Fios do Tempo. Tão longe, tão perto – Felipe Maia

Na continuidade de uma reflexão no calor do tempo, trazemos hoje, no Fios do Tempo, a análise de Felipe Maia (UFJF) dos acontecimentos do 7 de setembro e seus desdobramentos políticos. Quais cálculos moveram Bolsonaro? Como os distintos atores estão reagindo à incitação do presidente contra as instituições? O que fazer diante do insistente avanço do golpismo e da proximidade desta “tão longe, tão perto” eleição presidencial de 2022?

Desejo uma excelente leitura!

A. M.
Fios do Tempo, 09 de setembro de 2021



Tão longe, tão perto

Juiz de fora, 08 de setembro de 2021

O sete de setembro que passou se enquadra em um calendário que se orienta para 2022. A hipótese de um golpe de Estado bolsonarista não era verossímil, o alvo de seu movimento é outro e requer um tempo mais longo. Por tudo o que vimos, o razoável é supor que o que se está a preparar é uma forma de obstruir a sucessão presidencial que se avizinha. Toda a suspeita lançada contra os ministros do STF, a campanha em torno do voto impresso e a autovitimização do presidente servem ao desígnio de criar um ambiente de deslegitimação do processo eleitoral que dever levar à sua sucessão. Por isso, o que vimos esta semana é apenas a versão para crianças do que veremos daqui a um ano se as instituições não se defenderem do assédio golpista.

O tipo de golpe que o presidente da República deseja precisa de preparação e a tomada da data, com o simbolismo que o bolsonarismo constrói em torno dela, uma espécie de “Independence Day” recheado de frases em inglês e das cores de um ufanismo abregalhado, servem a esse desígnio. Ele prepara um calendário em torno do qual o movimento se articula e se mantém vivo. Por isso, em boa medida, seus objetivos imediatos foram alcançados, coesionando seus apoiadores em torno do ataque aberto e sistemático às instituições vigentes, cujas regras, se cumpridas, prometem o fim de seu governo. É para solapar as regras do jogo que ele atua – quais e como, a oportunidade dirá.

Há, assim, muito cálculo no que se passa. Bolsonaro precisa dessa mobilização para manter o tipo de tensão que o levou à presidência, da qual emerge o ambiente favorável às teorias da conspiração que alimentam sua comunicação diária – e que atingem de modo heterogêneo o leque da população que aceitaria em alguma hipótese sufragá-lo nas urnas. Ela mantém uma audiência que, embora já não seja suficiente para repetir seu último desempenho eleitoral, impede a formação de uma alternativa à candidatura petista e mantém parte do sistema político em sua órbita. Não são poucos os que, mesmo não sendo fieis, acreditam que se é ruim com ele, sem ele seria pior, algo que dificilmente seria possível em ambiente político distinto.

Nessa toada, é para se preocupar com o que pode vir a ser o sete de setembro de 2022, bicentenário da Independência, sequestrado pelo ufanismo bolsonarista. Para tanto, basta imaginar um candidato à reeleição em dificuldades eleitorais que podem ser severas, mobilizando um grupo cada vez mais convencido que seu presidente é vítima de uma conspiração sistêmica e dispostos ao risco, por exemplo, de uma ocupação do prédio do STF. Pode até não funcionar, mas o estrago não seria pequeno.

É sobre essa questão que devem estar pensando as autoridades e os políticos em Brasília, tendo o presidente, por necessidade, posto as cartas na mesa. Nada leva a crer que o caminho para a próxima sucessão presidencial esteja aberto e pavimentado. Não estamos diante de um processo minimamente “normal”, em que se podem transcorrer campanhas e debates públicos, ou cuja previsibilidade depende apenas de sondagens de opinião pública. Mas de um teste severo ao sistema eleitoral e seu ordenamento jurídico, como se vê no próprio discurso presidencial e no fantasma da invasão do Capitólio norteamericano. O problema hoje não é outro senão encontrar os meios para evitar que a virada de mesa aconteça.

Nos últimos dias, surgiram sinais modestos de alteração da postura complacente de organizações empresariais e de políticos de direita. A Federação dos banqueiros (Febraban) propôs um manifesto que, mesmo tímido, causou espécie no governo. Os dirigentes do agronegócio parecem se dividir, tendo a ABAG, tida por representação de setores mais liberais e ligados ao mercado mundial, adotado posição mais crítica ao golpismo. No mundo político, o PSD de Gilberto Kassab movimenta-se gradualmente para fora da base governista e dois dos partidos mais tradicionais, MDB e PSDB, avaliam o apoio aos pedidos de impeachment.

É certamente pouco, mas, dado que após a vitória estrondosa do governo nas eleições das mesas legislativas em fevereiro, o horizonte do impeachment parecia afastado, não deixa de ser alguma coisa. Por outro lado, os pontos mais sensíveis para tanto não se moveram.

O presidente da Câmara, Arthur Lira, opera um vultuoso sistema de alocação de recursos públicos chamado de “orçamento secreto”, que parece ser visto por muitos parlamentares como tábua de salvação para as futuras eleições legislativas. Lira não caminhará para um impeachment por vontade própria. O mesmo ocorre à legião de militares que formam a espinha dorsal do atual governo e que detém com o general Hamilton Mourão a vice-presidência da República. Há muito ainda a saber sobre como tem operado este verdadeiro partido militar, mas não se pode acreditar que sua presença seja contingente ou desarticulada. Há aí também cálculo e estratégia que não se limitam à participação pontual neste governo. Bolsonaro não será entregue ao impeachment se não houver alternativa competitiva e os militares não dão nenhuma demonstração de que estariam dispostos a contribuir para desanuviar o horizonte, o que eles consideram que serviria simplesmente de ponte para um futuro governo Lula.

Como se vê, não se pode esperar que os grupos que vieram com o bolsonarismo até agora resolvam o problema que criaram. Esse impasse não terá um desenlace favorável à democracia sem uma combinação inteligente de mobilização popular e concertação política para produzir as barreiras de contenção ao golpismo, que, dado o aprofundamento do comprometimento do presidente, não pode prescindir do recurso do impeachment.

Até aqui, o STF e vários dos governadores estaduais têm ajudado a conter a sanha golpista, inclusive a ameaça de rebelião policial, mas é altíssimo o custo do assédio bolsonarista às instituições. Não se deve contar que apenas o cálculo político dos atores conduza a essa conclusão. Uma campanha democrática pelo impeachment precisa de mobilização popular ampla e unificada, que dispute as ruas com o bolsonarismo e ajude a sustentar o compromisso democrático com o respeito ao pleito como condição básica da disputa política. E a partir daí procurar pautar os problemas estratégicos cujo debate o golpismo interditou, que dizem respeito às enormes dificuldades que o país terá para se inserir em um mundo cada vez mais complexo, desigual e competitivo.


Felipe Maia é Professor e pesquisador da Universidade Federal de Juiz de Fora. É doutor em Sociologia pelo IESP – UERJ (2014), com pós-doutorado no CPDOC-FGV (2015). É coordenador do projeto de pesquisa “Crises e críticas: intelectuais, teoria e processos sociais” e do Grupo de Estudos em Teoria Social (UFJF) e integração a coordenação do Grupo de Pesquisa do CNPQ “Crise e Metamorfoses da sociologia”. Organizador do livro Uma democracia (in)acabada (2019), publicado pelo Ateliê de Humanidades Editorial.


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por Anders Noren

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