intelectual de vanguarda à espera de sua plena realização” (2008), escreveu o uruguaio no prólogo de um de seus livros mais brilhantes. Pois bem, até agora, no século XXI, podemos ver como é urgente retirar os anseios de unidade desta coordenada letrada altamente problemática, assim como é imprescindível abrir o desafio à agência dos diversos sujeitos sociais e a necessidade de repensar o significado da América Latina numa história que avança a um ritmo vertiginoso, violento, multipolar e sem um norte certo. Também é urgente reconsiderar o significado da literatura, da crítica e da cultura num panorama global que é tão digital quanto dinâmico. Em todo caso, talvez a grande lição intelectual de Ángel Rama seja sua tenacidade e lucidez em manter a utopia de uma América Latina unida, apesar das derrotas e frustrações, baseada no diálogo, no trabalho coletivo e na paixão pelo que é nosso, sempre incessantes.

Notas

[1] Este ensaio é a apresentação de Facundo Gómez ao livro “América latina: um povo em marcha”, da Biblioteca Básica Latino-Americana (BBLA), que foi publicado em dezembro de 2021 como segundo volume da coleção: Rama, Ángel (2021) América Latina, um povo em marcha. São Paulo / Rio de Janeiro: Biblioteca Básica Latino-Americana (BBLA). Mais informações: https://www.bbla.com.br/.

[2]  O áudio foi carregado no Youtube e está disponível em https://www.youtube.com/watch?v=O1OXT0SNEDY.

[3] Ver os imprescindíveis trabalhos de José Eduardo González (2017), Javier García Liendo (2017) e Romina Pistacchio (2018) sobre a obra de Ángel Rama. Os capítulos dos livros de Rafael Mondragón (2019) e Françoise Perus (2019), dedicados a repensar e discutir suas contribuições, podem também ser incluídos nesta série.

[4] A tese de doutorado Por una crítica latinoamericana: la praxis intelectual de Ángel Rama (Gómez, 2019), dirigida por Marcela Croce, foi defendida com sucesso perante um júri composto pelos professores Susana Cella, Andrés Kozel e Álvaro Fernández Bravo em julho de 2020 e obteve a nota máxima atribuída pela Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires.

[5] Duas publicações, em 1984 e 1985, refletem tanto a consternação do acidente como o reconhecimento generalizado do seu trabalho e do seu legado. No México, Cuadernos de Marcha, a revista dirigida por Carlos Quijano do exílio, dedicou uma seção especial para honrar sua memória, com contribuições de amigos e colegas uruguaios, como Horacio Alsina Thevenet, Cristina Peri Rossi e Eduardo Galeano. No ano seguinte, num número duplo, a revista acadêmica Texto Crítico, dirigida por Jorge Ruffinelli, discípulo e colega de Rama, reúne os testemunhos e reflexões de intelectuais como Mario Benedetti, José Emilio Pacheco, Alicia Migdal e Adolfo Prieto, entre outros, como uma homenagem ao crítico uruguaio.

[6] Entre os volumes coletivos mais relevantes que examinam seu trabalho estão: o número especial da Casa de las Américas em homenagem ao seu legado (1993); a compilação de artigos de Mabel Moraña, Ángel Rama y los estudios latinoamericanos (1997); o dossier dehomenagem da revista acadêmica Estudios (2002-2003), coordenado por Alicia Ríos; o número especial da revista argentina El Matadero (2009), editado por Marcela Croce, em comemoração ao vigésimo quinto aniversário de sua morte.

[7] Originalmente  publicado como Aportación original de una comarca del Tercer Mundo em 1979. É o volume 73 da coleção Latinoamérica. Cuadernos de Cultura Latinoamericana, publicado pela Universidad Autónoma de México, através da Coordenação de Humanidades e do Centro de Estudos Latinoamericanos da Faculdade de Filosofia e Letras.

[8] Cairo de Souza Barbosa (2020) escreveu um trabalho muito interessante sobre o impacto que a participação no Colóquio de Gênova teve no trabalho de Antonio Candido, destacando como as sessões de debate e as propostas programáticas do evento foram altamente significativas para grande parte dos participantes.

[9]  A edição impressa do jornal foi encontrada no arquivo pessoal do Ángel Rama (Caixa 33, pasta 9, “Série 4: associações e congressos”). Junto com o texto, há vários materiais relacionados com o congresso mexicano (programas, correspondência, exposições). Agradeço à colaboração de Amparo Rama, que guarda com grande dedicação os documentos pessoais de seu pai em Montevidéu e que em várias ocasiões me proporcionou o acesso a um arquivo que é um verdadeiro tesouro para pesquisadores da cultura e literatura latino-americana.

[10] No  âmbito das reuniões e discussões realizadas na Universidade da República sobre o chamado “Plano Maggiolo”, uma iniciativa para reformar o sistema acadêmico uruguaio, em 1967, Ángel Rama apresentou um trabalho sobre a graduação em Letras no país (1970). No ano seguinte, num seminário coordenado por Darcy Ribeiro, então exilado no Uruguai, o crítico, juntamente com Washington Buño e Rafael Laguardia, voltou a falar sobre o papel da Universidade e dos intelectuais na busca de uma política cultural autônoma para a América Latina (1968).

[11] Sobre a história e as orientações da editora, a obra de Carlos Pacheco e Marisela Guevara (2003-2004) é essencial, enriquecida, sob diferentes perspectivas, pelas contribuições de Jessica Gordon-Burroughs (2014) e Pedro Demenech (2019). Sobre a integração do Brasil na Biblioteca Ayacucho, ver Coelho (2009).

[12] Tanto sua concepção como sua implementação mostram como suas práticas culturais dialogam com suas ideias e seu discurso crítico de uma forma coerente e produtiva. Sobre a relação entre o pensamento de Rama e a obra na Biblioteca Ayacucho, pode-se rever um artigo meu (2019), que também estuda os primeiros anos da editora estatal venezuelana.

[13] Publicado originalmente em: Latinoamérica: Anuario de Estudios Latinoamericanos, No 14, Universidad Nacional Autónoma de México, 1981. Mais tarde, foi incluído em 30 años de Biblioteca Ayacucho, um livro publicado pela própria editora em homenagem ao seu trigésimo aniversário. A edição também inclui textos de Juan García del Río, Andrés Bello e Rufino Blanco Fombona, bem como uma apresentação de Oscar Rodríguez Ortiz, então diretor editorial da empresa, que fornece dados e julgamentos de relevância para a história da Biblioteca Ayacucho.

[14] A cópia datilografada utilizada como fonte para este volume foi recuperada do arquivo pessoal do Ángel Rama (Caixa 64, pasta 9, “Série 8.12: Prólogos, antologias, edições críticas”).

[15] Como testemunho desta instância de introspecção e revisão por Rama sobre questões como o papel dos intelectuais na sociedade ou a relação entre literatura e poder, há textos como “Otra vez la utopía en el invierno de nuestro desconsuelo” (1979) e “La lección intelectual de Marcha” (1982).

Tradução: André Magnelli

Bibliografia

AAVV (1982). Der lange Kampf Lateinamerikas. Texte und Dokumente von José Martí bis Salvador Allende. Selección y prólogo de Ángel Rama. Frankfurt: Suhrkamp.

Aguilar, Gonzalo (2013). Los intelectuales de la literatura: cambio social y narrativas de la identidad. En Carlos Altamirano (Dir.). Historia de los intelectuales en América Latina. Tomo II. Los avatares de la “ciudad letrada” en el siglo XX. Buenos Aires: Katz.

Alburquerque, Germán (2000). La red de escritores latinoamericanos en los años sesenta. Universum (15).

Barbosa, Cairo de Souza. (2020). “Terzo Mondo” em transe: Antonio Candido em Gênova e depois. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros (76).

Barros-Lemez, Álvaro y Blixen, Carina (1986). Cronología y bibliografía de Ángel Rama. Montevideo: Fundación Ángel Rama.

Casa de las Américas (1993). Dossier “Ángel Rama: presencia que no acaba”, XXXIV (192).

Coelho, Haydée Ribeiro (2009). O Brasil na “Biblioteca Ayacucho: vertente literária e cultural”. O Eixo e a Roda, 2 (2).

Cuadernos de Marcha (1984). Número en homenaje a Ángel Rama, Marta Traba ycJorge Ibargüengoitia. Segunda época, V (25).

Demenech, Pedro. (2019). Em 1974 : os princípios da Biblioteca Ayacucho. Remate De Males, 39 (2).

El Matadero (2009). Sección “Ángel Rama. Homenaje a un ciudadano letrado a 25 años de su muerte”. Segunda época, (6).

Estudios (2003-2004). Dossier “Homenaje a Ángel Rama”. Coordinación de Alicia Ríos, 10/11 (22/23).

García Liendo, Javier (2017). El intelectual y la cultura de masas. Argumentos latinoamericanos en torno a Ángel Rama y José María Arguedas. Indiana: Purdue University.

Gilman, Claudia (2011). Enredos y desenredos de Ángel Rama y Emir Rodríguez Monegal. Nuevo Texto Crítico, 24-25 (47-48).

Gómez, Facundo (2017). Los primeros ensayos de Ángel Rama: inicios montevideanos de una crítica latinoamericana. Catedral Tomada, 5 (8).

Gómez, Facundo (2019). Ángel Rama en la Biblioteca Ayacucho y viceversa: desafíos y lecciones de una editorial latinoamericanista. A Contracorriente, 17 (1).

González, José Eduardo (2017). Appropiating theory. Ángel Rama´s critical work. Pittsburgh: Pittsburgh University Press.

Gordon-Burroughs, Jessica (2014). Monuments and Ephemera: The Biblioteca Ayacucho”. A Contracorriente, 11 (3).

Larre Borges, María Inés (2008). Ángel Rama: a 25 años de su muerte. Para pensarnos mejor. Entrevista a Hugo Achúgar, Mabel Moraña y Ana Pizarro. Disponible en http://sopadesvan.blogspot.com/2008/12/angel-rama-25-aos-de-su-muerte.html. Visto el 30 de junio de 2017.

Mondragón, José Rafael (2019). Un arte radical de la lectura: constelaciones de la filología latinoamericana. México: Universidad Nacional Autónoma de México, Instituto de Investigaciones Filológicas.

Moraña, Mabel (Ed.) (1997). Ángel Rama y los estudios latinoamericanos. Pittsburgh: Instituto Internacional de Literatura Iberoamericana.

Pacheco, Carlos y Guevara, Marisela (2003-2004). Ángel Rama, la cultura venezolana y el epistolario de la Biblioteca Ayacucho. Estudios, 10-11 (22-23).

Perus, Françoise (2019). Transculturaciones en el aire (en torno a la cuestión de la forma artística en la crítica de la narrativa hispanoamericana). México: Universidad Nacional Autónoma de México.

Pistacchio, Romina (2018). La aporía descolonial. Releyendo la tradición crítica de la crítica literaria latinoamericana. Los casos de Antonio Cornejo Polar y Ángel Rama. Madrid: Iberoamericana.

Pizarro, Ana (Coord.) (1985). La literatura latinoamericana como proceso. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina.

Rama, Ángel (1970). Letras. En AAVV. La estructura de la Universidad a la hora del cambio. Montevideo: Universidad de la República.

Rama, Ángel (1972). Las voces de la desesperación. Marcha (1586), 24 de marzo.

Rama, Ángel (1979). Otra vez la utopía, en el invierno de nuestro desconsuelo. Cuadernos de Marcha, segunda época, (1).

Rama, Ángel (1982). La lección intelectual de Marcha. Cuadernos de Marcha, segunda época, (19).

Rama, Ángel (1995). La riesgosa navegación del escritor exiliado. La riesgosa navegación del escritor exiliado. Montevideo: Arca.

Rama, Ángel (2008). La tecnificación narrativa. La novela en América Latina. Panoramas 1920-1980. Santiago de Chile: Universidad Alberto Hurtado.

Rama, Ángel (2015). Martí. Modernidad y latinoamericanismo. Compilación de Julio Ramos y María Fernanda Pampín, estudio introductorio de María Fernanda Pampín. Caracas: Biblioteca Ayacucho.

Rama, Ángel (2018). La querella de realidad y realismo. Ensayos sobre literatura chilena. Edición, presentación y notas de Hugo Herrera Pardo. Santiago de Chile: Mímesis.

Rama, Ángel (2021). Las máscaras democráticas del modernismo. Edición y prólogo de Hugo Herrera Pardo. Santiago de Chile: Mímesis.

Rama, Ángel y Candido, Antonio (2016). Un proyecto latinoamericano. Antonio Candido y Ángel Rama, correspondencia. Edición e introducción de Pablo Rocca. Montevideo: Estuario.

Rama, Ángel, Ribeiro, Darcy; Ribeiro, Berta. Diálogos latino-americanos. Correspondência entre Ángel Rama, Berta e Darcy Ribeiro. Organización, estudios y notas de Haydée Ribeiro Coelho y Pablo Rocca. São Paulo: Global Editora, 2015.

Rama, Ángel, Washington Buño y Rafael Laguardia (1968). Proposiciones sobre política cultural autónoma. Seminario sobre Política cultural autónoma para América Latina. Montevideo: Universidad de la República.

Rama, Ángel (2021) América Latina, um povo em marcha. São Paulo / Rio de Janeiro: Biblioteca Básica Latino-Americana (BBLA).

Texto Crítico (1985). Volumen dedicado a Ángel Rama, X (31/32).

Weinberg, Liliana (2005). El año de la muerte de Rama. Iberoamericana, 71 (211).


Facundo Gómez

Nasceu em San Fernando, Província de Buenos Aires, em 1985. Estudou Literatura na Universidade de Buenos Aires. Comple-tou a licenciatura e o bacharelado por volta de 2012. Na mesma universidade, continuou seus estudos de doutorado. Durante vários anos ele desenvolveu uma importante pesquisa sobre a obra de Ángel Rama, financiado por uma bolsa do Conselho Nacional de Pesquisa Científica e Técnica (CONICET, Argentina). Em 2020 ele defendeu com sucesso sua tese, intitulada Por una crítica latinoamericana: la praxis intelectual de Ángel Rama, que permanece inédita. A crítica literária latino-americana e a literatura contemporânea argentina e latino-americana são suas atuais áreas de interesse. Ele apresentou suas hipóteses sobre estas matérias em diferentes publicações acadêmicas, tais como  Revista de Crítica Literaria Latinoamericana, Catedral Tomada, A Contracorriente, Linguagem & Ensino, entre outras. Atualmente leciona literatura em escolas secundárias e teoria literária em institutos de formação de professores da Província de Buenos Aires.


O que é a BBLA?

A Biblioteca Básica Latino-Americana (BBLA) é uma realização da Fundação Darcy Ribeiro (Fundar), que tem a parceria do Ateliê de Humanidades juntamente com as editoras Revista de Cultura e Azougue (Brasil), Oca Editorial (Portugal, Espanha e EUA) e Tucán Ediciones (Chile e outros países da América Latina).

A proposta da coleção é realizar o mapeamento, a apresentação, a reflexão e o estímulo à criação sobre a cultura e o pensamento latino-americano, através da publicação de livros de ensaios de importantes pensadores e artistas do continente. O objetivo consiste em alcançar um público amplo, por meio de livros com conteúdo de qualidade em edições atrativas e bem-cuidadas, que terão versão em português, espanhol e inglês e publicação em diversos países.

Os primeiros volumes são: “A américa latina existe?”, de Darcy Ribeiro, “A grande marcha da América Latina”, do uruguaio Angel Rama, “O idioma da crítica”, do argentino Horácio González, “Um voo de Tukui”, da chilena Ana Pizarro, e “Améfrica Ladina”, de Lélia González.



Últimos posts

Deixe uma resposta

por Anders Noren

Acima ↑

Descubra mais sobre Ateliê de Humanidades

Assine agora mesmo para continuar lendo e ter acesso ao arquivo completo.

Continue reading